MIÚCHA & ANTONIO CARLOS JOBIM – ÁLBUM ANTOLÓGICO DA MPB

junho 18, 2012



Em 1977 a música brasileira assistiu ao encontro histórico de Tom Jobim e Miúcha, registrado no álbum “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”, desde então um clássico da MPB. A voz afinada e tranqüila de Miúcha encontrou suporte decisivo no universo do maestro soberano, num disco em que ele abre mão da Bossa Nova jazzística, conforme era acusado na época, optando pela brasilidade genuína do som romântico e universal da sua obra.
O projeto do disco com Miúcha nascera dois anos antes, em 1975, e um ano depois do bem sucedido encontro com Elis Regina, no mítico “Elis & Tom”. Ao contrário do primeiro encontro, que teve uma projeção mínima nas paradas de sucesso, “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”, foi responsável por vários sucessos nas paradas tão logo foi lançado, com três faixas, à partida, transformadas em trilhas de novelas, sendo uma delas, “Vai Levando”, abertura da novela “Espelho Mágico”, de Lauro César Muniz, no horário nobre da TV Globo, em 1977. Ao longo das décadas, outras faixas, “Pela Luz dos Olhos Teus” e “Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)”, seriam aberturas de novelas de sucesso.
Miúcha, então incipiente nos discos, atingiria o ponto mais alto da sua carreira, tornando-se popular no Brasil. A divulgação do álbum, gerou um dos melhores shows estreados no Canecão, famosa casa de espetáculos carioca. No embalo, Miúcha e Tom Jobim dividiram o palco com Toquinho e Vinícius de Moraes. O show ficaria em cartaz no Rio de Janeiro por quase um ano, sendo registrado no álbum “Tom/ Vinicius/ Toquinho/ Miúcha – Gravado ao Vivo no Canecão”, outra grande pérola da MPB, lançado ainda naquele farto ano musical de 1977.
O projeto contou com a participação luxuosa de Chico Buarque, inicialmente previsto para participar de uma faixa, ficando em três delas. Definitivo, o álbum tornou-se atemporal, indo além do universo musical de Tom Jobim, passando pelos mais genuínos compositores da música popular brasileira, como Ary Barroso, Custódio Mesquita, Toquinho, Geraldo Carneiro e o eterno Vinícius de Moraes. Composições de autores ecléticos, as músicas vão da Bossa Nova ao samba canção, numa unidade irrepreensível que sustenta a proposta, fazendo a sofisticação do disco tocar na sensibilidade do grande público, ultrapassando as esferas elitizantes do culto ao mito de Tom Jobim.
Além do disco com Vinícius de Moraes e Toquinho, gravado ao vivo, o sucesso de “Miúcha & Antonio Carlos Jobim” deu origem a um segundo encontro entre a dupla, registrado em “Miúcha & Tom Jobim”, álbum de 1979, conhecido como o Volume II do encontro. Apesar de ser um bom disco, o disco de 1979 não teve o impacto e beleza do de 1977, único e intocável.

Fôlego Contunde nas Primeiras Canções

O primeiro encontro de Miúcha com Tom Jobim deu-se em 1975, quando ela participou da faixa “Boto” (Jararaca – Tom Jobim), do álbum “Urubu”, do maestro soberano. Desde então, arquitetou-se a idéia de juntos fazer um álbum.
Miúcha é daquelas cantoras que sempre carregou o estigma do parente mais brilhante, era a mulher de João Gilberto, a irmã de Chico Buarque, e mais recentemente, a mãe de Bebel Gilberto; o que não lhe faz jus ao talento individual e sensibilidade emotiva. Sua estréia profissional em disco deu-se em 1975, ao lado de João Gilberto e Stan Getz, no álbum “The Best of Two Worlds”. Quando chegou às mãos de Tom Jobim, era uma incipiente no mundo do vinil.
Produzido por Aloysio de Oliveira, “Miúcha & Antonio Carlos Jobim” foi lançado em 1977, trazendo doze faixas, contando com a participação especialíssima de Chico Buarque como cantor em três delas. O repertório, incluindo vários compositores diferentes, acentuou uma brasilidade que deu o tom aos arranjos musicais e à sonoridade do disco.
Vai Levando” (Chico Buarque – Caetano Veloso), abre o disco de forma contundente, já a mostrar a força que pulsará o repertório e a sua atmosfera. A canção foi feita para o show “Chico & Bethânia no Canecão”, em 1975, numa parceria poucas vezes explorada pelos autores. Traz a irreverência eterna de Caetano Veloso, mesclada com a poesia social de Chico Buarque. É cantada em três vozes, a de Tom Jobim, a de Miúcha e a de Chico Buarque. A letra fala da fama, da roda viva da vida, da pílula, das suas convulsões numa época de claustrofóbica ditadura e mudança de costumes, afinal 1977 trouxe após anos de luta contra os desgastados preconceitos morais e religiosos, a aprovação da lei do divórcio. “Vai Levando” é o existencialismo explícito, onde desfilam palavras do cotidiano midiático, como ‘Ibope’, ou marca de cerveja como ‘Brahma’. O disco mal tinha saído do forno e a canção tornou-se tema de abertura da novela global “Espelho Mágico” , um grande avanço na emissora de Roberto Marinho, que havia excluído Chico Buarque da sua programação desde a época dos festivais de canções, tendo-o como presença não grata.

“Mesmo com o nada feito,
com a sala escura
com o nó no peito,
com a cara dura
a gente não tem cura
mesmo com o todavia,
com todo dia,
com todo ia,
todo não ia,
a gente vai levando
a gente vai levando…”

Tiro Cruzado” (Nelson Ângelo – Marcio Borges) continua com a pressão existencialista social. Num corte de canivete na opressão, no desafio às imposições, na contundência amenizada pelas vozes educadas de Tom Jobim e Miúcha, dando o equilíbrio ao arranque passional e de denúncia social. Uma canção belíssima, que poucas vezes foi gravada na MPB, passando involuntariamente despercebida.

Filosofia das Noites nos Bares

Comigo É Assim” (Luiz Bittencourt – José Menezes) deixa o existencialismo social, distancia-se da Bossa Nova, abrindo-se um delicioso samba de breque, numa viagem ao fascínio da malandragem da noite carioca, nos desencontros de um casal que se amam e se odeiam no mesmo copo de cachaça. Malevolente e maliciosa, gostosa provocação de briga de amor na voz dos dois cantores.
Na Batucada da Vida” (Ary Barroso – Luiz Peixoto) segue as noites infinitas dos habitantes dos bares, dos desvalidos no limiar da rua e da vida. É a mulher da rua, da cachaça, das rodas marginais do samba, da batucada, da boemia como ideologia existencial. A voz de Miúcha arrasta-se ao piano acústico de Tom Jobim, desembocando no final ao coro das duas vozes que se encontram. Esta canção é quase um hino aos desvalidos, aos sobreviventes da noite e da bebida, numa atmosfera que se atira ao underground da vida.

“No dia em que eu apareci no mundo
Juntou uma porção de vagabundo da orgia
De noite teve samba e batucada
Que acabou de madrugada em grossa pancadaria
Depois do meu batismo de fumaça 
Mamei um litro e meio de cachaça – bem puxados
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho na porta dos enjeitados”

Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)” (Vinícius de Moraes – Toquinho), delicioso samba da época de ouro da dupla Toquinho e Vinícius de Moraes, cantada despretensiosamente a três vozes, tendo novamente a intervenção de Chico Buarque. A letra traz perguntas simples da vida, com suas dúvidas geradas nos copos de uísque do poetinha e nas mesas de bares onde ele encontrava uma inesgotável inspiração. Trinta e dois anos depois de ter sido gravada e lançada, esta versão foi tema de abertura da telenovela “Viver a Vida”, de Manoel Carlos, sendo a terceira música deste disco a abrir uma produção da TV Globo.

Canções de Amor e Bossa Nova

Miúcha resgatou aqui um clássico da obra do irmão, “Olhos Nos Olhos” (Chico Buarque). A canção tinha sido gravada um ano antes pelo próprio autor e por Maria Bethânia, interpretação que correu as paradas de sucesso da época. A voz solitária de Miúcha é acompanhada pelo piano infinito de Tom Jobim, sem intervenção da sua voz. Foge da verve passional de Maria Bethânia, sendo uma interpretação mais intimista, quase a olhar o sentimento para dentro, jamais para a explosão dramática externa.
Pela Luz dos Olhos Teus” (Vinícius de Moraes), traz um dos mais belos duetos que Tom Jobim participou. Composição solitária de Vinícius de Moraes, é luxuosamente transformada em doce poesia lírica e musical. Na primeira parte da canção, cada um canta alguns versos, na segunda parte cantam simultaneamente, depois duelam entre si, a despejar o amor da canção, transformada em uma suave valsinha, despretensiosa, mas autêntica. A canção foi feita de imediato tema da novela “Dona Xepa”, de Gilberto Braga, tornando-se a mais popular do álbum. Em 2003 voltou às trilhas sonoras, desta vez abrindo “Mulheres Apaixonadas”, novela de Manoel Carlos.

“Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar”

A leveza poética de “Pela Luz dos Olhos Teus” continua, desembocando na eterna e definitiva Bossa Nova de Tom Jobim, destilada em “Samba do Avião” (Tom Jobim), uma homenagem ao Rio de Janeiro, hino que recebe de volta os saudosos migrantes do Brasil. É a cidade mãe da Bossa Nova vista de dentro de um avião, pronto para pousar na mítica do Brasil sincrético. O aeroporto internacional do Galeão, ponto de chegada da canção, é hoje oficialmente chamado de aeroporto Maestro Tom Jobim. Homenagem mais que justa a Antonio Brasileiro.
Saia do Caminho” (Evaldo Ruy – Custódio Mesquita), canção de beleza melancólica, de ruptura com o amor, samba-canção da época de ouro das sofridas e emotivas cantoras pré-Bossa Nova. O fracasso do amor, da paixão, do projeto de vida a dois, a entrega da luta por se estar junto, tudo despejado pelas notas tristes do piano e pela voz enfumaçada na emoção de Miúcha.

Nostalgia e Saudade

O momento de grande apoteose chega com “Maninha” (Chico Buarque), canção feita especialmente para Miúcha. Chico Buarque faz aqui a sua terceira e última intervenção vocal no disco. Modinha saudosista, lírica, mostrando os jardins dos sonhos infantis e juvenis, relembrados na virada dos anos, na quebra da pureza que a vida se nos arranca. Momento de poesia límpida, numa visão de imagens saudosistas da inocência de todos nós. A canção também entrou para a trilha sonora de “Espelho Mágico”, pontuando duas vezes Chico Buarque dentro da emissora que lhe virara as costas por quase uma década.

“Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Os sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou”

Choro de Nada” (Eduardo Souto Neto – Geraldo Carneiro), alenta as lembranças latentes, viagem ao que se perde, através dos cenários imutáveis da cidade, quando as personagens por algum motivo, desligaram-se, deixando apenas um vazio que se percorre. A vida vista de um lado da rua, no cansaço dentro do cotidiano da cidade. Um sopro no vazio da noite, no nada da tristeza.
É Preciso Dizer Adeus” (Tom Jobim – Vinícius de Moraes) encerra este álbum histórico. Em doze canções, Tom Jobim só interviu em duas composições, sendo esta a segunda. Triste, pungente, numa dor que arranha em cicatriz, a canção era uma das preferidas de Tom Jobim. Composta em 1958, só foi usada por ele em momentos especiais, com cantores que lhe proporcionaram a emoção exigida. Voltaria a registrá-la três vezes, em 1981, com Edu Lobo, no álbum “Edu & Tom”; com Gal Costa, em 1993, no “Songbook Vinícius de Moraes”; e, na sua despedida, em 1994, no “Rio Vermelho”, com Ithamara Koorax. Nesta versão, Tom Jobim não interfere na parte vocal, deixando a voz de Miúcha transcender a melancolia aguda da canção. Era preciso dizer adeus, assim, o álbum antológico era encerrado. Fixando-se para sempre na galeria memorial da MPB.

“E essa beleza do amor
Que foi tão nossa
E me deixa tão só
Eu não quero perder
Eu não quero chorar
Eu não quero trair
Porque tu foste pra mim
Meu amor
Como um dia de sol”

O sucesso do disco proporcionou a sua divulgação através de um show no Canecão, que juntava a Tom Jobim e Miúcha, as presenças de Toquinho e Vinícius de Moraes. O espetáculo permaneceu em cartaz no Rio de Janeiro por quase um ano, percorrendo depois outras cidades. Foi registrado no álbum “Tom/ Vinicius/ Toquinho/ Miúcha – Gravado ao Vivo no Canecão”. Em 1979, Tom Jobim e Miúcha voltariam a se encontrar em outro álbum, “Miúcha & Tom Jobim”, gravado quase todo em Nova York. O volume dois da dupla apesar da qualidade, não trouxe a beleza estética e definitiva deste “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”.

Ficha Técnica:

Miúcha & Antonio Carlos Jobim 
RCA Victor 
1977

Produção: Aloysio de Oliveira
Diretor Criativo: Durval Ferreira
Arranjos e Regências: Antonio Carlos Jobim
Técnico de Som: Mário Jorge Bruno
Direção de Arte: Ney Távora
Fotos: Ivan Klingen
Vocal: Tom Jobim e Miúcha
Participação Vocal Especial: Chico Buarque

Músicos Participantes:

Piano: Antonio Carlos Jobim
Bateria: Rubinho, Robertinho Silva e Wilson das Neves
Percussão: Ariovaldo Contesini
Baixo: Novelli, Luiz Alves e Edson Lobo
Flauta: Antonio Carlos Jobim, Danilo Caymmi, Franklin e Paulo Jobim
Violão: Dori Caymmi
Cello: Peter Dauelsberg

Faixas:

1 Vai Levando (Chico Buarque – Caetano Veloso) Participação: Chico Buarque, 2 Tiro Cruzado (Nelson Ângelo – Marcio Borges), 3 Comigo É Assim (Luiz Bittencourt – José Menezes), 4 Na Batucada da Vida (Ary Barroso – Luiz Peixoto), 5 Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão) (Vinícius de Moraes – Toquinho) Participação: Chico Buarque, 6 Olhos Nos Olhos (Chico Buarque), 7 Pela Luz dos Olhos Teus (Vinícius de Moraes), 8 Samba do Avião (Tom Jobim), 9 Saia do Caminho (Evaldo Ruy – Custódio Mesquita), 10 Maninha (Chico Buarque) Participação: Chico Buarque, 11 Choro de Nada (Eduardo Souto Neto – Geraldo Carneiro), 12 É Preciso Dizer Adeus (Tom Jobim – Vinícius de Moraes)


A ESTRELA DALVA DE OLIVEIRA

julho 20, 2010

Se hoje a Música Popular Brasileira é essencialmente feita de grandes vozes femininas, nem sempre foi assim. Numa época em que eram dominantes as poderosas vozes masculinas, como a de Francisco Alves, surgiu Dalva de Oliveira, com os seus agudos fulminantes e voz de cantora lírica, que ao adaptá-la para o canto popular, tornou-se a primeira grande voz feminina da MPB.
Dalva de Oliveira surgiu na época de ouro do rádio, do glamour dos palcos dos grandes cassinos cariocas, no despertar do cinema nacional. Alcançou grande popularidade antes legada a Carmem Miranda. Se a Pequena Notável tinha o carisma, a originalidade e alegria diante dos palcos e das câmeras de cinema, Dalva de Oliveira tinha a voz, o drama e a emoção à flor da pele. Antes dela, nenhuma voz feminina alcançou tão arduamente o coração do brasileiro.
Porte de estrela, trazia consigo o estigma do destino infeliz das grandes divas, fazendo da sua emoção um dos cantos mais límpidos, belos e sinceros que já ecoaram pelo Brasil.
A Estrela Dalva, como era conhecida, numa alusão poética e tipicamente brasileira ao brilho ilusório do planeta Vênus, Dalva de Oliveira passou por todos os estágios que constituem uma vida farta de emoções e densidade dramática. Foi menina pobre, a lavar roupas nas soleiras dos cortiços, faxineira, costureira, cantora de circo, grande estrela da MPB, conheceu os lugares mais luxuosos do mundo, teve o Brasil aos seus pés, alcançou fortuna, perdeu-se nos labirintos do álcool, sofreu um acidente que lhe deixou uma grande cicatriz a lhe rasgar o rosto e a saúde debilitada, passou por amores atribulados, criou grandes polêmicas envolvendo sua vida amorosa, foi mãe, dona de casa, amante, mulher.
No fim da vida foi legada ao ostracismo, num cruel esquecimento de um país que pouco cultiva os seus ídolos. No ano da sua morte, em 1972, alcançou um último fôlego, voltando a mídia de então, quando se apresentou no Programa Silvio Santos, então apresentado pela poderosa TV Globo, onde ganhou um concurso de marchinhas de carnaval daquele ano. Quase nada para uma estrela, mas muito para quem teve poucas vezes os holofotes da televisão. Meses depois, Dalva de Oliveira voltou à mídia, mas para fazer a sua despedida lenta e agonizante, em uma internação hospitalar que durou meses. No momento da sua agonia, o Brasil voltou a idolatrá-la. Seu público fiel fez filas na porta do hospital. No dia 30 de agosto de 1972, Dalva de Oliveira morreu. O Brasil parou para homenageá-la. Milhares de pessoas acederam ao seu velório e enterro, gerando um momento de comoção nacional. Era o último adeus do povo brasileiro à Estrela Dalva.

Infância Pobre e Ligada à Musica

Em 5 de maio de 1917, nascia na cidade de Rio Claro, interior de São Paulo, Vicentina Paula de Oliveira, primogênita do mulato Mário Antônio de Oliveira e da portuguesa Alice do Espírito Santo Oliveira.
Na infância pobre da menina Vicentina faltaram as bonecas, os brinquedos, mas não a música. O pai marceneiro ou carpinteiro, conforme lhe queiram classificar a profissão, era músico amador, que nas horas de folga tocava em serenatas ao lado dos amigos músicos, com quem chegou a organizar um conjunto para animar festas particulares. Mário Carioca, como era chamado, costumava ser acompanhado pela filha nas serenatas que promovia, e, reza a lenda, teria cantado com ele várias vezes em cima de um banquinho. Já desde cedo o contacto da futura cantora com a música estava estabelecido.
Além de músico e festeiro, Mário Carioca era conhecido pela facilidade de fazer filhos, tendo uma prole de cinco rebentos. Além de Vicentina, vieram mais três meninas, Nair, Margarida e Lila, e um menino, que nascera com a saúde debilitada, morrendo ainda criança. Mário Carioca também deixou a família muito cedo, vindo a falecer quando Vicentina tinha apenas oito anos.
Viúva, sem recursos financeiros e com quatro filhas para criar, dona Alice mudou-se para a cidade de São Paulo, empregando-se como governanta. Por esta época, conseguiu vaga para as filhas no Internato Tamandaré, dirigido por irmãs de caridade. No internato, entre as adversidades da vida, mais uma vez Vicentina teve contacto com a música, tendo ali aulas de piano, órgão e canto. A vida no internato durou três anos, quando a menina foi obrigada a sair, ao ser acometida de uma grave infecção nos olhos, que quase a deixou cega.
A presença de Vicentina na casa onde a mãe estava empregada não foi bem aceita pelos patrões, sendo ela demitida. Alice conseguiu emprego em um hotel, trabalhando como copeira, passando a contar com a ajuda da filha.
Logo cedo, Vicentina começou a trabalhar como arrumadeira, babá ou ainda como ajudante de cozinha de restaurantes, desenvolvendo grande talento para cozinhar, hábito que não abandonaria mesmo quando já era uma estrela da MPB. Foi numa das suas perambulações para sobreviver e ajudar a mãe, que se empregou em uma escola de dança, tendo ali contacto com um piano e com a música, uma constante em sua vida, quase como uma sina sem livre arbítrio. Depois que encerrava os trabalhos domésticos na escola de dança, costumava cantar algumas músicas, tentado tirar as melodias do piano da escola.

Nasce a Estrela Dalva nos Palcos de Um Circo

A ligação de Vicentina com a música crescia, assim como a sua voz, cada vez mais potente. Na escola de dança, um dia seria ouvida pelo maestro pianista, sendo por ele convidada para cantar na trupe de um circo de tablado, comandada por Antônio Zovetti.
Tendo a mãe sempre do lado, Vicentina passou a acompanhar o Circo Damasco, que percorria várias cidades do interior paulistano. A cantora apresentava-se nos intervalos das atrações circenses, sendo solenemente apresentava como “a menina prodígio da voz de ouro”.
Antônio Zovetti evitava-lhe chamar pelo nome, pois o considerava pouco sonoro para uma cantora. Por sugestão da mãe, Vicentina passou a usar o nome de Dalva. Desde então, passou a ser anunciada calorosamente: “A doçura da voz da menina prodígio, a estrela Dalva”. Nascia uma das mais cintilantes estrelas do firmamento da música brasileira.
As viagens do circo levaram a então Dalva, em uma bem-sucedida apresentação em Belo Horizonte. Na capital mineira, foi induzida a fazer um teste na Rádio Mineira, sendo aprovada. Mas a aprovação no rádio coincidiu com a dissolução do Circo Damasco, e Dalva e a mãe foram obrigadas a retornar para São Paulo.
Na capital paulistana, Alice foi aconselhada a levar a filha para o Rio de Janeiro, pois lá teria mais condições de ascender como cantora, visto que era dona de uma voz privilegiada e de um talento latente, pronto para explodir.

Início nas Rádios e nos Teatros

Em 1934, as filhas de Mário Carioca voltaram a morar todas com a mãe. Juntas, seguiram para o Rio de Janeiro, em busca de dias melhores. Na capital federal foram morar em um quarto de cortiço na Rua Senador Pompeu.
No Rio de Janeiro, Dalva empregou-se como costureira numa fábrica de chinelos. Mais uma vez, o seu destino cruzou-se com a música. Um dos donos da fábrica era Milton Guita, conhecido pela alcunha de Milonguita, diretor da Rádio Ipanema. Dalva tinha o hábito de cantarolar enquanto trabalhava, sendo ouvida uma vez por Milonguita. O radialista convidou-a para um teste na Rádio Ipanema, no qual foi aprovada. Começava uma peregrinação pelas rádios do Rio de Janeiro, que futuramente, transformaria a cantora na Rainha do Rádio.
Da Rádio Ipanema, Dalva de Oliveira transferiu-se consecutivamente para a Rádio Sociedade e Rádio Cruzeiro do Sul, cantando ao lado do mítico Noel Rosa. Passou ainda, pela Rádio Philips, desembocando na Rádio Mayrink Veiga. Foi nesta rádio, que o então diretor Adhemar, levou- à presença do respeitado maestro Gambardella. O maestro encantou-se com o potencial da sua voz, pronta para ser uma grande cantora lírica. Mas Gambardella deu-lhe um conselho sábio, que seguisse carreira como cantora popular, visto que ser cantora lírica exigia recursos financeiros, e que uma moça pobre dificilmente conseguiria projeção em um universo tão fechado e sem futuro no Brasil da época.
Dalva de Oliveira prosseguiu a sua trajetória rumo ao sucesso. Passou pelo Teatro Glória, sendo figurante e corista em várias operetas. No Largo da Cancela, Dalva apresentou-se em números imitando a atriz Dorothy Lamour. Participou da temporada popular da Casa do Caboclo, do Teatro Fênix, numa roda viva constante em busca de um lugar ao sol, de poder mostrar para o Brasil a estrela que havia dentro dela.
A caminhada não lhe era fácil. Continuava a viver com a mãe e as irmãs na mais completa miséria em um cortiço carioca. A sua vida iria mudar definitivamente, quando, em 1936, conheceu o jovem cantor e compositor Herivelto Martins.

O Trio de Ouro

Reza a tradição que o encontro entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins deu-se no Cine Pátria, no Largo da Cancela, em São Cristóvão. Na época o cantor formava a dupla Preto e Branco, ao lado de Nilo Chagas, o preto da dupla. Originalmente, Francisco Sena era o parceiro de Herivelto Martins, tendo morrido em 1935, foi substituído por Nilo Chagas.
O encontro resultaria em alguns números de Dalva de Oliveira com a dupla. A seguir, Herivelto Martins foi contratado para trabalhar no Teatro Fênix. Sentindo-se atraído pela beleza da voz da jovem, e pelos seus olhos verdes cismadores e fatais, o rapaz propôs-lhe que viesse cantar com a dupla, formando o trio que chamaram de Dalva de Oliveira e Dupla Preto e Branco. Juntos, gravaram, em 1937, pela RCA Victor, o primeiro disco, um compacto com as músicas “Itaquan” (Príncipe Pretinho) e “Ceci e Peri” (Príncipe Pretinho).
Dalva de Oliveira e Herivelto Martins iniciavam uma grande parceria musical, e uma tórrida história de amor, que marcaria para sempre as suas vidas. A marchinha “Ceci e Peri” tornou-se um grande sucesso. Quando Dalva de Oliveira ficou grávida do primeiro filho, os fãs escreviam ao casal, pedindo que a criança ao nascer fosse batizada de Ceci, se menina, ou de Peri, se menino. Assim foi feito, quando nasceu um menino, recebeu o nome de Pery Ribeiro, que mais tarde, assim como os pais, tornar-se-ia cantor da MPB.
Contratado pela Rádio Mayrink Veiga, o trio ao apresentar-se no programa de César Ladeira, mudaria de nome, quando o apresentador afirmou que aquele era um trio de ouro. Nascia o mítico Trio de Ouro.
Contratados pela Odeon, gravaram os primeiros discos com o Regional de Benedito Lacerda. O nome Trio de Ouro apareceria pela primeira vez em 1938, já na Odeon, quando da gravação do jongo “Na Bahia” (Herivelto Martins – Humberto Porto), ao lado de Carmen Miranda.
Dalva de Oliveira e Herivelto Martins passaram a viver maritalmente, oficializando a união em um ritual de umbanda, em 1939. Além de Pery Ribeiro, teriam outro filho, Ubiratan Martins.
O Trio de Ouro tornou-se sucesso em todo o Brasil, produzindo alguns clássicos da MPB. Em 1940 passaram a atuar na Rádio Clube do Brasil. Com o sucesso, também o dinheiro começou a fazer parte da vida de Dalva de Oliveira. Presa à arte de cantar, alheia às questões financeiras, a cantora deixou por conta do marido a administração da sua carreira, limitada às decisões de Herivelto Martins. Em 1942, o Trio de Ouro atingiria o seu auge, fazendo de “Praça Onze” (Herivelto Martins – Grande Otelo), o maior sucesso do carnaval daquele ano. A canção “Ave Maria no Morro” (Herivelto Martins), fazia a voz de Dalva de Oliveira ecoar por todas as dores de um Brasil sofrido, numa grande prece lírica, como um bálsamo na ferida de um povo.
Se Herivelto Martins era a cabeça do trio, Nilo Chagas os braços e pernas, Dalva de Oliveira era a alma, o coração, a essência da sua beleza musical. Na década de 1940, atingiram a fama incontestável. Apresentaram-se com sucesso nas noites do famoso Cassino da Urca, abarrotaram o mercado fonográfico com vários discos, e as rádios com grandes sucessos. Alcançavam não só a fama, como também a independência financeira.
Nos bastidores, a paixão intensa e conturbada de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins ia desgastando o casamento de ambos, minando o equilíbrio do trio, produzindo traições conjugais, violentas brigas, até o rompimento definitivo do casal, em 1947, culminando com o fim do Trio de Ouro.

A Rainha do Rádio

Com a separação de Herivelto Martins, Dalva de Oliveira viu-se solitária para dirigir a sua carreira. Não sabia que destino seguir. Atingira a fama ao lado do marido, não sabia o que era administrar uma carreira profissional.
Após vários escândalos, brigas e traições, o casal declarou a falência do casamento em 1947. Dalva de Oliveira passou a seguir os seus impulsos, a sua emoção, descobrindo na embriaguez do álcool um antídoto traiçoeiro para as suas decepções de amor.
Mesmo separados, Herivelto Martins não se desligava do sentimento de posse pela mulher, a quem, na sua visão, fizera uma estrela. Ao encontrá-la com outro, iniciou uma série de escândalos que se iriam tornar famosos, travando uma guerra pública que se estenderia por alguns anos, onde a munição era a música.
O rompimento definitivo de Dalva de Oliveira com o Trio de Ouro veio quando, em 1949, realizavam uma excursão à Venezuela com a Companhia de Dercy Gonçalves. Herivelto Martins voltou ao Brasil, mas Dalva continuou naquele país, apresentando-se com o maestro Vicente Paiva.
Sozinha, era hora de Dalva de Oliveira reiniciar a sua carreira e a sua vida amorosa. Ao retornar ao Brasil, encontrou grande rejeição por parte dos produtores da gravadora Odeon, que não acreditavam em uma carreira a solo da cantora, pressionando para que ela voltasse ao trio.
Na imprensa, Herivelto Martins abria forte campanha de difamação da ex-mulher e ex-colega de trio. Dalva de Oliveira contava com o seu grande talento e com a sua voz de filetes agudos capazes de quebrar os mais finos cristais da MPB.
A cantora encontrou o apoio decisivo para iniciar a sua carreira a solo em Vicente Paiva, na ocasião um dos diretores artísticos da gravadora Odeon. Vicente Paiva apostou no lançamento do samba-canção “Tudo Acabado” (J. Piedade – Osvaldo Martins), pondo o cargo à disposição caso o disco não se tornasse sucesso. A aposta vingou e, a canção tornou-se um grande sucesso da cantora. Era o ponto de partida de uma carreira que superaria a fase do Trio de Ouro, transformando Dalva de Oliveira numa das maiores cantoras da MPB. “Tudo Acabado” servia de resposta às ofensas de Herivelto Martins, iniciando uma polêmica musical que encantaria o público e faria com que as gravadoras vendessem cópias e cópias de discos. A cada canção que Dalva de Oliveira gravava, vinha uma resposta em outra de Herivelto Martins. O momento tornou-se mítico nos bastidores da MPB, com a cantora a interpretar os clássicos “Errei Sim” (Ataulfo Alves) e “Que Será” (Marino Pinto – Mario Rossi).
A briga pública com Herivelto Martins fez com que Dalva de Oliveira perdesse a guarda dos filhos, Pery e Ubiratan foram enviados para um internato por ordem judicial, causando grande dor à cantora e às crianças.
Longe do Trio de Ouro, tudo que Dalva de Oliveira gravava tornava-se sucesso. Logo no primeiro ano a solo, conseguiu pôr nas paradas das rádios brasileiras sucessos que se tornaram inesquecíveis, como “Olhos Verdes” (Vicente Paiva), “Zum-Zum” (Paulo Soledade – Fernando Lobo) e “Ave Maria” (Vicente Paiva – Jaime Redondo).
Em 1951, a cantora era a voz mais ouvida nas rádios. No ano seguinte, em 1952, Dalva de Oliveira foi eleita a Rainha do Rádio, a rainha da voz do Brasil. A menina Vicentina era incontestavelmente a Estrela Dalva.

Novos Amores e Casamentos

Com a carreira consolidada, tendo o público brasileiro aos seus pés, Dalva de Oliveira iniciou uma série de excursões ao exterior, apresentando-se na Argentina, no Uruguai, no Chile e na Inglaterra.
Na sua passagem pelo Reino Unido, cantou par a rainha Elizabeth II, no Hotel Savoy, acompanhada pelo maestro Robert Inglis. O repertório foi registrado em Londres, nos estúdios da Parlophone, sendo lançado em disco. O nome do maestro foi alterado no Brasil para Roberto Inglez, para facilitar a comercialização do álbum no país.
Na sua excursão à Argentina, conheceria o empresário Tito Climent, quando se apresentava na Rádio El Mondo, em Buenos Aires. Iniciou com ele uma amizade, fazendo-o empresário, e, mais tarde, o seu segundo marido.
O casamento com Tito Climent aconteceu em Paris, numa igreja de Montmartre, em 1952. Atravessaria a década de 1950 casada com o argentino, motivo que levou a cantora a ausentar-se do Brasil por um bom tempo, indo viver na Argentina. Sua união com o empresário não chegou a criar escândalos nos jornais como a que vivera com Herivelto Martins, mas nem por isto foi tranqüila. Brigas freqüentes minaram a ligação, que terminou em separação, em 1963. Com Tito Climent, a cantora adotou uma filha, Dalva Lúcia, motivo de disputa judicial entre o casal após a separação. A filha ficaria com o pai, permanecendo anos sem ver a mãe. O reencontro das duas aconteceria anos mais tarde, sendo promovido no Programa Silvio Santos, na TV Globo, em 1972.
Separada de Tito Climent, viu-se outra vez sozinha e tendo que administrar a carreira, algo que ela, após dois casamentos, ainda não aprendera a fazer. Os excessos com o álcool passaram a ser cada vez mais constantes e públicos, sendo amplamente evidenciados pela imprensa de então. Seus romances relâmpagos tornaram-se parte dos escândalos que se tornaram mais intensos do que a sua carreira e sucessos.
Aos 47 anos, a cantora apaixonou-se pelo jovem Manuel Nuno Carpinteiro, de 19 anos. A diferença de idade entre os dois não impediu que a relação crescesse, o rapaz tornar-se-ia o seu terceiro e último marido.

O Ocaso de Uma Estrela

No decorrer dos anos, a era de ouro das grandes rádios terminou. O governo fechou e proibiu os cassinos no país, encerrando o glamour da época da Urca. As grandes e potentes vozes masculinas foram dando passagem para vozes suaves e afinadas como as de João Gilberto. A Bossa Nova encerrou a época dos sofridos samba-canções, das ingênuas marchinhas carnavalescas e do samba-exaltação ao Brasil.
Dalva de Oliveira, com as suas mãos cruzadas no peito, sua emoção a exalar por todos os poros, passou a amargar um longo período de ostracismo. Os sucessos foram ficando cada vez mais raros.
Como se não bastasse, a tragédia bateria à sua porta, em agosto de 1965. Numa noite, quando voltava de uma festa com o marido Nuno, iniciaram uma intensa discussão dentro do carro. A briga resultou em um grande acidente, em circunstâncias obscuras, que culminou com atropelamento e morte de três pessoas. Dalva de Oliveira foi internada em estado grave no hospital, deixando os fãs apreensivos, sem saber se ela escaparia com vida. Durante o período de internação, Manuel Nuno declararia à polícia que era a cantora quem dirigia o carro. Mais tarde, a cantora já recuperada, viu-se em apuros com a justiça. Nuno confessaria que era ele quem dirigia o carro, e que culpara a cantora pensando que ela não sobrevivesse. O jovem seria processado e absolvido pela responsabilidade na morte das pessoas. O que se passou de verdade, na hora do acidente entre os dois, jamais ficou claro. O acidente deixaria uma marca profunda na saúde da cantora, e uma grande cicatriz a riscar-lhe o rosto para sempre.
A tragédia e o jogo de culpas levou o casal à separação. Dalva de Oliveira caminhou errante, abatida e envelhecida, entregando-se ao álcool e a amores fugazes. Limadas as mágoas, Dalva e Nuno reconciliaram-se tempos depois.
Sentindo-se esquecida, Dalva de Oliveira sofreu longos períodos de depressão e tristeza. A fortuna e o sucesso, assim como vieram, pareciam ter passado para sempre. Muitas foram às vezes que teve que voltar para a sua casa, em Jacarepaguá, entrando pela parte da frente de um ônibus coletivo, pois não tinha dinheiro para pagar a passagem. Bêbada e solitária, deixava-se dormir na poltrona do coletivo, sendo acordada pelo motorista, que a deixava na porta de casa. No fim da vida, ia todo mês receber a sua aposentadoria, não como uma estrela, mas como uma cidadã brasileira comum.
Nos anos sessenta, teve alguns sucessos pontuais, como “Rancho da Praça Onze” (João Roberto Kelly – Chico Anýsio) e “Máscara Negra” (Zé Kéti – Pereira Matos). Após uma longa ausência, retornaria às paradas em 1970, com um retumbante sucesso, “Bandeira Branca” (Max Nunes – Laércio Alves). Com a canção, Dalva de Oliveira pedia trégua ao ostracismo, aos amores, à vida. Parecia ter encontrado o seu Shangri-Lá na casa de Jacarepaguá.

O Adeus à Estrela Dalva

O ano de 1972 começou com um breve retorno de Dalva de Oliveira à mídia da época. Ganharia um concurso de marchinhas de carnaval, no Programa Sílvio Santos, na TV Globo. No mesmo programa, reencontrar-se-ia com a filha Dalva Lúcia, a quem não via fazia alguns anos. Desde então, a cantora passou a ser citada mais vezes pela mídia.
Mas a saúde precária da cantora interrompeu qualquer esperança de volta. Sozinha em casa, Dalva surpreendeu os funcionários da Rádio Globo, ao telefonar para lá pedindo socorro, pois estava a sentir-se muito mal. Socorrida, ela foi internada de emergência. A notícia causou um grande impacto no público, que passou a fazer vigília na porta do hospital. A internação foi demarcada por altos e baixos, com melhoras aparentes, tendo a imprensa a acompanhar a agonia da cantora, que persistiria por quase três meses. A atenção da imprensa só foi desviada devido à tragédia ocorrida em 18 de agosto daquele ano, quando um ataque cardíaco matou subitamente o grande ator e galã Sérgio Cardoso. O ano tinha sido de grandes perdas, assinalando também, a morte de Leila Diniz em um acidente de aviação em junho.
Três dias antes de morrer, Dalva de Oliveira teria pressentido o seu fim, pedindo a Dora Lopes, amiga que a acompanhara durante a internação, que a vestisse e a maquiasse com o esmero que se acostumara a vê-la o povo. Profetizou ainda, que todos iriam parar para vê-la passar. No dia 30 de agosto de 1972, às 17h15, aos 55 anos, Dalva de Oliveira calava-se para sempre, deixando a vida e com ela, uma das mais belas carreiras da história da música brasileira.
A morte da cantora comoveu o Brasil. Debaixo de uma chuva fria, milhares de pessoas compareceram ao Teatro João Caetano, no centro do Rio de Janeiro, onde o corpo de Dalva de Oliveira estava a ser velado. A vigília durou 17 horas, com uma fila que não se findava, todos querendo prestar a última homenagem. Amigos, familiares, artistas, políticos, todos encheram o velório de Dalva de Oliveira do brilho que ela sempre iluminou ao seu redor. Quando o corpo foi retirado do teatro, mais de trinta mil pessoas, aglomeradas na Praça Tiradentes, acenavam os seus lenços, derramando lágrimas pelo ídolo morto. O cortejo levou duas horas para atravessar a cidade do Rio de Janeiro e chegar ao cemitério Jardim da Saudade. Como Dalva de Oliveira previra, a cidade e o seu povo pararam. Meio milhão de pessoas espalharam-se pelas calçadas dos bairros por onde o cortejo passou, num adeus à Estrela Dalva.
A emoção que se alastrou pelo Brasil refletia bem quem fora Dalva de Oliveira, mulher de coragem e guerreira, que jamais se deixava inquietar pelas dores e adversidades. Desde criança que aprendera a crescer com as dificuldades. Teve o Brasil aos seus pés, mas jamais se comportou como diva. Tratou com carinho e amor todos os fãs, sem nunca ter sido acusada de estrelismo. Nunca perdeu a simplicidade, mesmo quando o mundo girava à sua volta. A sua emoção atingiu milhões de pessoas. Suas mãos cruzadas sobre o peito expressavam a força que vinha das entranhas, em um canto movido pela mais genuína emoção. No palco, ela transcendia-se em sangue, suor e lágrimas, como se fosse explodir em átomos todos os amores do mundo, fulminando a emoção com os seus agudos dilacerantes, mergulhada em uma das vozes mais belas que já abriram as cortinas da MPB.

Discografia

Álbuns de Carreira:

1957 – Os Tangos Mais Famosos na Voz de Dalva de Oliveira – Odeon
1958 – Dalva – Odeon
1959 – Dalva de Oliveira Canta Boleros – Odeon
1960 – Em Tudo Você – Odeon
1961 – Dalva de Oliveira – Odeon
1961 – Tangos – Odeon
1962 – O Encantamento do Bolero – Odeon
1963 – Tangos – Vol. II – Odeon
1965 – Rancho da Praça Onze – Odeon
1967 – A Cantora do Brasil – Odeon
1968 – É Tempo de Amar – Odeon
1970 – Bandeira Branca – Odeon

Extras:

1973 – O Amor é Ridículo da Vida – Odeon
1980 – Grossas Nuvens de Amor – Odeon
1987 – Dalva de Oliveira – Série Os Ídolos do Rádio Vol. V – Collector’s
2000 – Dalva de Oliveira e Roberto Inglez e Sua Orquestra – Revivendo


RICARDO MACHADO VOLUME 2 – DESENHOS DE VOZ

maio 31, 2010

Após a produção do álbum, “Corra e Olhe o Céu”, trabalho coeso, de imponente beleza lírica, apesar de um certo academicismo, Ricardo Machado lançou o segundo álbum, tendo como título apenas o seu nome, fugindo do intimismo do primeiro, trazendo uma obra mais ousada e aguda, mostrando-se solto e com coragem de cantar no tom que se lhe acentua a verdadeira acepção do timbre metálico, sem recorrer a histrionismos, ou perder a suavidade lírica com a qual torna as melodias em agradáveis cantos que se nos seduzem os sentidos.
Mais seguro em cantar, Ricardo Machado, neste volume 2 de uma obra incipiente, propõe-se a mostrar sem máscaras a arte de interpretar. Não sendo fácil sobreviver apenas como intérprete em um mercado fechado, preconceituoso e aberto ao medíocre, o cantor compensa as limitações como compositor, escolhendo um repertório eclético e centrado no bom gosto, percorrendo canções clássicas, mas pouco exploradas, corajosamente tomando-as como suas, criando momentos únicos, impregnando-lhes uma identidade própria.
Ricardo Machado, volume 2, não traz um repertório tão vincado nas profundezas dos sentimentos como no primeiro álbum, mas não foge da obsessão sublime do cantor em cantar o amor, munindo-se do que há de melhor dentro da Música Popular Brasileira, sem jamais se mostrar meloso ou recorrer ao drama, ou ao canto fácil. Traz, principalmente, a afirmação de uma voz, que se mostra mais potente e com vontade de arriscar tons, navegar na que se lhe torna imprescindível, os agudos, dom que as vozes masculinas muitas vezes não se sentem à vontade em explorar.
Mais leve que o primeiro, este álbum consolida-se pela beleza estética de uma voz esculpida em um ínfimo procurar pela perfeição técnica, quebrando-se em metal suave quando traduzida na mais límpida emoção.
Concluído o que se iniciou com o artigo “Corra e Olha o Céu – Ricardo Machado”, aqui a apresentação de um jovem e promissor cantor, numa época em que se tem carência de boas produções musicais e de novos talentos que se propõem a soprar um canto de beleza dentro de um cenário enevoado e demarcado por nuvens de produções instantâneas. Aqui, análise contundente do álbum “Ricardo Machado – Volume 2”.

Agudos Fulminantes em Proposta Romântica

Com uma capa que fragmenta várias fotografias do cantor trazendo o microfone como apresentação da sua proposta, acentuando o contraste entre o azul do fundo do cenário, a camisa preta e a pele branca, o álbum, em uma primeira visitação ao invólucro, mostra-se discreto. Produzido e idealizado pelo próprio cantor, traz os arranjos coesos de Ricardo Calafate, o mesmo que se lhe apresentou no primeiro trabalho.
Seduzir” (Djavan), cantado em capela, surge em forma de vinheta, mostrando a delicadeza da voz de Ricardo Machado. Em um convite suave, ouve-se:

“Cantar é mover o dom
do fundo de uma paixão (…)
(…) Revelar todo o sentido”

E será do fundo das paixões, do âmago do dom do canto, que se erguerá todo o álbum. Após o singelo, mas contundente convite da vinheta, entramos na atmosfera do disco propriamente dito. “Quem Tem a Viola” (Zé Renato – Chico Chaves – Cláudio Nucci – Juca Filho), abre-se surpreendente. Ricardo Machado chega seguro, límpido, longe do intimismo lírico que a canção proporciona, arriscando um tom mais alto e o metal da voz, dando ritmo aos violões, eclipsando agudos e cordas de aço e nylon, num contraste atraente, quebrando a limitação de toada épica do original, fazendo-a mais pop e moderna. Já no início, percebe-se que a ousadia vence o medo de querer acertar, e a vontade de mostrar o que se manteve escondido até então, a força de uma voz liricamente vibrante. Quando pronuncia as palavras “metal” e “cristal”, os agudos fulminam os violões, sendo suavizados nos vocais do próprio cantor, que nos mostram as possibilidades de uma voz privilegiada.

“Quem tem a viola
Pra se acompanhar
Não vive sozinho
Nem pode penar
Tem som de rio
Numa corda de metal
Tem o mar num acorde final”

Sem Dizer Adeus” (Paulinho Moska), uma canção que toca na mais profunda emoção dos sentimentos, numa veia dramática latente, que, de tão rascante na mensagem contundente, chega a beirar às raias do brega se interpretada de forma errada. Ricardo Machado não tem medo de ir ao romantismo mais vincado das canções, mergulhando de cabeça, emergindo sóbrio, lírico, apaixonante. A voz está límpida, não abusa dos agudos, não percorre as feridas da letra, vai ao fundo da emoção, ampliando a latente lírica da voz, traduzida em pura beleza que de suave, corta como uma lâmina.

“Eu
Chorei até ficar debaixo d’água
Submerso por você
Gritei até perder o ar
Que eu já nem tinha pra sobreviver (Eu andei…)”

Um Clássico Imprescindível do Jazz

Vamos desaguar, surpreendentemente na mítica “My Funny Valentine” (Richard Rodgers – Lorenz Hart). Feita para um musical da Brodway, “Babes in Arms”, em 1937, a canção tornou-se um clássico do jazz, passando pelos repertórios de Chet Baker, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Jimmy Giuffre.
Ao contrário do que se pensa, é uma mulher quem canta para o seu amado, Valentine (palavra muitas vezes erroneamente traduzida como namorada [o]), onde acentua os defeitos do amado, mostrando-o não belo ou inteligente, mas que no final, pede para que não mude um fio de cabelo se a amar. São Valentino, Valentine, em inglês, é o santo dos casais apaixonados, sendo o dia dos namorados comemorado no seu dia em muitos países. Daí o arremate final da canção, “Each day is Valentines’s Day” (todo dia é dia dos namorados). Sabendo-se da origem da canção, fica mais fácil situá-la dentro do contexto do álbum. O que parece ser algo “cool” e isolado, interliga-se na proposta que Ricardo Machado quer dar, cantar o amor. Começa intimista, opta por uma canção em inglês que, aparentemente doce, é uma sátira ao amado, e ao mesmo tempo, uma declaração de amor sincera, sem máscaras. É este tipo de amor que canta Ricardo Machado, que se expõe em rasgos abertos e despidos, mas que se retrai ao dramático, fincando-se no lírico, na suavidade da poesia.
Interpretação aparentemente “cool”, ele vai, aos poucos, intencional ou intuitivamente, atingindo o universo dos autores, Richard Rodgers e Lorenz Hart, traduzindo aquela atmosfera do jazz branco dos judeus de Nova York. Se o intimismo inicial sugere a interpretação politicamente correta, Ricardo Machado agarra a atmosfera, solta-se na emoção do verso final “Stay little Valentine, Stay” (Fique, pequeno namorado, ou pequeno Valentine, conforme o jogo de palavras). Neste momento a voz vem quente, embriagante, mostrando porque “My Funny Valentine”, uma canção feminina, tornou-se através do tempo, essencial nas vozes masculinas. Ricardo Machado consegue manter o segredo da usurpação pelos homens do clássico. Numa primeira leitura do disco, perguntamos o que esta música está ali a fazer, no meio do repertório. Numa segunda audição, vamos perceber o elo, a essência do cantor, que mesmo quando se quer revelar docemente marginal, é vencido pela estética lírica inconfundível do seu canto.

“But don’t change your hair for me
Not if you care for me
Stay little Valentine, stay!
Each day is Valentine’s Day”

Prelúdio e Primeiro Clímax

Primavera” (Cassiano – Silvio Rochael), acentua a clareza da pronúncia das palavras na voz do cantor, que elimina qualquer sotaque regionalista, ampliando a beleza estética da poesia, milimetricamente articulada. Mais uma vez os vocais do cantor embelezam a canção, proporcionando-lhe um toque melódico envolto na extensão da sua voz. O passionalismo à flor da pele emerge quando o cantor pronuncia “meu amor”, numa verdade que se amplia incontestável, chegando aos nossos ouvidos diluída mais uma vez, pelo lirismo que provoca, fazendo do drama uma paisagem primaveril suave, do amor com o gosto quente do sangue e da carícia poética de uma brisa macia. Não é o melhor momento do disco, que ainda estar por vir, mas é o prelúdio, é a voz que já não se contenta em ser comportada, que quer subverter o potencial que se lhe negam os sofismas dos professores de música. É o canto já amadurecido, pronto para hipnotizar quem que se lhe ouse a ouvir.

“Eu, é primavera, te amo
É primavera, te amo meu amor
Trago esta rosa para te dar
Trago esta rosa para te dar
Meu amor”

E para quem percorreu todas as faixas à procura de um momento que se atinja o ápice, “Autonomia” (Cartola) proporciona a concretização deste instante. Ricardo Machado já havia navegado com segurança no universo de Cartola, gerando bons momentos no álbum anterior com “Corra e Olhe o Céu” (Cartola – Dalmo Casteli) e “Acontece” (Cartola). Mas é nesta faixa que se revela um profundo tradutor da emoção do velho mestre, e, brinda-nos com uma das mais sublimes, senão a melhor, interpretação de “Autonomia”. O amor como prisão consentida, o sentimento que de opção, torna-se o ar, a perda da liberdade ante outra vida. Cartola sabe como ninguém tocar na sensibilidade das relações, das paixões sinceras. Ao contrário do que aconteceu no disco anterior, aqui Ricardo Machado não se atém ao acadêmico, entrega-se de corpo e alma à canção. Faz da poesia a palavra cantada, dilacerada pela emoção. A sua voz alcança a beleza estética que tanto foi sugerida, em um momento de pura emoção lírica, atingindo um apogeu no fim das estrofes, revelando finalmente o timbre ideal, perseguido e traduzido na essência. Nesta interpretação, o cantor é revelado em seu esplendor vocal.

“É necessário a nova abolição
Pra trazer de volta a minha liberdade
Se eu pudesse gritaria, amor
Se eu pudesse brigaria, amor
Não vou, não quero”

E o bom momento do álbum segue com “Fadas” (Luiz Melodia), atingindo outro ápice. Luiz Melodia é daqueles compositores que crava no existencialismo solto em palavras que sugerem imagens, fragmentos de momentos. Suas canções têm um toque que se casam com a voz feminina. Ricardo Machado mostra-se extremamente seguro, em um à vontade que lhe permite conduzir com brilho os fragmentos poéticos da mensagem do autor. Os bandolins simulam as guitarras portuguesas, dando um toque de fado contemporâneo, leve e sem o gosto da lágrima. Suave, de ritmo que se mescla entre uma valsa e um fado, proporcionando um dos pontos altos do cantor, que aqui já se faz soberano, encantador, usando do privilégio rítmico que só os que nascem com o dom do cantar conseguem atingir sem que se esforce muito. Ricardo Machado absorve todos os movimentos de idas e vindas da poesia rabiscada do compositor das quadras do Estácio.

“Devo de ir, fadas
Inseto voa em cego sem direção
Eu bem te vi, nada
Ou fada borboleta, ou fada canção”

Visita aos Anos Oitenta e Um Outro Momento Mágico

Noite do Prazer” (Arnaldo Brandão – Cláudio Zolli – Paulo Zdanowski) dá uma quebra momentânea ao clima alcançado pelas faixas anteriores. Traz a leveza estética que lhe é peculiar. Exercício contundente para a voz, que desde a primeira faixa mostrou-se ancha. Sucesso dos anos oitenta, a canção não se furta em deixar um leve trave de uma época que já se foi. Ricardo Machado consegue articular todas as palavras, principalmente no verso “tocando B. B. King sem parar”, desfazendo a ambigüidade que sempre se lhe ficou enraizada, quando todos cantaram “trocando de biquíni sem parar”. Cumpre bem a proposta, mas não empolga. É o momento menor de um disco brilhante. É como se o cantor deixasse nos anos oitenta o seu fascínio pela canção. “Noite do Prazer” chega sem fôlego, visivelmente datada, presa aos resquícios da geração do desbunde, que dava os seus últimos suspiros na década da queda das ideologias.

“A noite vai ser boa
De tudo vai rolar
De certo que as pessoas
Querem se conhecer
Se olham e se beijam
Numa festa genial”

Mas as surpresas não se findaram, pelo contrário, chega com fôlego um outro grande momento, “Desenho de Giz” (João Bosco – Abel Silva). Cantando inicialmente em um tom mais grave, Ricardo Machado navega na canção com domínio técnico, perdendo-o por instantes para a emoção, alcançado o lirismo supremo vociferado por agudos perfeitos, magnetizando o metal da voz, atraindo como um ímã os ouvintes. Veste-se de sublime coragem para cantar o amor e os seus labirintos, sem fazê-lo extenuante, sem que lhe embace a delicadeza poética. As palavras sopradas e articuladas com perfeição, uma característica do cantor, perdem o academicismo proposto no primeiro álbum, ganhando a dimensão lírica do timbre metálico, a emoção vincada quando traduzidas na melodia, diluindo-se em efeitos provocados pelas várias vozes aqui por ele usadas. Consegue conciliar a pronúncia silábica com o lirismo extenuante da voz, unindo de forma estética definitiva a poesia e a melodia, impregnando-lhe a suavidade de um canto conduzido pelo etéreo. Assim como em “Autonomia”, a voz de Ricardo Machado expele beleza, desenhando não uma estética de giz, mas de sofisticada nanquim tatuada na pele dos sentimentos.

“Quem quer viver um amor
Mas não quer suas marcas, qualquer cicatriz
A ilusão do amor
Não é risco na areia, é desenho de giz
Eu sei que vocês vão dizer
A questão é querer desejar, decidir
Aí diz o meu coração
Que prazer tem bater se ela não vai ouvir”

Frenética Arrancada Final

Perdão Você” (Carlinhos Brown – Alaim Tavares) ressalta a verve de cantor lírico que Ricardo Machado traz na bagagem. Dando um toque de sofisticação, ele dispensa os instrumentos musicais, ousando interpretar toda a canção em capela, acrescentando-lhe um vocal próprio de fundo. Para completar o efeito, convida Ana Cláudia Casaca, com quem divide um delicado dueto. Desenhando uma erudição moderna, a ousadia não chega a traduzir um momento de grande esplendor, mas não decepciona em sua beleza estética. Ana Cláudia Casaca mostra com segurança a beleza da sua voz. Ricardo Machado consegue um bom momento, mas que nada evidencia a genialidade que já alcançou até aqui. Talvez seja o único momento do disco que traz aquele intimismo academicista do primeiro disco, sem que risque em nada toda a proposta aguda e ousada aqui diluída.

“Sei que a tendência
Anda nas frestas
No decidir da mente
É como se perder de Deus
E eu não quero
Eu não quero me perder
Eu não quero te perder
Perdão Você”

Surpreendentemente, o disco chega ao fim com uma velocidade estonteante, através da irreverente “Não Enche” (Caetano Veloso), uma daquelas canções de Caetano Veloso de tirar o fôlego de quem a canta. Letra provocativa, com termos que satirizam a amada, quase que ofensivamente, traz quilômetros de palavras vociferadas em tom frenético. Ricardo Machado aceita o desafio e freneticamente, não perde nenhuma sílaba das palavras arrancadas em uma melodia que não se deixa pausar, numa pulsação veloz. A canção surge divertida, agradável, de fácil assimilação não fosse uma letra sem fim, labiríntica, difícil de ser cantada e assimilada no todo. Ricardo Machado passa por todas as armadilhas dos ritmos, por todas as palavras de uma poesia quase psicodélica. Mostra-se tranqüilo, seguro, num prelúdio de despedida do álbum que lhe garante a qualidade de um grande intérprete, já maduro e pronto.

“Harpia! Aranha!
Sabedoria de rapina
E de enredar, de enredar
Perua! Piranha!
Minha energia é que
Mantém você suspensa no ar
Pra rua! Se manda!
Sai do meu sangue
Sanguessuga
Que sabe sugar
Pirata! Malandra!
Me deixa gozar, me deixa gozar
Me deixa gozar, me deixa gozar…

O disco é encerrado como foi iniciado, com “Seduzir” (Djavan), em forma de vinheta, cantada em capela:

“Cantar é mover o dom
do fundo de uma paixão (…)
(…) Revelar todo o sentido”

Nunca os versos de Djavan foram cantados com tanta sinceridade e, sinceridade, é a palavra chave do canto de Ricardo Machado, em um trabalho delicado, de sofisticada composição estética, de precisão na escolha de um repertório que não se perde, mas que se acrescenta a cada faixa, de uma voz que já se mostra técnica e emotivamente conciliada, expandido-se nas suas possibilidades, cada vez mais buscando por novos desafios. “Ricardo Machado – Volume 2” empolga pela honestidade de um trabalho límpido, pela tenacidade de um artista que tenta superar as limitações de um mercado fechado e cruel, pela tradução de que o cenário musical brasileiro tem muito a oferecer por aí, em sensíveis obras de autores independentes. Cabe a nós descobrirmos e divulgar estas pérolas tão docemente escondidas dentro de uma ostra de carcaça sólida chamada MPB.

Ficha Técnica:

Ricardo Machado 2
Produção Independente

Produção e Seleção de Repertório: Ricardo Machado
Direção Musical: Ricardo Machado e Ricardo Calafate
Técnico de Estúdio: Ricardo Calafate e Ricardo Cidade
Técnicos de Mixagem e Masterização: Ricardo Calafate e Ricardo Cidade
Arranjos: Ricardo Calafate
Arranjos Vocais: Ricardo Machado e Ricardo Calafate
Fotos: Jorshey Stúdio
Projeto Gráfico: Ricardo Machado
Processamento de Imagens: Gabriel Nunes
Arte Final: Gabriel Nunes
Realização Gráfica: Artes Gráficas e Editora Exímia
Idealização de Texto: Ricardo Machado
Colaboração: Nelson Almeida, Leandro Marzulo, Fernanda Veloso, Solange V. Santos, Rogério M. Santos
Gravado no Estúdio Usina
Agradecimentos Especiais de Ricardo Machado: Ricardo Calafate, Ana Cláudia Casaca, Ricardo Cidade, Nelson Almeida, Gabriel Nunes, Márcio Amorim, Afonso Martins, Leandro Marzulo, Fernanda Veloso, Filipe Affonso, Rogério Machado, Solange Veloso, Lúcia Regina, Odete Faria, Adyl Faria, Augusto Santos e a todos que apoiaram este projeto. Agradeço a Deus

Músicos Participantes:

Violão Aço: Ricardo Calafate (Faixas “Quem Tem a Viola”, “Sem Dizer Adeus”, “Primavera” e “Noite do Prazer”)
Violão Nylon: Ricardo Calafate (Faixas “Sem Dizer Adeus”, “Fadas”, “Desenho de Giz” e “Não Enche”)
Violão 7 Cordas: Ricardo Calafate (Faixas “Autonomia” e “Fadas”)
Guitarra Solo: Ricardo Calafate (Faixas “Quem Tem a Viola”, “My Funny Valentine”, “Noite do Prazer”, “Desenho de Giz” e “Não Enche”)
Guitarra Base: Ricardo Calafate (Faixas “My Funny Valentine”, “Desenho de Giz” e “Não Enche”)
Baixo Elétrico (Synti): Ricardo Calafate (Faixa “Quem Tem a Viola”) e Afonso Martins (Faixa “Noite do Prazer”)
Baixo Acústico: Afonso Martins (Faixa “My Funny Valentine“)
Triângulo: Ricardo Calafate (Faixa “Sem Dizer Adeus”)
Bandolim: Ricardo Calafate (Faixa “Fadas”)
Programação de Bateria: Afonso Martins (Faixa “Noite do Prazer”)
Percussão: Afonso Martins e Ricardo Calafate (Faixa “Noite do Prazer”)
Surdo, Caixa, Tamborim, Xique-Xique e Reco-Reco: Ricardo Calafate (Faixa “Não Enche”)
Vocais: Ricardo Machado
Participação Especial: Ana Cláudia Casaca (voz em “Perdão Você”)

Faixas:

1 Seduzir (Djavan) (vinheta), 2 Quem Tem a Viola (Zé Renato – Chico Chaves – Cláudio Nucci – Juca Filho), 3 Sem Dizer Adeus (Paulinho Moska), 4 My Funny Valentine (Richard Rodgers – Lorenz Hart), 5 Primavera (Cassiano – Silvio Rochael), 6 Autonomia (Cartola), 7 Fadas (Luiz Melodia), 8 Noite do Prazer (Arnaldo Brandão – Cláudio Zolli – Paulo Zdanowski), 9 Desenho de Giz (João Bosco – Abel Silva), 10 Perdão Você (Carlinhos Brown – Alaim Tavares) Participação Ana Claudia Casaca, 11 Não Enche (Caetano Veloso), 12 Seduzir (Djavan) (vinheta)

RICARDO MACHADO – SITES:

http://ricardomachadocantor.blogspot.com/

http://ricardomachadocantor.multiply.com/


CORRA E OLHE O CÉU – RICARDO MACHADO

maio 27, 2010

Numa época que o cenário musical brasileiro mostra-se instável e sem direção, que a MPB sobrevive do que se ergueu nos últimos quarenta anos, sem que se apresente criatividade e trabalhos consistentes; que o mercado assiste ao colapso das grandes gravadoras, ultrapassadas pelo fenômeno da era digital, limitadas pela falta de qualidade do que apresentou ao público nos últimos vinte anos, transformando os sertanejos em ais medíocres do brega romântico, a música de raiz afro e seus axés em movimentos vulgares de glúteos e quadris pululantes, visando assim, o lucro fácil e o sucesso instantâneo; eis que surgem trabalhos sinceros, feitos para um mercado fechado, que se nega a abraçar o medíocre, mas que paga o preço de não conseguir patrocínios, condenando boas produções ao ostracismo, sem alcançarem um grande público, mostrando-se fechadas em circuitos restritos, sem que se consiga formar uma vanguarda que dê uma lufada no óbvio.
De tempos em tempos, descobre-se uma Maria Gadu pelos bares da vida e, percebe-se que dentro da carência de uma MPB estagnada no âmago da sua genialidade temporal, existem talentos que se mantêm intactos à corrosão da falta de qualidade e ao declínio de um dos gêneros musicais mais apreciados no mundo.
É neste contexto atribulado que se me aparece Ricardo Machado, cantor carioca, dono de uma voz consistente, de timbre metálico que quando se propõe a desafiar os seus agudos, transforma a palavra dentro da melodia de uma forma estética admirável, alcançado ápices primorosos que nos trazem o puro prazer em se ouvir a boa Música Popular Brasileira.
Com dois álbuns independentes, “Corra e Olhe o Céu” e “Ricardo Machado”, o cantor oferece um trabalho límpido e de sensível sinceridade, sem em momento algum, fugir da proposta ou cair no vão dos projetos pretensiosos. Ricardo Machado propõem-se a cantar a MPB, mostrando que as canções não têm tempo e intérpretes definitivos, e que dentro de um acervo infinito, redescobrir sucessos vestindo uma voz bonita, torna-se novo e único, quase com cheiro de inédito.
Neste artigo, o primeiro álbum de Ricardo Machado se nos será apresentado, proporcionando a quem correr o risco, uma agradável surpresa dentro da arte de cantar, sem os resquícios do compromisso com as exigências do mercado. Singela, sincera, de uma beleza tênue e límpida, a obra de Ricardo Machado é um verdadeiro convite ao bom gosto, ao prazer de ouvir a Música Popular Brasileira.

Abrem-se as Faixas em Suave Romantismo

Ricardo Machado, carioca que se divide entre cantar e a profissão de dentista, traz na bagagem as raízes do cantor lírico, que se deixou seduzir pela música popular, demarcando esta característica na suavização do seu canto. Vindo do Coral da Universidade Gama Filho, foi desde sempre um apaixonado pela MPB, em especial por Gal Costa, uma influência que se estende na interpretação, vincada no lirismo melódico, distanciando-se da latência passional.
O álbum de estréia, aqui renomeado “Corra e Olhe o Céu”, traz um repertório conciso, com canções suaves, feitas por diversos autores, que se interligam em um todo, onde a melodia e a poesia são indivisíveis. Letra e melodia nivelam-se, sem jamais uma sobressair-se à outra, ponto de partida para o estilo pessoal de Ricardo Machado. Poucos como ele pronunciam todas as sílabas da canção, diluindo-as na melodia com clareza, sem arranhar a delicadeza musical, fazendo a felicidade de qualquer letrista, muitas vezes ofuscado pela música, iluminando assim, a poesia que há nas composições da MPB.
Canção da Manhã Feliz” (Haroldo Barbosa – Luiz Reis), abre o álbum. Canção que exalta o amor, que chega suave depois das tempestades, que entra como uma luz radiante em um coração discreto. Ricardo Machado sabe dosar o lirismo exato da canção, optando por um intimismo lírico, ameaçando, por alguns momentos, lançar-se na beleza metal da sua voz, contendo-se da explosão estética que pode e quer atingir, mas sem se perder da delicadeza do momento. A voz abre-se para a emoção.

“Eu abri a janela
E este sol entrou
De repente em minha vida
Já tão fria e sem desejos
Estes festejos
Esta emoção
Luminosa manhã
Tanto azul tanta luz
É demais pro meu coração”

Todo Azul do Mar” (Ronaldo Bastos – Flávio Venturini) chega como um sopro, ampliando o proposto na primeira faixa, transformando a poesia em melodia, sem ela, o canto de Ricardo Machado não faz sentido. Os floreados são salpicados como atenuantes ao convite lírico.

“Quando eu dei por mim
Nem tentei fugir
Do visgo que me prendeu
Dentro do seu olhar”

Rasgos Viscerais

O amor suave cantado nas primeiras faixas dá passagem para o existencialismo pulsante, à flor da pele de “Resposta ao Tempo” (Aldir Blanc – Cristóvão Bastos). Canção forte, que beira o precipício dos sentidos, num diálogo dilacerante entre o tempo e um sobrevivente das grandes paixões. Aparentemente simples, a canção requer fôlego para que se suba às escadas do diálogo, onde as palavras são mais amplas que a melodia, que muitas vezes mostra-se tolhida dentro das grandes frases. Nana Caymmi atravessou com passionalismo a canção. Ricardo Machado suaviza o diálogo, estreita-se nos seus labirintos e sai com maestria dos becos que se lhe abrem, mantendo o fôlego das palavras, ao contrário da interpretação de Nana, que às vezes o parece perder. A veia passional exacerbada que a canção sugere passa longe da suavidade estética que Ricardo Machado insiste em transformar aquilo que canta. Como discípulo de Gal Costa, prefere transformar o trágico em suportável, a dor em beleza solitária, o desespero em ludismo, a palavra em melodia sincronizada, interligada num poema cantado.

“Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver”

Se até o momento o cantor mostrou-se comportado, sedutoramente acadêmico, na quarta faixa, “Me Chama de Chão” (Paulinho Moska – Fernando Zarif – Branco Melo), ele apaga tudo e solta toda a verve escondida, sem qualquer pudor em arriscar o metal da voz em momentos que os agudos expandem as frases mais constrangedoras da música, numa deliciosa malícia. De forma visceral, ousada, ele desnuda a canção, rasga a sua mensagem, fazendo-a adoravelmente crua, desconcertante aos ouvidos mais pudicos e, arrebatadora aos que sabem os vários caminhos que se conduz o amor na sua forma bruta, na sua essência tão primitiva quanto o próprio lapidar do sentimento. Um dos melhores momentos do álbum. E também onde se revela um pouco do potencial da voz que Ricardo Machado sabe guardar tão bem, como uma surpresa em um invólucro súbito.

“Bate que sou tua porta
Bate que sou teu bife
Bate que sou teu homem
Sou teu cão (…)
(…) Me chama de chão
Me chama
Come que eu sou teu rabo
Cospe, que eu sou teu prato”

No Lirismo dos Autores do Clube da Esquina

Nascente” (Flávio Venturini – Murilo Antunes) restabelece a suavidade, chegando mansa, macia. Se as sereias trazem um canto hipnótico e fatal, os tritões sopram a melodia em um precipício que se nos arremessa aos rochedos dos sentimentos. Ricardo Machado, no seu intimismo domesticado, transforma-se no tritão em alto mar, cantante e solitário!

“Clareia manhã
O sol vai esconder a clara estrela
Ardente
Pérola do céu refletindo
Teus olhos”

Travessia” (Milton Nascimento – Fernando Brant), a mais definitiva canção de Milton Nascimento, passou pelas mais diversas vozes da MPB, vestindo desde a densidade claustrofóbica de Elis Regina à interpretação em estilo épico do autor. Foi tão explorada, que por muito tempo tornou-se sem novidades. Ricardo Machado propõe-se em transformar o óbvio em algo seu, conseguindo dar uma identidade própria, o que lhe acentua a intuição e o estilo. Atravessa toda a dor pungente da canção e, quando o desabrochar da melodia eleva a voz no verso “vou soltar o meu pranto” e se espera o ápice de “vou querer me matar”, ele quebra o tom, baixando-o subitamente, fazendo com que o ouvinte desenhe na mente uma imagem a cair no vão de um precipício. Efeito notável, mostrando como o cantor resiste ao passionalismo erguido, optando pelo lirismo poético.

“Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedras, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar”

De Paulinho da Viola a Cartola

Deixando o universo dos mineiros do Clube da Esquina, Ricardo Machado mergulha no samba macio de Paulinho da Viola. “Coração Leviano” (Paulinho da Viola), é interpretada com concisão, preservando a delicadeza da beleza estética que o cantor impõe. Discretamente, murmura alguns agudos, retraindo-se para não desconstruir a proposta inicial. Insere no final, um rasgo meteórico de “Insensatez” (Vinícius de Moraes – Tom Jobim), num arremate entre o samba e a Bossa Nova cariocas.

“Ah coração teu engano foi esperar por um bem
De um coração leviano que nunca será de
Ninguém”

Corra e Olhe o Céu” (Cartola – Dalmo Casteli), amplia a proposta do álbum. A voz mostra-se quente, transitando as possibilidades, arriscando os graves, concebendo um ludismo romântico, vertido nas sílabas melódicas, na percepção da sensibilidade autoral. A canção alinhava toda a proposta do álbum, selando os vários universos de autores diferentes apresentados por Ricardo Machado. É o momento que se identifica com precisão o intimismo do cantor e a expansão da sua sensibilidade, a sofisticação na escolha do repertório e a sua paixão pela genuína MPB.

“Linda!
No que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olhe o céu
Que o sol vem trazer
Bom dia”

Ricardo Machado mostra-se seguro e à vontade no universo de Cartola. Segue o rastro do mestre com a faixa “Acontece” (Cartola). Mais uma vez deixa fluir o timbre metálico, que emerge quase que sufocado dentro do intimismo acadêmico que mantém coerente, sem nunca ferir a beleza exposta e a subtender a que se esconde no mais sublime âmago. Apesar de mais duas faixas, é como se ele se despedisse aqui, encerrando o delicado e sofisticado repertório, no qual transitou com domínio pleno e suavidade envolvente.

“Esquece o nosso amor, vê se esquece
Porque tudo na vida acontece
E acontece que eu já não sei mais amar
Vai chorar, vai sofrer, e você não merece
Mas isso acontece”

A décima faixa talvez seja o grande equívoco do álbum. “Canção da Manhã Feliz” (Haroldo Barbosa – Luiz Reis), volta em um dueto com Márcia Coelho, que apesar da beleza da voz, mostra-se menor quando Ricardo Machado entra, reforçando o tom lírico que impregnou na primeira faixa, fazendo deste curto momento um ápice isolado. Uma terceira voz (Eduardo Coelho), junta-se aos dois, num encerramento bonito, mas que nada acrescenta à sofisticação do repertório e à beleza das interpretações solitárias de uma grande voz.
E o ápice final vem com “Bachianas Brasileiras nº 5” (Heitor Villa Lobos), onde Ricardo Machado acentua as raízes de cantor lírico. A ousadia não torna a proposta do álbum pretensiosa, imprime-lhe o carimbo do bom gosto, afirma toda a sofisticação que se manteve da primeira à última faixa. Encerra um trabalho ímpar, de um cantor que ao penetrar com coragem no universo da MPB, dá ao repertório escolhido uma identidade própria, despindo-o de qualquer estigma que se lhe exija um repertório próprio, feito de inéditas.
Longe de se mostrar “crooner”, Ricardo Machado revela-se um cantor de personalidade arraigada, de timbre agradável e de possibilidades múltiplas. O álbum é acadêmico, por ser o primeiro, aquele em que o cantor quer e precisa acertar. Mas dentro deste academicismo, há uma beleza rara, uma promessa de uma grande voz, um gostinho de quero mais aos ouvintes.

Ficha Técnica:

Ricardo Machado – Corra e Olhe o Céu
Produção Independente

Produção, Coordenação e Seleção de Repertório: Ricardo Machado
Técnico de Estúdio: Ricardo Calafate
Técnicos de Mixagem e Masterização: Vanderlan Júnior e Cláudio Louro
Arranjos: Vanderlan Júnior
Concepção da Capa: Ricardo Machado
Fotos: Jorshey Stúdio
Arte Final: Cláudio Louro
Gravado no Estúdio Usina
Mixado e masterizado no Estúdio Groove
Agradecimentos Especiais de Ricardo Machado: À minha família, Cláudio Louro, Vanderlan Júnior, Ricardo Calafate, Maurício Capistrano, Maurício Rizzo, Márcia Coelho, Dudu e a todos que apoiaram a realização deste trabalho

Músicos Participantes:

Violão Eletro-Acústico: Ricardo Calafete (Faixas “Canção da Manhã Feliz”, “Todo Azul do Mar”, “Resposta ao Tempo”, “Me Chama de Chão” e “Nascente”) e Maurício Rizzo (Faixa “Acontece”)
Violão Acústico: Maurício Capistrano (Faixas “Travessia”, “Coração Leviano”, “Corra e Olhe o Céu”, e “Bachianas Brasileiras número 5”)
Teclados e Programação de Bateria: Vanderlan Júnior
Vocais: Ricardo Machado
Participações Especiais: Márcia Coelho (voz e vocal em “Canção da Manhã Feliz”) e Eduardo Carvalho – Dudu (vocal em “Canção da Manhã Feliz”)

Faixas:

1 Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa – Luiz Reis), 2 Todo Azul do Mar (Ronaldo Bastos – Flávio Venturini), 3 Resposta ao Tempo (Aldir Blanc – Cristóvão Bastos), 4 Me Chama de Chão (Paulinho Moska – Fernando Zarif – Branco Melo), 5 Nascente (Flávio Venturini – Murilo Antunes), 6 Travessia (Milton Nascimento – Fernando Brant), 7 Coração Leviano (Paulinho da Viola), 8 Corra e Olhe o Céu (Cartola – Dalmo Casteli), 9 Acontece (Cartola), 10 Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa – Luiz Reis) Participação Especial Márcia Coelho, 11 Bachianas Brasileiras nº 5 (Heitor Villa Lobos)

RICARDO MACHADO – SITES:

http://ricardomachadocantor.blogspot.com/

http://ricardomachadocantor.multiply.com/


DOCES BÁRBAROS – ENCONTRO TELÚRICO NA MPB

maio 7, 2010
O encontro entre os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia com Gal Costa e Gilberto Gil, aconteceu bem antes da fama que os consagraria para sempre na história da MPB. Os contrastes das personalidades, vozes e estilos, construíam inexplicavelmente, uma unidade que nos primeiros dez anos de suas carreiras, foram afunilando de forma tão delineadamente explícita, tornando-os quadrigêmeos siameses.
Vindos da Bahia, percorreram um longo caminho, marcado pelo talento e sucesso; pelos estigmas da ditadura militar e da moral vigente; pela quebra da estética da música brasileira; pela angústia do exílio, e, pela consolidação de quatro sólidas carreiras individuais. Separados pela efervescência da Tropicália, os quatro só se iriam reunir outra vez, em 1976, formando os Doces Bárbaros.
Momento conturbado e genial da carreira de Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil – os Doces Bárbaros -, encontro meteórico, mas definitivo, deixou o legado de um álbum duplo ao vivo, um filme, um compacto duplo gravado em estúdio, e a memória de um grande espetáculo, que mesmo decepado no auge com a prisão de Gilberto Gil, não perdeu a sua eloqüência e magnificência histórica, teatral e musical.
Doces Bárbaros”, álbum duplo de 1976, traz uma gravação ao vivo precária, com grande deficiência técnica, sem que se lhe tire o registro daquele momento sublime. Na época do lançamento não foi bem compreendido pela crítica e pelo público, que não percebiam a unidade invisível do disco, posto que cada artista manteve a sua característica, fazendo dos contrastes a genialidade que só o tempo pôde decifrar. As faixas trazem o último fôlego tardio da era “flower power”; o sincretismo religioso dos baianos; o rock diluído da Tropicália; canções do amor extremado; tudo reunido de forma alegre, lúdica e quase circense. É um momento raro da MPB, em que se constrói um estilo que une a década de 1960 com a de 1970, introduzindo o que se iria ver na década seguinte, onde a MPB tornar-se-ia uma voz feminina através do canto de Maria Bethânia e Gal Costa; e Caetano Veloso e Gilberto Gil cravando definitivamente na verve dos grandes compositores do país.
Doces Bárbaros”, disco e filme, o marco das diferenças de cada um em um canto dissonante, barbaramente único. Depois de 1976, por duas vezes, o grupo voltou; em 1994, homenageando a escola de samba carioca Mangueira, e em 2002, num encontro apoteótico na praia de Copacabana. Mas nada foi igual àquele instante de fecunda criatividade juvenil, que surgiu no inverno e encerrou-se numa conturbada primavera de um ano marcado por grilhões da repressão militar, e pela beleza da música que se construía maior e mais possante do que qualquer tanque da caserna.

Juntos no Mítico “Nós, Por Exemplo

No início dos anos sessenta, jovens e talentosos cantores e compositores, tiveram suas vidas convergidas em Salvador, na Bahia. Era a geração que, alguns anos depois, faria de vez a transição da rádio para a televisão, que apesar de estar instalada no país há mais de dez anos, era totalmente incipiente.
Em 22 de agosto de 1964, o Teatro Vila Velha, em Salvador, era inaugurado, abrindo as cortinas e recebendo no seu palco um grupo de jovens inquietos e inquietantes, desconhecidos do grande pública, mas singularmente talentosos. Eram eles Maria da Graça (Gal Costa), Caetano Veloso, Maria Bethânia, Antonio José (Tom Zé), Gilberto Gil, Fernando Lona, Antonio Renato (Perna Fróes), Djalma Corrêa e Alcyvando Luz. Era a estréia do mítico “Nós, Por Exemplo”. O sucesso foi tamanho, que gerou uma segunda versão do espetáculo. O ápice do show era a voz agreste e seca de Maria Bethânia em contraste com a voz doce e aguda de Maria da Graça, cantando em dueto a melancólica “Sol Negro” (Caetano Veloso).
Na seqüência de “Nós, Por Exemplo”, veio “Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova”, reunindo quase todos os integrantes do primeiro show, estreando-se no Teatro Vila Velha, em novembro de 1964. No grupo, a harmonia entre os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia com Maria da Graça e Gilberto Gil, era o que sustentava o espetáculo, fazendo deles promissores artistas.
A fama não demorou a vir. Maria Bethânia foi vista no palco por Nara Leão, que ficou fascinada por aquela voz potente e tão diferente das demais. Na ocasião, a cantora fazia o mítico espetáculo “Opinião”. Impossibilitada de fazer uma temporada tão longa devido a problemas vocais, Nara Leão sugeriu que a então desconhecida Maria Bethânia a substituísse. Assim, a baiana foi a primeira a deixar o grupo, rumando para o sudeste, onde seria a revelação de 1965. Na bagagem, Maria Bethânia levou “Sol Negro”, gravado em dueto com Maria da Graça em 1965, no seu primeiro álbum.
O grupo voltaria a reunir-se nos palcos do Teatro de Arena, em São Paulo, em setembro de 1965, no show “Arena Canta Bahia”, dirigido por Augusto Boal. Maria Bethânia era a única do grupo que já tinha a carreira lançada profissionalmente, alcançando grande prestígio. Na seqüência veio “Tempo de Guerra”, com texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. O show já não contava com Caetano Veloso, que retornara para Salvador. Mais uma vez, Maria Bethânia foi a estrela do espetáculo, que trazia ainda uma Maria da Graça intimista e pouco à vontade. As apresentações que reuniam os quatro baianos nos palcos encerraram-se.
Em 1967, parte da unidade do grupo veio com o lançamento de “Domingo”, primeiro álbum de Caetano Veloso e de Maria da Graça, já transmutada com o ressoante nome de Gal Costa. O álbum trazia ainda a essência bossa nova que caracterizara o show “Nós, Por Exemplo”. Ainda naquele ano, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa seriam protagonistas de um dos mais marcantes movimentos da MPB, a Tropicália.
O movimento tropicalista uniu ainda mais os baianos, mas deixou de fora Maria Bethânia, que por escolha pessoal, não quis se envolver. Os tempos eram difíceis, e os baianos traziam uma irreverência que assustava a moral conservadora que sustentava a ditadura militar. As atitudes que sabotavam os costumes sociais e morais da época, era o que de fato incomodavam os militares, não as suas convicções ideológicas, que estavam longe do engajamento político das esquerdas da época. A Tropicália explodiu as suas notas dissonantes pelo Brasil. Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil alcançaram a fama. O movimento foi bruscamente encerrado com a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil, em dezembro de 1968, culminando com o exílio dos dois em Londres, que se iria estender de 1969 a 1972.
Passada a fase caudalosa da Tropicália, o exílio, e o namoro com a geração underground, ou do desbunde; Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil, tinham carreiras sólidas e prestigiadas na primeira metade da década de setenta. Em 1975, completava dez anos que não se juntavam os quatro nos palcos. O encontro era ansiado por todos os fãs, tornando-se inevitável.

A Convocação de Maria Bethânia

Partiu de Maria Bethânia a idéia de um espetáculo que reunisse os quatro baianos mais famosos da sua geração. Assim, em 1976, a cantora convocou o irmão e os dois amigos para um encontro no palco, desta vez, todos já profissionais de sucesso, com técnica e carisma para a realização de um espetáculo memorável.
Maria Bethânia, que por anos sofrera o estigma da canção “Carcará” (João do Vale – José Candido), entrava em uma nova fase da sua carreira, abandonando os álbuns teatrais, realizando um disco por inteiro de música, “Pássaro Proibido”, assumindo um estilo que a iria transformar na cantora mais ouvida no país, com o álbum “Álibi”, em 1978. Depois de “Carcará”, a cantora teve um grande sucesso que explodiu nas paradas musicais de então, “Coração Ateu” (Sueli Costa), graças ao sucesso da novela “Gabriela”, onde fazia parte da trilha sonora, em 1975. Com “Pássaro Proibido”, a cantora alcançaria um outro grande sucesso com “Olhos Nos Olhos” (Chico Buarque). Ampliaria o seu público, até então fechado em um grupo elitizado e de grande teor intelectual.
Gilberto Gil vinha de um dos seus maiores sucessos da década de 1970, “Eu Só Quero Um Xodó” (Dominguinhos – Anastácia), em 1973, sendo constantemente requisitado pelo movimento estudantil, que tomava um novo fôlego após ter seus líderes exilados, presos, desaparecidos ou mortos. Lançara, em 1975, o álbum “Refazenda”, iniciando em agosto daquele ano, uma turnê pelo país, com um show homônimo.
Caetano Veloso, após dois anos sem lançar um álbum, voltou, em 1975, ao mercado discográfico com dois discos, “Jóia” e “Qualquer Coisa”. Na época, era constantemente cobrado por uma falta de definição ideológica, sendo acusado de alienação pelos engajados que esperavam, após o exílio, uma posição mais arrojada do cantor ante a situação política do país.
Gal Costa vinha de um momento particularmente feliz. Após sofrer críticas mordazes contra o seu show e álbum “Cantar”, em 1974, ficou dois anos sem lançar um LP. Em 1975 disparou nas rádios e na televisão com “Modinha Para Gabriela” (Dorival Caymmi), tema de abertura da telenovela “Gabriela”. O sucesso proporcionou um show com Dorival Caymmi e o lançamento do álbum, “Gal Canta Caymmi”, no início de 1976, que lhe rendeu prestígio e mais uma canção em abertura de telenovela, “Só Louco” (Dorival Caymmi), tema principal de “O Casarão”, de Lauro César Muniz.
Foi neste contexto que Maria Bethânia fez a convocação. Gilberto Gil abandonou a excursão do seu show “Refazenda”, para que se pudesse dedicar ao projeto. Gal Costa e Caetano Veloso aderiram com grande entusiasmo. Estava gerado o clima para o reencontro em palco, dos quatro baianos.

Doces Bárbaros, o Show

No lançamento do filme “Doces Bárbaros”, de Jom Tob Azulay, em DVD, em 2009, foi amplamente divulgado que o encontro entre os baianos deu-se para a comemoração dos dez anos de carreira dos quatro. Cronologicamente, 1976 não assinalava marco algum, pois Maria Bethânia e Gilberto Gil já tinham discos gravados há mais de onze anos; Gal Costa e Caetano Veloso ainda iam nos nove anos da estréia profissional com o álbum “Domingo”. Para finalizar, o último encontro de todos juntos datava de 1965, portanto, 1976 marcava um reencontro que teve uma ausência de onze anos.
Em 1974, Gal Costa, Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram o álbum “Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia”, gravado no mítico Teatro Vila Velha, em Salvador, demarcando os dez anos do teatro. Os shows foram feitos em paralelo, não havendo um encontro entre os três. Foi o que mais chegou próximo de um reencontro, mais tropicalista do que o todo.
Reza a tradição de que Maria Bethânia teria sonhado com a reunião dos quatro em um show. A idéia contagiou o grupo, e em duas semanas comporiam o repertório que faria parte do show. Até mesmo Gal Costa e Maria Bethânia, arriscaram-se como co-autoras de duas das canções. As exceções foram para músicas de Dorival Caymmi; Herivelto Martins e David Nasser; Waly Salomão; e, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.
Gilberto Gil e Caetano Veloso tinham por objetivo gravar o álbum em estúdio, mas Gal Costa e Maria Bethânia decidiram que o disco seria registrado ao vivo. Em maio de 1976, os quatro entraram em estúdio para a gravação de um compacto duplo, com as faixas “Chuck Berry Fields Forever” , “São João, Xangô Menino”, “Esotérico” e “O Seu Amor”, sendo lançado em julho daquele ano.
Após exaustivos ensaios, no dia 24 de junho de 1976, doze anos depois do histórico “Nós, Por Exemplo”, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Gilberto Gil reencontravam-se em palco, formando o grupo que chamaram Doces Bárbaros. A estréia dos Doces Bárbaros foi no Anhembi, em São Paulo. Show romântico, com roupas coloridas, ludismo circense, sensualidade latente, repertório arrojado e inédito, numa dilatada sintonia de quatro estilos diferentes.
O momento era histórico. O grupo abraçava com fôlego o encontro. Agendaram dez cidades brasileiras para a apresentação do show. Por insistência de Gilberto Gil e Caetano Veloso, incluíram Florianópolis, capital de Santa Catarina, no roteiro. Seria naquela cidade do sul do país que o reencontro teria uma interrupção brusca. No dia 7 de julho, uma operação truculenta da polícia de Florianópolis prendeu Gilberto Gil e o baterista do show, Chiquinho Azevedo, indiciados por porte de maconha. A notícia ecoou pelo Brasil, gerando uma acirrada polêmica.
Recolhido em uma cadeia pública, Gilberto Gil foi, por decreto de um juiz, internado no Instituto Psiquiátrico São José, próximo a Florianópolis. Ali permaneceria até 20 de julho, para que se submetesse a tratamento ambulatorial no Sanatório Botafogo, no Rio de Janeiro. Naquele ano a ditadura militar, que aos poucos perdia o apoio das famílias mais moralistas e conservadoras, usou da punição a artistas para agradar alguns setores. A tropicalista Rita Lee também seria presa por uso de drogas, passando pela humilhação pública e moralismo da caserna.
Acalmado o escândalo que envolvera a prisão de Gilberto Gil, o grupo retomou o show algum tempo depois da interrupção, fazendo uma curta e bem-sucedida temporada no Canecão, no Rio de Janeiro. Durante a primeira semana de shows no Canecão, foi gravado ao vivo, o álbum duplo “Doces Bárbaros”, que seria lançado em outubro de 1976.
O material visual do espetáculo foi registrado por Jom Tob Azulay, resultando em um filme homônimo, que só teria a sua estréia nos cinemas nacionais em 1978. O filme registrou a prisão de Gilberto Gil. Já na primeira década de 2000, quando o cantor tornou-se ministro da cultura do governo do presidente Luis Inácio da Silva, o registro do incidente adiou o lançamento do filme em DVD, só sendo possível em 2009, com Gilberto Gil já fora do ministério.

Doces Bárbaros, o Álbum

Gravado ao vivo e lançado em outubro de 1976, “Doces Bárbaros” é um álbum duplo, no formato de vinil, com dezessete canções distribuídas em dezoito faixas. Tecnicamente traz gravações sujas, com várias deficiências. É um trabalho único nas carreiras de Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso. A capa de tons entre o preto e o castanho fuscos, traz a fotografia da cabeça dos quatro bárbaros convergindo, com Maria Bethânia e Gilberto Gil em cima, e, Caetano Veloso e Gal Costa embaixo. O fundo é de uma cor laranja intensa, sendo azul na contra-capa.
O repertório é quase todo de autoria de Gilberto Gil e Caetano Veloso, com exceção de três faixas. A diferença dos Doces Bárbaros para outros grupos vocais é que as vozes não soam como uma, não constituindo arranjos harmônicos, demarcando as diferenças de cada um. Há momentos que a voz aguda e doce de Gal Costa sobressai aos demais, o mesmo acontecendo com a voz grave de Maria Bethânia, sendo as de Gilberto Gil e Caetano Veloso as que mais se confundem em uma só. Os homens fazem a harmonia do canto, as mulheres contrastam os timbres peculiares das suas vozes, únicas na MPB. Gal Costa é a voz do grupo, o centro intocável, docemente bárbara.
O primeiro disco traz apenas sete canções, longas, divididas em dois lados. “Os Mais Doces Bárbaros” (Caetano Veloso) abre a aventura musical. Alegre, já de inicio estabelece a proposta do álbum, com as quatro vozes explodindo as suas diferenças. Os florões acentuam a voz de Gal Costa, e as mulheres rasgam a canção. Por mais de seis minutos é anunciada a invasão bárbara, trazendo na mesma mensagem afoxés, orixás, sincretismo cristão, astronaves, cordões, hino flower power, numa aventura que destila ventos tropicalistas. Pela primeira vez temos uma Maria Bethânia tropicalista, movimento do qual se negara fazer parte.

“Com amor no coração
Preparamos a invasão
Cheios de felicidade
Entramos na cidade amada
Peixe espada, peixe luz
Doce bárbaro Jesus
Sabe quem é otário

Peixe no aquário nada”

Fé Cega, Faca Amolada” (Milton Nascimento – Ronaldo Bastos) foge dos autores bárbaros, sendo uma das três faixas de compositores diferentes que transitam pelo disco. Iniciam juntos, mas Maria Bethânia conduz a canção, com Gal Costa em um vocal contundente nos refrões. O grito é instigante, provocador, pronto para o protesto ou para a polêmica. É a busca de uma liberdade em mensagem velada, feita numa época ofuscada por uma triste ditadura. O grupo pode ser doce, mas não deixa de ser bárbaro.

“Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai, ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada”

Atiraste Uma Pedra” (Herivelto Martins – David Nasser), quebra a rebeldia, trazendo um antigo samba canção, da época da briga musical e pública entre Herivelto Martins e Dalva de Oliveira. Na canção os versos são divididos pelas quatro vozes, demarcando solitariamente cada timbre, até que se encontram todas na segunda parte. Emoção pura, dentro da tristeza do fim de um grande amor. Ou mesmo da quebra do sonho do reencontro com a prisão de Gilberto Gil. É o momento inconfundível do estilo de Maria Bethânia sobressaindo-se ao tropicalista. Adorável releitura da época das grandes vozes do rádio, feita pelas vozes mais contemporâneas do Brasil.

“Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus erros não viu
E o teu pranto enxugou”

Pássaro Proibido” (Caetano Veloso – Maria Bethânia), é a primeira interpretação a solo do disco, cantada por Caetano Veloso. Feita para o show homônimo de Maria Bethânia, seria também o titulo do álbum da cantora em 1976. Caetano Veloso veste-se de cantador nordestino, com entonação de florões de um canto ímpar, mesclando um tom hindu, dando uma atmosfera mística ao grito do pássaro proibido, que finalmente estava livre. Sem medo de ser maldito, ou de quebrar os estigmas de uma moral em evolução social. Com a canção, era encerrado o lado um do primeiro disco de vinil.

A Visão Alucinógena da Criação do Universo

O lado dois do primeiro disco contém apenas três canções, iniciando com o dueto de Caetano Veloso e Gilberto Gil em “Chuck Berry Fields Forever” (Gilberto Gil), trocadilho com a canção dos Beatles “Strawberry Fields Forever” (John Lennon – Paul McCartney). Frenético rock, que na letra faz homenagem às raízes africanas dos músicos da América, em especial a Chuck Berry, considerado o pai do rock and roll. No verso de duplo sentido “os quatro cavaleiros do após-calipso”, lê-se uma referência aos quatro Beatles ou aos quatro bárbaros, de acordo com ângulo que se interpreta a mensagem de Gilberto Gil. Apesar de bem ritmada, a canção é daquelas de bastidores, que passa longe das paradas de sucesso, mas jamais se deixam vincar pelo tempo. “Chuck Berry Fields Forever” tem as cores e os tons dos anos setenta, mas sopra os ventos atemporais das canções. Numa primeira leitura não se lhe encontra o carisma, que nada na ironia da letra e nos trocadilhos inteligentes, prontos para serem digeridos.
Gênesis” (Caetano Veloso), traz de volta o fôlego dos quatro baianos, com um coro luxuoso nos florões. Por quase nove minutos percorremos pela instigante cosmogonia caetaniana, numa visão flower power da origem do mundo. Através de uma rã, ou jia, vamos compondo em encaixe místico à composição do universo, no torpor de uma visão alucinógena, arrancada de experiências no mundo das visões provocadas. Longa, a canção é um dos melhores momentos do primeiro disco, senão o melhor. A mais contundente na mensagem proposta por aquele espetáculo colorido, alucinante e alucinógeno.

“Primeiro não havia nada
Nem gente, nem parafuso
O céu era então confuso
E não havia nada
Mas o espírito de tudo
Quando ainda não havia
Tomou forma de uma jia
Espírito de tudo”

A atmosfera alucinógena espalha-se e deságua nas águas da filosofia da geração do desbunde com a radical “Tarasca Guidon” (Waly Salomão). Gilberto Gil e Caetano Veloso arrastam-se no início da canção, que se debate melancólica, quase parada, até que Maria Bethânia arranca o ritmo do som dos atabaques, dando vida à monotonia da melodia. Filosofia sem objetivo e saída, o desbunde de Waly Salomão está no auge da sua criação, também a sua euforia metafísica, assinando na época como Waly Sailormoon, num jogo de palavras em inglês que define bem o sal de marinheiro com a embriaguez da lua enganadora. Por mais de sete minutos a canção atravessa diversos universos; desde os nordestinos estivadores do litoral de São Paulo, que trabalham como escravos, sonhando apenas com a volta a Santo Amaro, na Bahia, para poderem participar das festas tradicionais do lugar; às águas do Ganges, consagradas pelos hindus. Letra radical e gigantesca, mescla sons afros com afrescos do desbunde, numa mensagem ilógica, encerrando o primeiro disco do álbum.

“Trabalho o ano inteiro
Na estiva de São Paulo
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Só pra passar fevereiro em Santo Amaro
Ô, diê, ô, dia
Ô, diê, ô, dia”

Momentos Esotéricos de Beleza Musical

O segundo disco traz a apoteose do show, sua veia latente e o perfil em carne viva de cada cantor. O lado um do disco dois começa com os homens, Gilberto Gil e Caetano Veloso, aquecendo a atmosfera para receberem as mulheres, em dueto na complexa “Eu e Ela Estávamos Ali Encostados na Parede” (Caetano Veloso – Gilberto Gil – José Agripino de Paula). Os compositores baianos conseguem aqui o que parecia impossível, extrair uma melodia do texto confuso de José Agripino de Paula. O “eu” do texto faz amor com “ela”, Marilyn Monroe, no livro “Panamérica”. Há uma sensualidade latente e ambígua dentro da lentidão da melodia e na complexidade do texto.
A atmosfera erótica deixada pelos homens abre caminho para as mulheres, Gal Costa e Maria Bethânia, que na apresentação do show exalam sensualidade e provocação, aqui reveladas no calor das vozes, em dueto na mítica “Esotérico” (Gilberto Gil). O ímpeto do sentimento contrapondo com o místico, divindade e humano interferindo nos mistérios da mente e do afeto. Um dos mais belos duetos feitos por Maria Bethânia e Gal Costa, algumas vezes magníficas juntas desde “Sol Negro”. A voz grave e passional de Maria Bethânia assume a chama ativa, revelando o humano, Gal Costa, voz doce e solitária, numa passividade existencial enaltece o divino. Fundidas as vozes, envolvem um comovente mundo do esoterismo das paixões, em momento de pura sedução dos contrastes dos cantos, unidos em um mesmo sentimento.

“Não adianta nem me abandonar
Porque mistérios sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais”

Eu Te Amo” (Caetano Veloso), solo de Gal Costa, atinge um dos momentos mais líricos e de êxtase do show e do disco. A cantora assumiu a canção com um vigor poucas vezes alcançado na MPB, gerando aqueles instantes únicos em que a melodia e a voz casam-se com a poesia, dando dimensão épica ao canto. “Eu Te Amo” rouba o verso “Da cor do azeviche, da jabuticaba”, de uma velha canção de Ary Barroso e Luiz Iglesias, “Boneca de Piche”. O amor tem cores e gostos, negro como azeviche e sensual como o sabor das jabuticabas, claro e dourado como a luz do sol. O lirismo da letra adquire cor na voz de Gal Costa, fazendo com que o simples atinja o sublime, as notas musicais a perfeição. A amplitude da voz alcança o ápice na última palavra de cada estrofe, desencadeando o grito da alma da cantora quando canta “eu te amo”. Momento que daria uma tese, não fosse o brilho ímpar dos outros três bárbaros.

“Eu nunca te disse
Mas agora saiba
Nunca acaba, nunca
O nosso amor
Da cor do azeviche
Da jabuticaba
E da cor da luz do sol”

O romantismo suave, estético e plural continua a fluir na faixa seguinte, “O Seu Amor” (Gilberto Gil). Canção minimalista, com os versos divididos e cantados separadamente por cada bárbaro, voltando a formar um coro nos refrões. Vai fluindo em uma construção que se eleva em degraus melódicos e de vozes. Por debaixo do romantismo minimalista, está a provocação do refrão “ame-o e deixe-o…”, numa resposta à famosa frase de propaganda do regime militar no início dos anos setenta: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Ao contrário da proposta repressora da ditadura, Gilberto Gil fazia um convite à liberdade de ir e de vir, ao amor livre, ao fim da paixão possessiva. Quase a brincar como em um jogral, os quatro mostram-se carismaticamente bárbaros.

“O seu amor
Ame-o e deixe-o livre para amar
Livre para amar
Livre para amar
O seu amor
Ame-o e deixe-o ir aonde quiser
Ir aonde quiser
Ir a onde quiser”

O disco dois fecha o lado um com “Quando” (Caetano Veloso – Gilberto Gil – Gal Costa), uma homenagem à tropicalista Rita Lee. Um momento raro em que Gal Costa assina a co-autoria de uma canção. Feita a seis mãos, a música é um alegre rock, em estilo de iê-iê-iê do final da década de sessenta. Assim como Gilberto Gil, em 1976 Rita Lee seria vítima da intolerância da polícia conservadora, sendo presa por porte de droga. A cantora estava grávida quando ocorreu o fato. A música é cantada por Gilberto Gil, com Gal Costa fazendo um acentuado coro. Era o reencontro dos tropicalistas, em homenagem a um dos seus ícones.

Protestos, Canções Ecológicas e Místicas

O lado dois do segundo disco era aberto com “Pé Quente, Cabeça Fria” (Gilberto Gil). Nunca o título foi tão sugestivo e premonitório quanto o desta canção, em um momento que, com a prisão de Gilberto Gil, os Doces Bárbaros viram os planos do reencontro quase que desfeitos. Talvez seja a canção que mais irritou os moralistas, pois é a mais provocativa, incitando a que se perca a calma e literalmente, que se “desça o pau” em quem se lhe atravesse o caminho. As quatro vozes cantam com vigor a provocação e, após o incidente, continuam com os oito pés muito quentes, e as cabeças frias, prontas para uma estréia gloriosa na maior casa de espetáculo da época, o Canecão do Rio de Janeiro.

“(…) Saia despreocupado
Mas cuidado por que existe o bem e o mal
Pé quente, cabeça fria, numa boa
Pe quente, cabeça fria, na maior
Pé quente, cabeça fria, na total
Saia despreocupado
Mas se alguém se fizer de engraçado, meta o pau”

Peixe” (Caetano Veloso) deixa a provocação arrebatada da faixa anterior, para mergulhar anos luz nas águas da canção ecológica. A palavra “peixe” é pronunciada em sílabas que trazem a sensação do nado de um peixe de verdade. Os graves de Maria Bethânia fazem desse nado uma sílaba caudalosa, e Gal Costa solta os agudos de forma retumbante, cabe aos homens arrematarem as sílabas nadadoras. A canção abriria a fase de bichos musicais de Caetano Veloso, que desfilaria em 1977 com o seu zoológico intrépido com as míticas “Tigresa” e “Leãozinho”. Letra pequena, quase minúscula, de melodia crescente, quase eloqüente. Também em 1977, estrearia uma nova versão televisiva, a mais famosa, de “O Sítio do Pica-pau Amarelo”, inspirada na obra de Monteiro Lobato. “Peixe” faria parte da sua trilha sonora, conduzindo as cenas pelo Reino das Águas Claras, transformando-se de vez em hino ecológico.

“Peixe
Deixa eu te ver, peixe
Verde
Deixa eu ver o peixe
Vi o brilho verde
Peixe prata”

Um Índio” (Caetano Veloso) traz outro momento mítico, de reflexão filosófica e existencialista, centraliza na figura de um índio, visto aqui como personagem mística, detentor dos segredos da Terra dominada pelo homem branco. É a redenção da causa indígena, que depois de exterminado, volta para descortinar os mistérios que os seus exterminadores não encontraram. Mais um momento transcendental de Caetano Veloso, revelado na voz potente da irmã Maria Bethânia, sendo acompanhada pelo coro dos outros bárbaros. Na mística caetaneana, fatos e personagens contemporâneos ressaltam com as suas qualidades a mensagem. Ouvimos assim, o nome do ator e lutador de artes marciais Bruce Lee, do boxeador Muhammad Ali, do índio Peri, e do grupo baiano de afoxé Filhos de Gandhi a exaltarem a volta do último índio.

“Virá, impávido que nem Muhammad Ali, virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri, virá que eu vi
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee, virá que eu vi
O axé do afoxé, filhos de Gandhi, virá”

Fechando o Ciclo Com “Nós, Por Exemplo

O misticismo profético dá passagem para o sincretismo religioso típico da Bahia secular, refletida nos baianos bárbaros, na canção “São João, Xangô Menino” (Caetano Veloso – Gilberto Gil). Caetano Veloso registrou durante a carreira, várias marchinhas feitas para o carnaval. Aqui, em parceria com Gilberto Gil, atira-se nas tradicionais canções juninas, mesclando-a com os mitos do candomblé. A canção traz um momento leve de festa junina, com aquela pitada baiana. Há espaço ainda para as homenagens explícitas aos trabalhos musicais dos quatro na época, sendo citados os álbuns “Refazenda”, “Qualquer Coisa”, “Gal Canta Caymmi” e “Pássaro Proibido”, de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia respectivamente. No meio, uma homenagem a Dominguinhos.

“Ai, Xangô, Xangô menino
Da fogueira de São João
Quero ser sempre menino, Xangô
Da fogueira de São João”

Depois de uma viagem inusitada por cada faixa, chega o momento de arrematar todo o trabalho, sintetizado nas origens com a canção “Nós, Por Exemplo” (Gilberto Gil), uma homenagem ao mítico espetáculo homônimo que uniu os Doces Bárbaros pela primeira vez em 1964, no Teatro Vila Velha, em Salvador. Aqui cada um evidencia a diferença dos seus cantos, numa unidade invisível, em contrastes literalmente doces e bárbaros. Soam como ecos de vozes, conforme diz a letra da melodia, construindo um todo que faz dos quatro apenas um, numa sutil ilusão de que são indivisíveis, quando apenas convergiram os seus estilos.
E o disco é fechado como começou, com “O Mais Doces Bárbaros”, aqui em uma faixa de pouco mais de um minuto. Estava selado o manifesto dos Doces Bárbaros, o maior desde o manifesto tropicalista. Alguns bons momentos do show não entraram no álbum, como “As Ayabás” (Caetano Veloso – Gilberto Gil). Em faixas sujas, estava registrado o encontro histórico de quatro dos maiores cantores e autores daquela geração: Gal Costa, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Seus nomes dispensam qualquer apresentação formal ou crítica.
Um longo tempo decorreu até que os Doces Bárbaros voltassem a promover um reencontro no palco. Convites não faltaram, mas, a partir de 1976, cada um seguiu carreiras que se tornaram cada vez mais visíveis e de grande projeção. O tradicional Festival de Montreux sugeriu um reencontro, mas não se convergiu um projeto. Em 1994, aconteceu o esperado reencontro, numa homenagem que os quatro fizeram à Estação Primeira de Mangueira, escola de samba carioca. Trouxeram um repertório diferente de 1976, com sambas tradicionais da MPB. Estavam todos no auge da técnica vocal, numa apresentação espetacular. Infelizmente não houve interesse em lançar o reencontro em álbum ou em DVD, apesar do material que se tem, e da beleza do reencontro. A escola de samba carioca retribuiu a homenagem, fazendo dos Doces Bárbaros o tema do samba-enredo daquele ano. Também em 1994, o grupo fez uma apresentação no Royal Albert Hall, em Londres.
Em 2002, os Doces Bárbaros voltaram aos palcos, em uma apresentação para mais de cem mil pessoas na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. O evento e os seus bastidores foram registrados no DVD “Outros Doces Bárbaros”, do diretor Andrucha Waddington, que apesar da qualidade técnica, não conseguiu captar a essência que Jom Tob Azulay registrou em 1976. Tão pouco os Doces Bárbaros, surpreenderam, repetindo o repertório do show original, sem lhe acrescentar uma gota da longa trajetória que caminharam quase três décadas depois. Um presente para os fãs, uma decepção para a história brilhante do grupo.

Ficha Técnica:

Doces Bárbaros
Philips
1976

Direção Geral: Caetano Veloso
Direção Musical: Gilberto Gil
Direção de Produção: Gapa e Perinho Albuquerque
Técnico em Gravação e Mixagem: Ary Carvalhaes
Assistente: Rafael Isaak
Técnico em Manutenção: Ivan A. Lisnik
Corte: Luigi Hoffer
Capa: Aldo Luiz e Flávio Império
Fotos: Frederico Confalonieri
Ilustração: Jorge Vianna
Gravado ao Vivo

Músicos Participantes:

Piano: Tomás Improta
Baixo: Arnaldo Brandão
Guitarra: Perinho Santana
Bateria: Chiquinho Azevedo
Flauta: Tuzé Abreu e Mauro Senise
Saxofone: Mauro Senise
Percussão: Djalma Corrêa

Doces Bárbaros:
Gal Costa – Vocal
Caetano Veloso – Vocal
Gilberto Gil – Vocal
Maria Bethânia – Vocal

Faixas:

Disco 1:

1 Os Mais Doces Bárbaros (Caetano Veloso)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
2 Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento – Ronaldo Bastos)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
3 Atiraste Uma Pedra (Herivelto Martins – David Nasser)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
4 Pássaro Proibido (Caetano Veloso – Maria Bethânia)
Interpretação: Caetano Veloso
5 Chuck Berry Fields Forever (Gilberto Gil)
Interpretação: Caetano Veloso e Gilberto Gil
6 Gênesis (Caetano Veloso)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
7 Tarasca Guidon (Waly Salomão)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil

Disco 2:

1 Eu e Ela Estávamos Ali Encostados na Parede (Caetano Veloso – Gilberto Gil – José Agripino de Paula)
Interpretação: Caetano Veloso e Gilberto Gil
2 Esotérico (Gilberto Gil)
Interpretação: Gal Costa e Maria Bethânia
3 Eu Te Amo (Caetano Veloso)
Interpretação: Gal Costa
4 O Seu Amor (Gilberto Gil)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
5 Quando (Caetano Veloso – Gilberto Gil – Gal Costa)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
6 Pé Quente, Cabeça Fria (Gilberto Gil)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
7 Peixe (Caetano Veloso)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
8 Um Índio (Caetano Veloso)
Interpretação: Maria Bethânia
9 São João, Xangô Menino (Caetano Veloso – Gilberto Gil)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
10 Nós, Por Exemplo (Gilberto Gil)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil
11 Os Mais Doces Bárbaros (Caetano Veloso)
Interpretação: Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil


O SORRISO DO GATO DE ALICE – A PERFEIÇÃO VOCAL DE GAL COSTA

abril 8, 2010

 Um dos mais belos e complexos discos de Gal Costa, “O Sorriso do Gato de Alice” é, assim como “Gal”, o psicodélico, de 1969, um momento isolado na discografia da cantora. Momento absoluto de ruptura entre a pop star e a intérprete em sua mais pura técnica e emotividade musical.
Lançado em 1993, o álbum coincidiu com a morte da mãe da cantora, Mariah Costa Penna. A voz de Gal Costa atinge o ápice da perfeição, da beleza lírica em um canto de sereia solitária, vincado nas entranhas da dor da perda.
Numa primeira leitura, descobrimos um repertório difícil, alegre e denso ao mesmo tempo, com sofisticados arranjos, muitas vezes movidos apenas pela beleza emocionante da voz da cantora e dos violões luxuosos de Paulo Belinati, Djavan, Paulinho da Viola, Marcos Pereira, Artur Maia e Gilberto Gil.
É o álbum de uma grande intérprete e apenas quatro compositores: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben Jorge e Djavan, quase um álbum autoral. Arto Lindsay aparece como quinto elemento, dividindo a parceria de duas canções com Caetano Veloso e Djavan, feitas em inglês.
O disco rompe com a forma de Gal Costa cantar, encerrando a sua fase cênica e de movimento em shows, que, a partir de 1995, com o “Mina D’Água do Meu Canto”, traria uma cantora centrada no palco, apostando na emoção da voz e no formato erudito dos recitais.
O disco deu origem a um show homônimo, considerado o mais polêmico da carreira da cantora, quando ela ao mostrar os seios no palco, escandalizou um público conservador e uma crítica que se deixou ultrapassar pela nova proposta, acostumados a mesmice da década anterior.
O Sorriso do Gato de Alice” é daqueles discos que se ouve com a alma, feito para tocar a mais pura das emoções, longe do sucesso fácil ou do amor à primeira audição. Cada faixa é feita para conquistar e apaixonar aos poucos, numa cumplicidade perene entre o ouvinte e uma das maiores vozes do mundo, aqui no auge da beleza do timbre. É um canto solitário, único, feito para atravessar o tempo e garantir a beleza de uma MPB em constante mutação.

O Sorriso do Gato de Alice, o Show

Quando gravava o disco, “O Sorriso do Gato de Alice”, Gal Costa foi surpreendida pela morte da mãe, Mariah Costa. Sob o impacto da dor, viu-se obrigada a viajar do Rio de Janeiro a Nova York, para acompanhar a mixagem e produção do disco. A emoção da dor era visível na beleza da voz posta em cada faixa.
O momento de ruptura, pelo qual Gal Costa ansiou quase uma década, finalmente chegara. Era preciso que se reinventasse a cantora, antes que o desgaste da década de oitenta a atingisse de forma indelével, como fizera com grandes intérpretes da música popular brasileira.
Movida pelo desejo de mudar a imagem de estrela da MPB, Gal Costa convidou o diretor de teatro Gerald Thomas, para dirigir o seu novo show. O diretor era conhecido pelo minimalismo histriônico das suas personagens, pela irreverência de ter posto a primeira dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, a contorcer-se e rolar pelo chão, na peça “The Flash and Crash Days”, em 1991. A obra de Gerald Thomas foi sempre marcada mais pela polêmica com o público do que pela essência da proposta.
Assim, da parceria com Gerald Thomas, nasceu o show “O Sorriso do Gato de Alice”, que teve a sua estréia em 3 de março de 1994, no Teatro Imperator, no Rio de Janeiro. Quem esperava ver Gal Costa com flores no cabelo, em cima de sandálias de salto alto, roupas coloridas e provocantes, a mostrar a exuberância que exibira no carnaval daquele ano, quando ao lado dos Doces Bárbaros, foi homenageada pela escola de samba Mangueira, espantou-se quando ela entrou descalça, vestindo uma roupa de cor opaca, a lembrar um uniforme de operária de fábricas, arrastando-se por um telhado cenográfico, fazendo gestos de uma gata assustada e perdida na escuridão da cidade. A entrada silenciosa e minimalista durou mais de quatro minutos, deixando o público carioca confuso pela demora do canto, suscitando algumas vaias.
O espetáculo corria seco, com cores de luzes fortes, a devastar a emoção do canto da sereia solitária, transformada em gata das ruas de uma cidade perdida. Gal Costa era, em palco, a própria essência da gata órfã, sozinha no mundo, amparada apenas pela magnitude da voz e da sua música.
O show atingia o apogeu da polêmica quando ao cantar os versos “Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim”, de “Brasil” (Cazuza – Nilo Romero – George Israel), Gal Costa abria a blusa e continuava a performance da música de seios de fora. A ousadia suscitou a rejeição do público carioca, que se tornara conservador, anos luz de distância daqueles cabeludos que lotaram o Teatro Teresa Raquel em 1971, no show “Gal a Todo Vapor – Fa-tal”, elegendo-a a musa da contracultura e do desbunde.
No dia seguinte, os jornais estamparam fotografias da cantora de seios à mostra. A crítica carioca mostrou-se inóspita, dizendo que a concepção de espetáculo de Gerald Thomas oprimira a cantora no palco. Gal Costa declararia em várias entrevistas que não se arrependia da ousadia, que o espetáculo tinha cumprido a proposta ansiada por ela, a da ruptura com o óbvio. Quando estreou em São Paulo, o público paulistano recebeu com maior receptividade aquele que se tornou o espetáculo mais polêmico da carreira da cantora.

Da Bahia à Mangueira

O Sorriso do Gato de Alice”, traz uma das mais belas capas da discografia de Gal Costa. Concebida por Luiz Zerbini e Barrão, tem fotografias de Milton Montenegro. Na capa, a imensa boca vermelha de Gal Costa exibia o seu sorriso mítico, contrastando com o desenho de um gato sem boca, na contracapa, feito por Zerbini. O sorriso é da cantora, que o roubou ao gato. As cores vermelha e azul dão a beleza gráfica ao encarte. As tonalidades lembram as usadas no espetáculo musical “Alice”, de Bob Wilson, com música de Tom Waits e texto de Paul Shmidt, estreado em 1992, no Thalia Theater de Hamburgo. A atmosfera do “Alice” de Bob Wilson e de “O Sorriso do Gato de Alice”, contemporâneos, não deixa de nos levar a uma comparação, como se um tivesse inspirado o outro.
Produzido por Arto Lindsay, é um dos álbuns mais sofisticados e bem-cuidados da cantora, gravado no Rio de Janeiro e em Nova York, dando um ar internacional na sua brasilidade. Conta com a presença de grandes músicos ao violão, entre eles Marcos Pereira, Paulo Belinati, Paulinho da Viola, Djavan e Gilberto Gil.
O álbum traz onze faixas, tendo apenas cinco compositores. Foi o último disco de Gal Costa concebido em forma de vinil, com lado A e lado B, sendo o penúltimo a ser lançado naquele formato.
Bahia, Minha Preta” (Caetano Veloso) inicia o disco. Momento de inspiração poética de Caetano Veloso, a canção desfila pela Bahia mítica, um encontro de Gal Costa com a sua terra, em um momento de perda. Passa pela canção personalidades da Bahia, descortinando a terra de todos os sons e de negras raízes, pronta para o novo milênio que viria em breve, e para atravessar o mar rumo a todos os cantos do mundo.

“Bahia minha preta
Como será
Se tua seta acerta o caminho e chega lá?
E a curva linha reta
Se ultrapassar esse negro azul que te mura,
O mar, o mar?”

Com “Bumbo da Mangueira” (Jorge Ben Jor), o som do samba desce o morro, em uma homenagem à escola de samba Mangueira, numa combinação sempre feliz, de Gal Costa e Jorge Ben Jor, desde a época da Tropicália. A cantora consegue o gingado certo do som único do compositor de diversos elementos musicais, com raiz de samba rock, sem perder os ecos do samba genuíno.

Errática, a Acertar o Mais Belo Canto

Errática” (Caetano Veloso), talvez seja a mais bela canção feita por Caetano Veloso para Gal Costa na década de 1990. Complexa, melancólica, solitária, feita para o timbre e emoção da cantora que mais compreende o compositor e a sua estética musical. Foi de um verso desta canção que se retirou o título do álbum. Acompanhada pelos violões de Paulinho da Viola e Paulo Belinati, Gal Costa atinge o ápice de uma emoção delineada pela melodia, destilada por uma dor de ruptura e melancolia de uma letra difusa, mas contundente.

“O sorriso do gato de Alice
Se se visse
Não seria menos ou mais intocável
Que o teu
Pausa de fração de semifusa
Pode conter tão grande tristeza”

Mãe da Manhã” (Gilberto Gil) traz uma temática rara, senão única, na discografia de Gal Costa, uma exaltação a uma santa da igreja católica. Ela já tinha gravado temas do candomblé, como “Oração de Mãe Menininha” (Dorival Caymmi), e cantando em shows “Ave Maria no Morro” (Herivelto Martins). Numa concepção que lembra as milenares procissões católicas, a voz de Gal Costa multiplica-se em várias, sendo acompanhada somente por Paulo Belinati, que se divide entre o violão e a viola caipira, propiciando um momento em que os agudos da cantora transbordam em hino de fé. Gal Costa voltaria ao tema, cantando em seu show “Acústico”, em 1997, “Ave Maria” (Jaime Redondo – Vicente Paiva).

“Vós que sois mãe do filho do pai
Do nascer do dia
Abeçoai minha voz meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar”

Gratidute” (Caetano Veloso – Arto Lindsay) revela o intimismo da cantora, mais uma vez interpretando uma canção em inglês, uma constante em sua obra desde o primeiro disco a solo, em 1969. Letra de sutil melancolia, marcada pelas cordas de aço do violão de Paulo Belinati. Gal Costa traz aqui a voz límpida, lapidada pela técnica e lirismo do timbre.
O lado A do vinil encerrava-se com “Eu Vou Lhe Avisar” (Jorge Ben Jor), canção que quebrava o misticismo ou a melancolia romântica das faixas anteriores. O ritmo de Jorge Ben Jor é frenético, deixando em segundo plano uma certa filosofia capenga em suas letras leves. A suavidade dessa filosofia benjorgiana encontra consistência nos agudos de Gal Costa, transformando sempre a melodia em algo irresistível. Aqui os agudos vão ao alto quando ela pronuncia “trivial”, encerrando a primeira parte de um complexo disco.

A Perfeição da Técnica e Emoção do Canto

Nuvem Negra” (Djavan), abria o lado B. Foi a canção mais tocada do disco. Mais um grande momento de Gal Costa a interpretar Djavan. Quase uma lamúria diante da dor, da perda, da fase obscura da vida em que todos nós, por um motivo ou outro, de tempos em tempos mergulhamos. A voz de Gal Costa toca na mais profunda solidão da melodia, fazendo dela um canto límpido em uma brisa gelada.

“Passa nuvem negra
Larga o dia
E vê se leva o mal
Que me arrasou
Pra que não faça sofrer
Mais ninguém”

Lavagem do Bonfim” (Gilberto Gil), música inédita feita para a cantora, remete novamente ao sincretismo baiano, suas crenças e tradições. Se em “Mãe da Manhã” a procissão é de louvor à virgem na mais tradicional liturgia, aqui o louvor vem em ritmo de festa, luz, cores, suor e alegria, na celebração mais mística da Bahia.

“Timbau, pandeiro, som de guitarra
Tanta roupa branca, tanta algazarra
Zona franca de folia, fé e devoção
Foto de lambe-lambe alegria
Vai passar pelo moinho da Bahia
Mais de trinta graus de calor, amor e emoção”

Serene” (Djavan – Arto Lindsay), é uma das mais belas canções do disco. Djavan e Paulo Belinati acompanham ao violão, a voz de Gal Costa. Percebe-se o aprimoramento da cantora em interpretar uma canção em inglês, deixando menos acentuado o sotaque que muitas vezes interferiu em uma voz pronta para declamar o que há de mais belo na poesia musical em português.
A dualidade da alma, descrita em uma contundente “Você e Você” (Gilberto Gil). Gal Costa agarra a canção de forma visceral, fazendo dela um blues existencialista. A letra é um soco no ar, na violência que nos cerca o eu, que nos divide entre o canto e o espanto, em uma rima exata.

“Você que ataca pra se defender
Que beija a lona pra poder vencer
Você num canto
Apanha tanto
Enquanto o outro você bate demais
Deus do céu quanto sangue pelo chão
Seu irmão pede o seu perdão”

E o existencialismo zen de Ben Jor encerra este disco excepcional, com “Alkahool” (Jorge Ben Jor). Letra gigantesca, que deixaria sem fôlego um intérprete menos preparado. Gal Costa caminha segura, em tons que nos faz pensar na multiplicidade da sua capacidade vocal, comparada com as várias fases que atravessou da primeira a última faixa. E o sorriso da voz de Gal Costa fecha o disco, iludindo os sortilégios de Alice, afinal aquela boca vermelha, em tamanho gigante, apenas pedia a quem a ouvia:

“Porque você não me vem me dar um beijo
Um beijo de amor e de desejo
Porque eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você”

Com “O Sorriso do Gato de Alice”, um novo sorriso abraçaria a carreira de Gal Costa, que passaria a investir mais no canto sem grandes orquestras, sem grandes jogos cênicos, voltada para a emoção perpétua da perfeição da voz.

Ficha Técnica:

O Sorriso do Gato de Alice
BMG Ariola
1993

Produção: Arto Lindsay
Direção Artística: Migel Plopschi
Arranjos: Paulo Belinati e Artur Maia
Gravação e Mixagem: Eddie Garcia
Produção Executiva: Léa Millon
Estúdio: BMG Ariola, Rio de Janeiro
Estúdio Gravação Adicional e Mixagem: Eletric Lady Studios, Nova York
Assistentes de Gravação Rio de Janeiro: Cláudio e Dalmo
Assistente de Gravação Nova York: Hal Belknap
Masterização: Scott Hull (Masterdisk, Nova York)
Capa: Luiz Zerbini e Barrão
Fotos: Milton Montenegro
Agradecimentos do Produtor: Tia Léa, Eddie Garcia, Jeff Young, Denise Amorim, Monique Gardenberg, Silvia Gardenberg e Duncan Lindsay
Agradecimentos e Dedicatória de Gal Costa: “Agradeço aos meus amigos Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Paulinho da Viola, Arto Lindsay, Tia Léa e Guto Burgos pela força e carinho e dedico este disco à minha mãe Mariah Costa Penna.”

Músicos Participantes:

Violão: Paulo Belinati, Paulinho da Viola, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Djavan, Marcos Pereira, Artur Maia e Oswaldo Lenine
Violão de Aço: Paulo Belinati
Guitarra: Celso Fonseca, Arto Lindsay e Mark Ribot
Teclados: Paulo Calazans
Percussão: Marcos Suzano, Armando Marçal, Paulo Belinati, Artur Maia, Mônica Millet e Marcelo Costa
Baixo: Artur Maia
Baixo de 6 Cordas: Nico Assumpção
Bateria: Jurim Moreira e Carlos Bala
Viola Caipira: Paulo Belinati
Seresta: Paulo Belinati
Flauta: Mauro Senise e Marcelo Martins
Marimba: Jota Moraes
Pandeiro, Surdo e Caixa: Marcos Suzano
Cavaquinho: Paulo Belinati
Conga: Armando Marçal
Piston com Surdina: Frank London
Repenique com Vassourinha: Marcos Suzano
Samples: Mark Anthony Tompson
Backing Vocals: Gal Costa e Artur Maia

Faixas:

1 Bahia, Minha Preta (Caetano Veloso), 2 Bumbo da Mangueira (Jorge Ben Jor), 3 Errática (Caetano Veloso), 4 Mãe da Manhã (Gilberto Gil), 5 Gratitude (Arto Lindsay – Caetano Veloso), 6 Eu Vou Lhe Avisar (Jorge Ben Jor), 7 Nuvem Negra (Djavan), 8 Lavagem do Bonfim (Gilberto Gil), 9 Serene (Djavan – Arto Lindsay), 10 Você e Você (Gilberto Gil), 11 Alkahool (Jorge Ben Jor)


VIDA – ÁLBUM EXISTENCIALISTA DE CHICO BUARQUE

março 5, 2010

Com a abertura política do regime militar, deflagrada gradualmente a partir de 1978, Chico Buarque deixou de ser o autor proibido pelo regime, o compositor perseguido e de obra amputada pela censura. A obra discográfica, a teatral e a feita para o cinema, passaram a ter maior liberdade de expressão, deixando as metáforas implícitas, para a poesia da palavra mais visceral.
Após a abertura, “Calabar”, peça proibida na primeira metade da década de 1970, foi liberada e encenada, em 1980. No contexto da amenização da censura, “A Ópera do Malandro” chegou aos palcos e aos discos na íntegra, sem pressões ou cortes. Chico Buarque vivia no fim daquela década, uma fase criativa inspirada por personagens retratadas nos palcos e nas telas de cinema. Criou trilhas sonoras inesquecíveis e definitivas, percorrendo através da poesia e da melodia, o universo feminino, existencialista e sexual, atingido a alma humana como poucos autores de MPB conseguiram.
Vida”, álbum de 1980, traz as personagens de Chico Buarque direto dos palcos de teatro, das telas de cinema, para o universo da Música Popular Brasileira. A proposta iniciada com o disco “Meus Caros Amigos”, em 1976, adquire maior teor existencialista neste álbum, onde a imagem e a melodia travam uma instigante cumplicidade, revelando a maturidade de um compositor em busca da sua perfeição interior e do perfeccionismo estético. Cada faixa descortina um mundo contemporâneo, em que a tragédia das crônicas jornalísticas e o delírio do amor vivido ao extremo da paixão, caminham paralelamente em “Mar e Lua” e “Eu Te Amo”; a paisagem pitoresca de uma Angola incipiente e de um Brasil desnudado muito além dos centros urbanos, alinhavam uma estética poética humana em “Morena de Angola” e “Bye Bye Brasil”.
Personagens humanas, dramáticas, femininas e masculinas, intimistas e de extremos, são diluídas em melodias perfeitas e canções definitivas, que faz de “Vida” um dos álbuns mais belos e existencialistas de Chico Buarque. Com ele era enterrada para sempre a fase do autor proibido e censurado, agora livre para exalar as emoções poéticas, em uma nova forma de protesto, o do eu e do existir.

Duas Canções Vindas dos Palcos

Produzido por Sérgio de Carvalho, “Vida” foi lançado no fim de 1980. O disco revela um momento de transição entre a abertura política e o fim gradual da censura política e moral. Como se ainda tateasse nos novos tempos, a mensagem das canções faz a ruptura com as limitações moralistas, passando levemente pelo protesto político, expondo o íntimo dos sentimentos, levados à exaustão das paixões, das incertezas dos atos de amor. A capa branca, trazia no centro o retrato de Chico Buarque, desenhado por Elifas Andreato, dando-lhe um ar penetrante, quase a saltar. Feito nos moldes do vinil, trazia doze faixas distribuídas em dois lados. Trazia arranjos luxuosos de Francis Hime em dez faixas; de Tom Jobim e Roberto Menescal em duas faixas.
Vida” (Chico Buarque), canção que dava título ao álbum, abria o repertório. A música “Geni e o Zepelim”, tema do travesti Genivaldo, de “A Ópera do Malandro”, inesperadamente tornou-se um grande sucesso nas rádios da época, gerando polêmicas e a certeza de que a censura moralista havia chegado ao fim. A canção acabou por inspirar o espetáculo “Geni”, em 1980, de Marilena Ansaldi e José Possi Neto. “Vida” foi feita para a peça, como se fosse a apoteose final de “Geni e o Zepelim”. É o encontro do homem com o epílogo da sua consciência, uma retrospectiva instigante, profunda, sofrida, ao âmago da existência e das escolhas de uma vida, que, quando parece asfixiar, retorna de forma positiva. O encontro entre o limiar dos palcos da vida e o além das cortinas do desconhecido. O questionamento de todos ante os limites da alma e da sua essência. A canção começa com a voz intimista de Chico Buarque, explodindo em um final veloz, quase que de apoteose. “Vida” foi gravada por diversos intérpretes da MPB, como Simone e Maria Bethânia, mas a interpretação de Chico Buarque continua a ser a mais contundente, verdadeira e definitiva.

“Vida, minha vida
Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida
Nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens
De olhos sombrios
Mas, vida, ali
Eu sei que fui feliz
Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis”

A segunda faixa, “Mar e Lua” (Chico Buarque), também veio dos palcos, do espetáculo “Geni”. Inspirada numa crônica de jornal, que contava o suicídio de duas mulheres que se amavam e, discriminadas pela moral do lugar onde viviam, atiraram-se às águas de um rio. De uma forma poética, quase doce, Chico Buarque descreve o momento final desse amor clandestino, amenizando a morte com metáforas. É o amor que dilata a moral, perdendo-se no desespero das barreiras. A sexualidade é acentuada entre desejos impulsionados pela paixão proibida, pela sensação da natureza, sob o deslumbramento da luz da lua e a imensidão do mar dos preconceitos. A canção tornou-se um hino do amor lésbico, sendo gravada por vários intérpretes.

“Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
Todo mundo conta
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar”

Canções do Amor Desesperado

O samba modesto de Chico Buarque alegra o disco com a faixa “Deixe a Menina” (Chico Buarque). Os jogos de sedução e ciúme das rodas de samba; a beleza da morena e a ginga do seu samba a ofuscar o ciúme do marido, amuado pelos cantos, enquanto ela deslumbra os sambistas e os seus desejos. Irônico, divertido, o autor lembra que “por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz”, máxima que serve para todos aqueles que arriscam o amor de uma mulher deslumbrante.
E se o amor quando perde o esplendor dói, a sua perda corrói o sorriso, a superação do seu fim é o próprio renascimento dos sentimentos. “Já Passou” (Chico Buarque), descreve esse momento de alívio, em que a dor é substituída por uma alegria com cicatrizes, que nos faz respirar e ter a certeza de que sobrevivemos ao fim de uma paixão. Intimista, mas de palavras fortes, a canção é o universo de Chico Buarque na sua mais pura essência.
Bastidores” (Chico Buarque), é quase um hino ao desespero diante do amor perdido. A canção foi feita para Cristina Buarque, irmã do autor, sendo também gravada por Cauby Peixoto. Foi na voz de um passional e eloqüente Cauby que a música alcançou a sua verdadeira face, sendo um sucesso que se colou à pele do cantor. A interpretação de Chico Buarque é intimista, mas de um brilho ímpar, que só o seu autor pode dar. É um universo feminino, que se adapta ao universo dos amores conturbados das paixões entre iguais. A estrela, imponente no palco, desejada por todos, não passa de um eco do seu canto nos bastidores, com os sentimentos em carne viva, sofrendo pelo abandono. É no palco que ela dilui a dor da perda, encantando e seduzindo a platéia. É no seu desespero pulsante que a arte encontra a veia do carisma, a luz do canto e do palco.

“Cantei, cantei
Jamais cantei tão lindo assim
E os homens lá pedindo bis
Bêbados e febris
A se rasgar por mim
Chorei, chorei
Até ficar com dó de mim”

Qualquer Canção de Amor” (Chico Buarque), é uma daquelas canções menores dentro de um disco de grande esplendor. Intimista, é um jogo de versos e palavras que, sutilmente selam o valor da paixão dentro das melodias, os sentimentos cantados, jamais calados, não importando o autor, mas a mensagem.
E para amenizar todas as questões existencialistas levantadas nas faixas anteriores, “Fantasia” (Chico Buarque), chega como um carrossel que nos conduz a cantar pelo céu da poesia do autor. Palavras antes proibidas pela censura, como “gozo” no sentido de orgasmo, já não sofriam represálias. Um convite à distração da dor que nos aflige através do ato de cantar, de ouvir a melodia e percorrer sem medo a fantasia proposta, abraçar sem restrições, um álbum de rara beleza.

As Marcas do Amor na Pele

O lado B do álbum era aberto com “Eu Te Amo” (Chico Buarque – Tom Jobim). Sob a regência e o piano de Tom Jobim, Chico Buarque fazia um dueto com Telma Costa. A canção foi feita para o filme homônimo de Arnaldo Jabor, protagonizado por Sonia Braga. Mais uma vez a paixão é mesclada por uma estética sonora e visual, evidenciada por um erotismo latente em cada verso, cada gesto que se pode visualizar e quase que sentir o odor dos corpos. Dentro de um quarto, os amantes perdem a individualidade, dilacerando os caminhos nos desenhos dos corpos, rompendo as saídas nas malhas da paixão. Se o amor é vivido de forma tensa, o fantasma da perda dispara suas garras diante do medo da separação dos corpos, da vida além do leito. É a paixão sem saída, vivida na plenitude do seu erotismo, no encaixe da sensualidade, na linguagem dos corpos e das metáforas, envoltas pelos objetos; sapatos, vestidos, paletós, revelam a paisagem dos amantes. “Eu Te Amo” é uma das mais belas canções do amor erótico feitas na MPB.

“Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu (…)
(…) Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair”

De Todas as Maneiras” (Chico Buarque) é o retrato cruel do desgaste da paixão, do vazio dos sentimentos, vividos em uma intensidade que gerou a sua ruptura. No avesso dos sentimentos, palavras e agressões servem para o afago do que se rompeu, do momento de paz em que o amor é uma guerra. Gravada por Maria Bethânia, em 1978, no álbum “Álibi”, a canção não encontra a dramaticidade cênica da cantora baiana, mas não perde a intensidade diante do intimismo de Chico Buarque. Consegue um dos melhores momentos do disco, quase que inesperadamente.

Paisagens Humanas de Angola e do Brasil

Morena de Angola” (Chico Buarque), gravada quase que em simultâneo com Clara Nunes, alcançou grande sucesso na voz da cantora. Era o primeiro contacto cultural registrado em música entre Brasil e Angola, países de língua portuguesa, colonizados por Portugal. Recém independente, Angola era uma jovem nação que seria devastada pela guerra civil. Com um som a lembrar os ecos africanos, a canção trazia uma alegre paisagem da alma da mulher angolana. A canção foi composta após uma viagem do autor e de vários cantores a Angola, em 1980. O último verso faz uma homenagem ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), considerado subversivo pelo regime militar, por ser de esquerda e apoiado logisticamente por Cuba. Assim como “Tanto Mar”, a canção é uma homenagem às nações irmãs.

“Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na
canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que
mexe com ela
Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe
de Benguela
Será que tá no remelexo e abandonou meu peixe na
tigela”

Bye Bye, Brasil” (Chico Buarque – Roberto Menescal), foi feita sob encomenda, para o filme homônimo de Carlos Diegues. Conta-se nos bastidores, que Chico Buarque demorou a pôr letra na canção de Roberto Menescal; só entregando a composição já quando se encontrava em estúdio, pronta para ser gravada. Conta-se ainda, que trazia uma letra enorme, e que Carlos Diegues cortou a metade. “Bye Bye Brasil” mostra uma aquarela realista de um país plural. Através da visão de uma personagem ao telefone, o Brasil interior ou litoral, é descrito em suas várias faces. De beleza quase que épica dentro da MPB, traz uma melodia de diferenças sutis, difícil de ser interpretada, pois não tem um final, a letra é um convite à improvisação, quase que a terminar como começou, ou seja, com um belíssimo meio, e um final sem ponto. É o momento em que a ideologia transita no disco, com sutis referências a um Brasil poucas vezes retratado, ou mesmo cantado. “Bye Bye, Brasil”, já refletia como um moinho, os ventos da abertura pela qual passava o país.

“Bye Bye, Brasil
A última ficha caiu
Eu penso em vocês night and day
Explica que tá tudo okay
Eu só ando dentro da lei
Eu quero voltar, podes crer
Eu vi um Brasil na tevê
Peguei uma doença em Belém
Agora já tá tudo bem
Mas a ligação ta no fim
Tem um japonês trás de mim (…)”

O álbum era encerrado com a visceral “Não Sonho Mais” (Chico Buarque). É a terceira música do disco com uma vertente de inspiração homossexual. Feita para o filme “A República dos Assassinos”, em 1979, de Miguel Faria Jr, a canção relata o sonho de um travesti, no cinema vivido pelo ator Anselmo Vasconcelos, com o seu amado, um policial corrupto, pertencente ao esquadrão da morte. Odiado por todos, o amante é perseguido no sonho do amado, num dos mais violentos momentos da canção brasileira. Assim como em “Geni e Zepelim”, o autor utiliza metáforas escatológicas, muito em moda na época. Apesar do ritmo alegre e frenético da canção, a ironia da letra é servida crua, em carne viva, em uma violência explícita. No verso “Comemos os ovo”, propositalmente escrito fugindo da combinação do plural, mostra a castração feita sem piedade, sendo os testículos devorados, submetendo o amado a mais perversa das humilhações contra a virilidade. No fim, há o momento de conciliação, em que após um sonho tão cruel e libertador, o travesti volta à submissão do amado, e pede que não o castigue, pois não terá outro sonho tão devastador. “Não Sonho Mais” foi sucesso na voz de Elba Ramalho. Encerra convulsivamente o álbum “Vida”, sendo chancelada pela abertura política, longe da censura de outrora.
Vida” é o álbum do existencialismo humano, das questões psicológicas que se nos intercalam. Das conseqüências das escolhas, da liberdade da sexualidade de uma geração que estava preste a sair de uma longa ditadura que duraria duas décadas. Era a MPB a ser porta voz daqueles novos tempos, e Chico Buarque o poeta maior do encontro sublime da palavra com a melodia.

Ficha Técnica:

Vida
Philips
1980

Produção e Direção: Sérgio de Carvalho
Arranjos e Regências: Francis Hime, Tom Jobim e Roberto Menescal
Técnicos de Gravação: Ary Carvalhaes, Paulo Sérgio “Choco”, Jairo Gualberto, Luís Cláudio Coutinho e João Moreira
Auxiliares de Gravação: Julinho, Alberto, Rui Paulo e Charles
Arregimentação e Cópias: Clovis C. Mello
Mixagem: Sérgio de Carvalho e Luigi Hoffer
Montagem: Ricardo Pereira
Estúdio: Polygram, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro
Capa: Elifas Andreato
Arte Final: Alexandre Huzak
Coordenação Gráfica: Al. Do Luís

Músicos Participantes:

Piano: Francis Hime, Tom Jobim e José Roberto Bertrami
Oberheim: José Roberto Bertrami
Violão: Roberto Menescal, Artur Verocai, Octavio Burnier e Chico Buarque
Ovation: Octavio Burnier
Baixo: Luizão, Novelli e Luiz Alves
Bateria: Paulinho Braga e Elber Bedaque
Guitarra: Vitor
Percussão: Chico Batera, Sérgio, Chacal, Novelli, Cidinho, Paulinho Proença, Armando, Geraldo, Canegal e Nei
Trompete: Maurílio, Marcio Montarroyos e Waldir
Trombone: Maciel, Silvio e Manoel
Tuba: Zênio
Flautas: Danilo Caymmi, Paulo Jobim, Paulo Guimarães, Celso e Lenir
Clarinete: Netinho e Botelho
Cavaquinho: Alceu
Violinos: Alzik, Vidal, Vetere Guetta, Faini, José Alves, Lana, Pompeu, Perrota, Arnaud, Arraes, Teodoro, Walter Hack, Carlos Hack, Francisco, Assis e Abreu
Spalla: Pareschi
Violas: Geraldo Azevedo, Hindenburgo, Macedo, Fideles, Penteado e Stephany
Cellos: Marcio Mallard, Alceu, Jaquinho Morenbaum, Katz, Ranevsky, Andréa, Georgio e Iberê
Ritmo: Nei, Canegal, Trambique, Cuscus, Cláudio e Jorginho
Vocal, Assobios e Palmas: Chico, Sérgio, Novelli, Bardotti, Antonio Pedro, Bebel, Bee, Cacá, Cristina, Danilo, Telma, Miúcha e Marku

Faixas:

1 Vida (Chico Buarque), 2 Mar e Lua (Chico Buarque), 3 Deixe a Menina (Chico Buarque), 4 Já Passou (Chico Buarque), 5 Bastidores (Chico Buarque), 6 Qualquer Canção (Chico Buarque), 7 Fantasia (Chico Buarque), 8 Eu Te Amo (Chico Buarque – Tom Jobim) Participação de Telma Costa, 9 De Todas as Maneiras (Chico Buarque), 10 Morena de Angola (Chico Buarque), 11 Bye, Bye, Brasil (Chico Buarque – Roberto Menescal), 12 Não Sonho Mais (Chico Buarque)


A ABERTURA POLÍTICA E A MPB

janeiro 31, 2010

Na conturbada década de 1960, a história da Música Popular Brasileira seria totalmente reescrita, revelando grandes músicos, cantores e compositores, que dariam um contorno definitivo a ela. Sob os ventos da Bossa Nova, uma nova mensagem estética e sonora iria gerar movimentos históricos como a Tropicália e a Jovem Guarda, essenciais para que se perceba os caminhos que a MPB seguiu na segunda metade do século XX.
Uma pulsante renovação explodia no cenário musical na década de 1960, sendo drasticamente afetada pela implantação do regime militar através de um golpe de estado, em 1964. Para manter o poder de um governo ilegítimo, a ditadura militar teve que reprimir e conter todos os seus opositores. A juventude estudantil foi a primeira a ser atingida, tendo os seus órgãos oficiais, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), sendo lançados na clandestinidade. Silenciados os movimentos, a MPB passou a ser a voz rebelde daquela juventude. Os festivais de música explodiram nas emissoras de televisão da época, promovendo um grande alcance popular e revelando para o país talentos definitivos, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Milton Nascimento e tantos outros.
Com o endurecimento do regime militar, a partir de dezembro de 1968, a MPB que se fazia na época, considerada pelo governo como porta voz da juventude universitária comunista, passou a ser vigiada e censurada, sendo classificada como subversiva.
A censura aos meios de comunicação imperou rígida por mais de uma década. Atingiu à música, aos jornais, à televisão, ao teatro, à literatura, ao cinema, às artes plásticas, nenhum meio de expressão cultural foi poupado. Ao contrário do que se pensa, não era uma censura apenas política, mas essencialmente moralista, sustentando assim, o conceito de moralidade de uma classe conservadora da população brasileira, que sob os canhões militares, desenhava um Brasil estética e moralmente perfeito. Com o declínio do apoio da elite brasileira aos militares, a revelação das torturas nos calabouços e o desaparecimento de muitos dos filhos dessa elite; o regime militar começou a enfraquecer, sendo obrigado, a partir de 1975, a acenar com uma abertura lenta e gradual, que culminaria com o fim da censura e da própria ditadura.
Em 1978 a abertura chegou às artes e, conseqüentemente, à MPB. Canções outrora proibidas, como “Cálice” (Gilberto Gil – Chico Buarque), foram liberadas. Em 1979, a Lei da Anistia trazia de volta ao país os exilados políticos. A MPB passou a ser a voz daquele novo período da história. Voltou com fôlego, deixando de ser elite e alcançando as grandes massas. De 1978, data do início da abertura do regime militar, a1985, data do seu fim, a MPB alcançou um apogeu de vendas de discos e uma influência que jamais se repetiu. É o período que podemos chamar de “A MPB da Abertura”.

A MPB e os Primeiros Anos da Ditadura

Em 1958, emergia a partir da zona sul carioca, um movimento musical que passou a ser conhecido como Bossa Nova. Incipientes e talentosos músicos e cantores como Tom Jobim e João Gilberto, lançavam um novo conceito de MPB, que influenciaria todos os movimentos vindouros. Paralelamente ao surgimento da Bossa Nova e à sua expansão para a década de 1960, a juventude brasileira alcançava um nível de conscientização e de organização políticas jamais vistas. A UNE, principal órgão estudantil, passou a ter grande influência nas decisões políticas do país. Tradicionalmente ligada aos partidos de esquerda clandestinos, a UNE concentrava uma pululante militância de jovens artistas e intelectuais. No início da década de 1960 criou o Centro Popular de Cultura (CPC), idealizado pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. O recém-criado órgão cultural estudantil trazia Ferreira Gullar como diretor do setor de poesia e literatura; Leon Hirszman dirigia o setor de cinema; Vianinha o de teatro; e, Carlos Lyra o de música. Grandes espetáculos e eventos foram realizados, em sua maioria, na sede da própria UNE. Na parte musical, nascia o que se pode chamar de MPB universitária. Com a chegada da ditadura militar, a UNE foi posta na ilegalidade e o CPC deixou de existir.
Ainda no princípio da ditadura militar, a resistência da música ao regime instaurado trazia demarcada evidência. Nara Leão, musa da Bossa Nova, deixou o movimento e abraçou o tradicional samba dos morros cariocas. Literalmente, a cantora subiu o morro e trouxe o samba para o asfalto. No dia 11 de dezembro de 1964 estreava o “Show Opinião”, na sede do Teatro de Arena do Rio de Janeiro. Com textos concebidos por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, sob a direção de Augusto Boal, trazendo Nara Leão ao lado de legítimos sambistas das batucados dos morros, João do Vale e Zé Kéti. A produção coletiva reunia os integrantes do extinto CPC e do Arena. Teatro e música uniam-se naquele que significava o primeiro grito de protesto contra o regime militar. A canção “Carcará” (João do Vale), apresentada no show, ecoava como um grito latente de revolta da voz da MPB. Nara Leão tornava-se um símbolo da música de protesto, atraindo para si a vigilância e desconfiança do regime militar.
As limitações vocais de Nara Leão impediram que ela resistisse a uma longa temporada. Doente, a ex-musa da Bossa Nova mandou vir da Bahia uma jovem cantora desconhecida, de voz agreste e grave: Maria Bethânia.

Os Grandes Festivais de Música dos Anos 1960

A partir de 1965, a TV Excelsior, uma pioneira na renovação e definição dos programas da televisão brasileira, lançou os festivais de música, que seria o grande marco da história mais recente da MPB. Naquele ano, em abril, foi realizado o 1º Festival de Música Popular. Uma certa Elis Regina, jovem cantora gaúcha, movendo os braços no ar como se fosse um moinho atômico, encantou e empolgou o Brasil, interpretando “Arrastão” (Edu Lobo – Vinícius de Moraes). A canção venceu o festival e Elis Regina escreveu para sempre o seu nome na MPB.
Em setembro de 1965 a TV Record lançou o programa “Jovem Guarda”, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. O nome designaria um movimento musical ameno, sem pretensões ou seguimentos ideológicos, mais próximo do grande público, o que agradou aos moralistas e aos vigilantes da ditadura militar.
Em 1966, o Festival Nacional da Música Popular, premiava a vencedora “Porta Estandarte” (Geraldo Vandré – Fernando Lona). A música de protesto, através da figura engajada de Vandré, dava os contornos da linha principal dos festivais. Ainda naquele ano, em outubro, dois festivais eram realizados: o 1º Festival Internacional da Canção (FIC) transmitido pela TV Rio, futura TV Globo; e, o 2º Festival de Música Popular Brasileira, a partir de então transmitido pela TV Record. “Saveiros” (Dori Caymmi – Nelson Motta), interpretada por Nana Caymmi, ganhou o primeiro FIC. “A Banda” (Chico Buarque), interpretada por Nara Leão, dividiu com “Disparada” (Geraldo Vandré – Theo de Barros), o prêmio de melhor canção.
Os festivais, aos poucos, revelavam para o Brasil novos cantores e compositores. A nova MPB que estava sendo feita tornava-se um forte canal de oposição ao regime militar. Os grandes festivais alcançariam o auge de 1967 a 1969. Com o decreto do Ato Institucional número 5 (AI-5), em dezembro de 1968, o endurecimento do regime militar perseguiu de forma implacável a chamada MPB universitária. Sem liberdade plena de expressão, os festivais foram cada vez mais cerceados e, aos poucos, descaracterizados, minguando definitivamente.O Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, chegaria à sua quinta edição, findando em 1969, com “Sinal de Alerta“, de Paulinho da Viola, sendo a vencedora. O FIC, transmitido pela TV Globo, atravessaria a década de 1960, chegando à sétima edição, em 1972, quando “Fio Maravilha” (Jorge Ben), interpretada por Maria Alcina, vencia e encerrava, para alívio do regime militar, aquela página da história da MPB.

Os Engajados e os Tropicalistas

Se os festivais definiram uma nova linha engajada àquela MPB, em 1967, uma nova vertente mudaria todo o cenário, a instigante Tropicália, movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. “Domingo no Parque” (Gilberto Gil), não abandonava a linha de protesto engajado, mas reformulava toda a estética musical de então. “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, mudava por completo o conceito de melodia e letra, a estética entre a poesia e a música. Considerados alienados e alienantes pelos engajados, os tropicalistas sofriam com o preconceito da MPB universitária e, ao mesmo tempo, eram repudiados pelo regime militar.
Para que se perceba o paradoxo entre a música engajada e a contestação tropicalista, é necessário que se conheça as diferenças, hoje aparentemente sutis, mas que na época geravam um grande abismo entre ambas. A primeira, encabeçada por Geraldo Vandré, consistia no engajamento político da militância da esquerda, direta ou indiretamente. Era feita por jovens talentos intelectuais, dentro ou em volta do então clandestino Partido Comunista Brasileiro. Cantos de protestos tinham um objetivo claro, derrubar a ditadura militar. A segunda, liderada pelos tropicalistas, trazia uma canção de protesto social, mais próxima da ideologia do “Maio de 1968” de Paris. Para os tropicalistas, mais importante do que derrubar o regime militar, era derrubar os seus costumes morais falidos. A censura do governo era política e moralista, afinal os militares, sem a legitimidade do povo, sustentava-se através da repressão e do apoio de uma moralista classe média, que em uma visão ambígua, zelava pela moral e pelos bons costumes da família e dos brasileiros. Assim, tanto o engajamento de Geraldo Vandré quanto à subversão social dos tropicalistas, eram postos no mesmo saco e perseguidos pelo regime.
A promulgação do AI-5 permitiu que se sufocasse o que restara do movimento estudantil, perseguindo, prendendo, torturando e matando os seus líderes. A música de protesto foi aos poucos, abafada e silenciada. “Caminhando (Para Não Dizer Que Não Falei das Flores)”, de Geraldo Vandré, tornou-se um hino de resistência contra a ditadura, fazendo do seu autor o inimigo número um do regime militar, dentro da MPB. Lançada em setembro de1968, no 3º FIC, ficou em segundo lugar, provocando protestos e vaias sobre a vencedora, “Sabiá” (Chico Buarque – Tom Jobim). Às vésperas do fechamento do Congresso Nacional, a canção de Vandré foi o último grande grito de protesto da MPB dentro dos festivais. As edições posteriores foram mornas, sem a evidência de uma resistência ao regime, trazendo canções com insinuações sutis, jamais diretas. A canção de Vandré foi censurada e proibida de ser cantada ou tocada durante o tempo que durou o AI-5.
Com o endurecimento da ditadura militar, seguido de várias prisões e perseguições, muitos dos novos nomes da MPB, revelados pelos festivais, foram obrigados a seguir para o exílio, entre eles Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Geraldo Vandré e Taiguara. Aos artistas que ficaram, restou um imposto silêncio, o cerceamento ideológico e a submissão das suas obras à censura.

A MPB e a Opressão do Regime Militar

A primeira metade da década de 1970 foi sufocante para a MPB. A censura prévia à música, fez com que grandes canções fossem proibidas, indo parar nas gavetas dos seus autores. Quando o general Emílio Garrastazu Médici subiu ao poder, a guerra entre o governo e a resistência comunista foi intensa, gerando seqüestros e guerrilhas urbanas. Para combater os guerrilheiros, a tortura foi institucionalizada, a delação incentivada, e os atos culturais vigiados e silenciados, censurados com rigidez quando ofereciam qualquer tipo de contestação ao regime.
Vivendo sob vigilância constante do Estado repressivo, os autores da MPB passaram a usar metáforas de bastidores dentro das suas composições. Sob pressão e reféns do medo, as canções de protestos tornaram-se cada vez mais escassas. A censura tornou-se moralista, defendia a ideologia política do governo e a moral que lhe ladeava. O nu artístico era limitado, filmes pornográficos e políticos eram proibidos em um só pacote. Músicas com teor sensual eram consideradas tão subversivas quanto às de protesto. A lógica dos censores perdeu-se nos seus preconceitos, tornando-se absurdas, burocráticas e desprovidas de qualquer inteligência ideológica.
Em 1973, a morte sob tortura do estudante Alexandre Vanucchi Leme, o Minhoca, estudante de geologia da USP, comoveu os seus colegas. Em protesto, eles chamaram Gilberto Gil para um concerto em homenagem ao estudante morto, realizado na Politécnica. Gilberto Gil, desafiando à censura e ao regime, cantou a proibida “Cálice”. Foi a primeira manifestação estudantil desde o massacre dos seus líderes, promovida após a instituição do AI-5. Mais uma vez MPB e movimento estudantil davam as mãos, numa clara demonstração de que a resistência às atrocidades do regime não tinha sido extinta.
Na direção oposta da censura, a produção de qualidade da MPB adquiriu uma grande sofisticação, juntando com esplendor poesia e melodia. Raramente esse conteúdo chegava às grandes massas. A música de língua inglesa era soberana de vendas e de sucesso nos meios de comunicação. Cantores brasileiros, como Christian e Michael Sullivan, usavam nomes estrangeiros, compunham e cantavam sucessos instantâneos. Os sucessos nacionais não aliciavam a compra dos “long plays” de vinil, para vendê-los no mercado, as gravadoras lançavam os discos compactos, que mantinham o vigor das carreiras dos cantores de MPB. O brasileiro não tinha o hábito de ouvir um álbum inteiro do mesmo intérprete.
A censura colaborava com a falta de interesse do público, pois mantinha os shows sob severa vigilância, e os discos, muitas vezes eram mutilados pelo corte de certas canções, que apareciam sem letras, lançadas apenas instrumentalmente. Chico Buarque, o mais perseguido pela censura na década de setenta, usou de subterfúgios, como usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide, para que tivesse as suas canções aprovadas. A MPB prosseguia como um vulcão silencioso, preste a derramar as suas larvas sobre a opressão que se lhe era imposta.

O Florescer da Abertura

Em 1975, já sob o governo do presidente Ernesto Geisel, as atrocidades do governo começaram a vir à tona. A morte sob tortura do jornalista Wladimir Herzog obrigou o governo, pela primeira vez, a admitir que existiam prisioneiros torturados no país, e aquela realidade já não podia ser ignorada. Sob pressão da comunidade internacional, o governo foi obrigado a acenar com uma possível abertura política do regime.
Curiosamente, a TV Globo decidiu ressuscitar os velhos festivais, lançando, em 1975, uma edição sem grande repercussão, que trazia o ambíguo e sugestivo nome de Festival Abertura. Carlinhos Vergueiro vencia com a música de sua autoria, “Como Um Ladrão”.
A abertura viria de forma lenta, quase a exasperar. Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, que deixaria de vigorar a partir do dia 1 de janeiro de 1979. Novos ventos soprariam sobre a MPB, modificando a sua trajetória. Ainda em 1978, canções proibidas há anos foram finalmente liberadas. Chico Buarque, em seu álbum de 1978, pôde gravar três ícones da sua música engajada: “Cálice”, com participação vocal de Milton Nascimento; “Tanto Mar”, música em homenagem à Revolução dos Cravos, deflagrada em Portugal, vetada em 1975; e, “Apesar de Você”, tirada com truculência das lojas quando lançada em compacto, em 1970.
Não só a censura política foi liberada, como também a censura moralista. Se dantes a simples menção da palavra pêlo em “Atrás da Porta” (Chico Buarque – Francis Hime) era considerada obscena, a sensualidade e o erotismo explodiram na voz das cantoras de MPB. “O Meu Amor” (Chico Buarque), revelava um dueto sensual e provocativo entre duas mulheres, a canção foi registrada no disco de Chico Buarque de 1978, num dueto de Marieta Severo e Elba Ramalho, e, por Maria Bethânia e Alcione, no álbum “Álibi”, também daquele ano. “Condenados” (Fátima Guedes), gravado por Simone, declarava que a mulher estava mais “safada” e a tirar maior proveito do prazer. Gal Costa, era daquelas mulheres que só diziam sim, na memorável interpretação de “Folhetim” (Chico Buarque). As senhoras que se diziam representantes da moral e dos bons costumes da família, que com os seus rosários nas mãos marcharam pelas ruas das grandes cidades, abraçando o golpe militar, tremeram e protestaram diante de tanta ousadia. Mas o regime e a moral que elas defendiam estavam corroídos pela hipocrisia e prontos para ruírem. A MPB e as suas cantoras, a exalar talento e sensualidade, já não podiam ser caladas. A abertura chegara, ainda que lenta, mas definitiva.

A Ascensão da MPB

Com maior possibilidade de expressão, a MPB passou a chegar ao grande público. “Álibi”, álbum lançado por Maria Bethânia no fim de 1978, tornou-se no ano seguinte um fenômeno de vendas. Jamais uma cantora tinha ido tão longe em vendagem de discos no Brasil. Com “Álibi” o brasileiro passou a ouvir um disco inteiro de MPB, fazendo com que os discos compactos fossem, aos poucos, perdendo mercado. A MPB deixava de ser elite, atingindo grandes massas, mostrando que qualidade também podia ser vendável e agradar a todos.
A abertura política proporcionou a Lei da Anistia, promulgada em agosto de 1979, possibilitando o retorno dos exilados políticos. A MPB tornou-se porta voz do movimento, através das canções “Tô Voltando” (Maurício Tapajós – Paulo César Pinheiro), cantada por Simone, e, “O Bêbedo e a Equilibrista” (João Bosco – Aldir Blanc), numa interpretação antológica de Elis Regina, transformada no hino da Anistia.
Em 1979 a UNE era reconstruída, apesar de não ser reconhecida legalmente. Movimento estudantil e MPB começavam a pulsar arrebatadoramente dentro da já moribunda ditadura militar. Atenta ao fato, a TV Tupi voltou a promover um festival de música, o Festival 79 da Música Popular. Apesar de não ter obtido a repercussão esperada, o festival destacou a presença de Fagner, com “Quem Me Levará Sou Eu” (Dominguinhos – Manduka), e do então desconhecido Oswaldo Montenegro, com “Bandolins”. No ano seguinte seria a vez da TV Globo voltar a investir nos festivais. Lançou o Festival da Nova Música Popular Brasileira – MPB 80, alcançando um grande sucesso. O festival, rebatizado como “MPB Shell”, teve mais duas edições, em 1981 e 1982. Em 1985, o Festival dos Festivais seria a última grande produção do gênero feita no Brasil.
A partir de 1979, a MPB foi tomando o espaço da música de língua inglesa, ultrapassando as vendas dos discos estrangeiros no país. Novos nomes eram revelados, alcançando relativo sucesso: Zizi Possi, Diana Pequeno, Ângela Ro Ro, Joanna, Marina, Fátima Guedes, Oswaldo Montenegro, Elba Ramalho, Zé Ramalho. Muitos que há anos estavam no mercado, mas que não tinham reconhecimento, projetaram-se com solidez: Gonzaguinha, Fagner, Simone, Ney Matogrosso, Djavan, Belchior. E os grandes reprimidos pela censura, ascenderam vertiginosamente: Gal Costa, Chico Buarque, Elis Regina, Maria Bethânia, Milton Nascimento, Caetano Veloso. Todos encontravam espaço, e, principalmente, um público ávido para consumir o que eles produziam.

A Concretização da Abertura e a MPB

A militância da MPB no cenário nacional foi escancarada ao país depois do fim do AI-5. Já nada podia deter as vozes do Brasil. No fim de 1979, Simone deu um espetáculo no Canecão. No meio do show, cantou a música há tantos anos proibida pela ditadura, “Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores)”. Emocionado, o público acompanhou a cantora, sem medo, após dez anos de silêncio, de entoar o refrão do hino da luta contra a ditadura. A canção de Vandré voltou a fazer parte das manifestações contra o regime militar, sendo cantada nos comícios e eventos políticos.
Incontestavelmente, a MPB tornara-se porta voz da luta pela volta da democracia e pelo fim do regime militar. Grandes concertos de MPB foram feitos em apoio e junto com as manifestações sindicais. O show-comício das comemorações do 1 de Maio de 1980, alcançou grande número de público. Concertos de protesto eclodiram por todo o país. Setores radicais do regime militar, contrários à abertura, passaram a olhar os cantores como inimigos e perigosos subversivos. Na noite de 30 de abril de 1981, a ala radical promoveria o maior atentado público da ditadura militar. No Pavilhão Riocentro era realizado um grande show comemorativo do Dia do Trabalhador. Na decorrência do espetáculo, os militares, sargento Guilherme Pereira e o então capitão Wilson Dias Machado, punham em prático um ardil mortal, a plantação de bombas que daria fim à apresentação, e eliminaria vários nomes oponentes ao regime que ali se encontravam, entre eles Chico Buarque, Gonzaguinha, Gal Costa e Elba Ramalho. No estacionamento do pavilhão, uma das bombas explodiu dentro do carro onde estavam os dois militares, matando o sargento e ferindo gravemente o capitão. O atentado foi frustrado, e a MPB não foi calada.
Na campanha pelas “Diretas Já”, em 1984, novamente cantores da MPB vestiram as camisas amarelas e subiram aos comícios. A canção “O Menestrel das Alagoas” (Milton Nascimento – Fernando Brant), feita em homenagem ao líder político Teotônio Vilela, foi aclamada hino do movimento, sendo cantada em todos os comícios por Fafá de Belém. Com a frustração do movimento, Chico Buarque criou e cantou “Pelas Tabelas”.
Da abertura política iniciada em 1978 e concretizada em 1985, com o fim da ditadura militar, a MPB teve uma ascensão vertiginosa. Pela primeira vez ela deixava de ser elite. Cumpriu o sentido histórico interrompido pela promulgação do AI-5, tornou-se uma voz essencialmente feminina, de grandes cantoras, e, uma voz de luta em favor da queda da opressão política e moralista no Brasil pós-1964. Nunca se consumiu tanta música de MPB como naquele período. Nunca o povo e a qualidade musical caminharam tão juntos. O apogeu declinou após o fim da ditadura, a MPB voltou a ser elitizada, à espera que novos ventos ideológicos façam com que lance as suas larvas incandescentes sobre a cultura brasileira.

Veja também

A MÚSICA BRASILEIRA E A CENSURA DA DITADURA MILITAR
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GAL TROPICAL – LUXUOSA VISITA À MPB

janeiro 12, 2010

No dia 11 de janeiro de 1979, estreava no Teatro dos Quatro, Rio de Janeiro, um dos shows mais míticos da história da MPB, “Gal Tropical”. Concebido e dirigido por Guilherme Araújo, o espetáculo era a própria encenação da música brasileira, fazendo renascer sucessos esquecidos pelo tempo, era uma página retirada do samba canção, do chorinho, das marchinhas de carnaval, do samba de gafieira, do tropicalismo, do bolero, do sertanejo de raiz, da brasilidade musical, retratada na maior voz do país, a de Gal Costa.
O último show de Gal Costa, “Com a Boca no Mundo”, considerado um “flower power” fora de hora, teve uma repercussão negativa na crítica. Era preciso pensar na Gal Costa que despontava, uma mulher exuberante e sensual, no auge dos seus trinta e três anos. Era preciso deixar a rebeldia da cantora e transformá-la de vez numa grande intérprete à altura da sua voz privilegiada. Pensando assim, Guilherme Araújo sofisticou o figurino da cantora, tirou os seus pés descalços do palco, mergulhando-a em um extraordinário repertório de clássicos da MPB.
Gal Tropical“, o show, foi estruturado a partir do repertório do álbum “Água Viva”, lançado em 1978. Além das músicas do disco, trazia um repertório profundo, alegre e, principalmente, brasileiro. As canções superaram às expectativas e deram origem a um outro álbum homônimo ao show. Sem medo de arriscar, “Gal Tropical”, o disco, trazia um desfile de canções de várias décadas distintas, transitando entre o repertório de Emilinha Borba e o de Carmen Miranda. Ressuscitava as velhas marchinhas carnavalescas, empoeiradas e esquecidas pelo Tropicalismo e pela Bossa Nova, além de emocionar com toques suaves de lirismo nas canções de amor, no duelo da voz aguda da cantora com a guitarra elétrica. O ponto culminante do disco era transformar velhas canções como se fossem inéditas, definitivas na voz de Gal Costa.
O show se iria estender até 1981, percorrendo várias cidades brasileiras, excursionando com sucesso pela Europa, Estados Unidos, Israel, e vários outros países. O álbum foi, assim como “Água Viva”, disco de ouro. Gal Costa era finalmente consenso nacional, ocupando as capas e páginas das revistas, os quadros musicais da televisão, as trilhas sonoras das novelas, e as críticas dos jornais. Passou, merecidamente, a ser conceituada como grande intérprete, tornando-se definitiva. Show e disco, constituem um acervo incalculável da MPB, como uma jóia sem data a dar brilho aos seus ritmos. Sambista, tropicalista, alegre, infinita nas possibilidades do canto, com “Gal Tropical”, a estrela subia rumo ao infinito das divas do cancioneiro brasileiro.

Do Samba de Gafieira a Guarânia

O sucesso do show “Gal Tropical” levaria Guilherme Araújo a estendê-lo por três anos. Para cumprir o contrato com a gravadora, foi buscar dentro do próprio espetáculo a maioria das canções do álbum que seria lançado em 1979. Com embrião dentro do show homônimo, “Gal Tropical” foi produzido por Guilherme Araújo e Roberto Menescal. A capa foi elaborada em tons fortes em vermelho e amarelo, ressaltados pelas duas flores das mesmas cores nos cabelos da cantora. As belíssimas fotografias foram feitas por Antonio Guerreiro, retratando uma Gal Costa sensual e elegante, com figurinos de Guilherme Guimarães.
Composto por 12 faixas, tem como peculiaridade não apresentar canções inéditas, sendo regravações, em sua maioria, de grandes sucessos da Música Popular Brasileira, das décadas de 1930 a de 1970. Mesmo na ausência de ineditismo, algumas canções pareciam ter sido compostas para a cantora, tornando-se definitivas na sua voz. Também os ritmos são diversos, do samba canção ao bolero, das marchas carnavalescas ao rock, numa unidade a beirar a perfeição.
Assim como o show, o disco é iniciado com “Samba Rasgado” (Portello Juno – Wilson Falcão), um samba de gafieira, gravado em 1938 por Carmen Miranda. A sonoridade alegre e tropical do samba encaixa-se com a voz de Gal Costa, dando uma nova percepção ao então discriminado som das gafieiras cariocas. E a cantora vinha com um gingado alegre, revelando-se uma deslumbrante sambista, trazendo para a MPB o seu sapateado e samba rasgado, pedindo passagem para desfilar nos ritmos e nos sons que há muito se tinham feito esquecidos.

“Uma cabrocha bonita cantando e sambando
Quem não admira?
Gingando seu corpo que mesmo a gente espiando
Parece mentira”

O disco prossegue alegre, a deslumbrar os ritmos, já quase a atingir um apogeu na segunda faixa, “Noites Cariocas (Minhas Noites Sem Sono)” (Hermínio Bello de Carvalho – Jacob do Bandolim), um clássico chorinho do mestre Jacob do Bandolim, que Hermínio Bello de Carvalho decidiu dar letra. Em 1979 completava-se dez anos da morte de Jacob do Bandolim, Hermínio Bello de Carvalho decidiu homenageá-lo, criando letras para dois de seus chorinhos, “Doce de Coco” e “Noites Cariocas”, que recebeu o subtítulo de “Minhas Noites Sem Sono”. Para interpretar a segunda, ele apostou em Gal Costa, não vendo outra que pudesse dar o brilho imaginado ao chorinho. E acertou, “Noites Cariocas” recebeu uma interpretação impar na voz da cantora, transformando o chorinho em uma adorável canção com todo o esplendor do gingado malandro carioca. O chorinho é por si só um ritmo difícil de cantar, aqui acrescentado de uma letra sem rimas fáceis e versos longos, com excessivas palavras. Em um só fôlego, Gal Costa supera todos os obstáculos, fazendo com que “Noites Cariocas” pareça simples e fácil de ser cantada. A versão de Hermínio Bello de Carvalho faz da canção a única que pode ser considerada inédita em todo o disco.

“Mas que tanta crueza
Se em mim a certeza é maior do que tudo o que há
Todas as vezes que eu sonho
É você que rouba a justeza do sono
É você quem invade bem sonso e covarde
As noites que eu tento dormir meio em paz”

A guarânia paraguaia “Índia” (José Asunción Flores – Manuel Ortiz Guerrero – Versão José Fortuna), voltava ao repertório de Gal Costa. Nesta versão, a cantora deixa o intimismo de 1973, mostrando uma voz mais ampla e tingida de emoção e técnica. “Índia” foi gravada originalmente pela dupla Cascatinha e Inhana, em 1952, sendo a canção que introduziu a guarânia como estilo musical no Brasil, esboçando o estilo sertanejo no país. Sertaneja, tropicalista, Gal Costa imprimiu à canção a sua marca indelével, trazendo-a para dentro da MPB, de onde ninguém mais a expulsou.

Lirismo em Canções Intimistas

Estrada do Sol” (Dolores Duran – Tom Jobim), grande sucesso de Agostinho dos Santos, em 1958, atingiu na voz doce de Gal Costa o apogeu do seu lirismo. A voz aveludada de Agostinho dos Santos é uma das mais bonitas dos cantores da MPB, fato que já faz da interpretação do samba canção um momento especial e de grande responsabilidade. Gal Costa apresenta um momento de êxtase do sublime. “Estrada do Sol” é a única canção de Dolores Duran que não traz na sua essência o amor sofrido e cheio de marcas da dor. Traz em si, uma manhã de vento alegre, com pingos finais no orvalho do amor. A delicadeza da poesia expande-se na voz cristalina da cantora, que dentro da técnica, transborda toda a emoção.

“É de manhã
Vem o sol
Mas os pingos da chuva que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre que me trás essa canção”

Depois de passar pelo gingado dos morros cariocas, a cantora retorna às raízes baianas em “A Preta do Acarajé” (Dorival Caymmi), feita em 1933, e gravada por Carmen Miranda em parceria com Dorival Caymmi, em 1939. Retrato do pregão das ruas baianas, introduzindo como um eco, a voz de uma sofrida baiana a caminhar cansada no fim da noite, anunciando o seu acarajé. A canção de início intimista, recebe uma carga emotiva na voz de Gal Costa, reproduzindo um canto triste, um lamento solitário, quase cruel. No refrão, a alegria chega à canção, que atinge o auge do samba, e os ritmos das ruas da Bahia, da labuta retratada através da típica vendedora de acarajé.
O disco, feito nas tradições do vinil, terminava o lado A com um grande bolero, “Dez Anos (Diez Años)” (Rafael Hernandez – Versão Lourival Faissal), sucesso de 1951 da deslumbrante Emilinha Borba. Até então, boleros eram proibidos pela crítica à musa do desbunde. Chacrinha, na sua coluna em uma revista, chegou a criticar a gravação da canção, dizendo que o estilo era mais próximo do repertório de Maria Bethânia. Mas Gal Costa estava disposta a quebrar com os estigmas e mostrar o potencial quase que ilimitado e emotivo da sua voz, evoluindo cada vez mais para o domínio da técnica. A música foi lançada no programa “Fantástico”, com um prelúdio em que Emilinha Borba cantava. Quando o quadro foi ao ar, em setembro de 1979, anunciava a morte de Lourival Faissal, autor da versão da canção. Com “Dez Anos”, Gal Costa quebrava magnificamente mais um estigma imposto ao longo da sua carreira por uma crítica preconceituosa, que naquele momento a aplaudia calorosamente.

“Assim se passaram dez anos
Sem eu ver teu rosto, sem olhar teus olhos
Sem beijar teus lábios assim
Foi tão grande a pena que sentiu a minh’alma
Ao recordar que tu foste meu primeiro amor”

A Força Estranha de Uma Voz Rara

O lado B começava memorável, com “Força Estranha” (Caetano Veloso), canção feita para Roberto Carlos, e por ele lançada com grande aparato no final de 1978. Gal Costa dispensou instrumentos musicais e arranjos arrojados, interpretando a canção acompanhada somente pelo violão de Robertinho do Recife. “Força Estranha” é um dos maiores poemas de Caetano Veloso, de uma beleza existencialista que raras vezes foi registrado na MPB. A canção seria usada com sucesso na trilha sonora da novela “Os Gigantes”, de Lauro César Muniz. Poesia e voz uniam-se com a benção de todas as musas, numa composição quase que épica. Voz e violão, nada mais, e estava registrada a interpretação definitiva da canção, que apagaria por completo a de Roberto Carlos. Gal Costa vai do intimismo ao passionalismo ideológico da mensagem. A sua voz dá a beleza estética à poesia de Caetano Veloso, inundando-lhe de luz as palavras e o porquê daquela voz tamanha.

“Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou”

Olha” (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), outro sucesso de Roberto Carlos, voltava revigorado na interpretação de Gal Costa. Momento de emoção, de beleza singular, numa interpretação que de simples, torna-se latente, quase um samba canção, ou um bolero modernizado. Sem se deixar levar por uma interpretação mais passional, ela dá o tom exato da mensagem implícita. E nos sentimos impelidos a ir com ela a onde for, seguindo juntos o seu caminho de estrela.
Uma grande surpresa do disco é “Juventude Transviada” (Luiz Melodia), grande sucesso do autor em 1975, a canção finalmente encontra-se com a sua verdadeira intérprete. Descreve a vida difícil das jovens dos subúrbios, de uma forma existencialista à flor da pele que só Luiz Melodia sabe criar. Lavar a roupa enquanto os sonhos escoam pela quebrada da soleira, à espera do alívio da madrugada. Gal Costa é o próprio auxílio luxuoso da canção, os seus sonhos, a fantasia clara da sua juventude. Afinal, se a mulher não deve vacilar, o último agudo do verso confirma a cantora ilimitada que desabrochava, como as flores que trazia no cabelo.

“Lava a roupa todo dia, que agonia
Na quebrada da soleira, que chovia
Até sonhar de madrugada
Uma moça sem mancada
Um mulher não deve vacilar”

A Volta das Marchas Carnavalescas

E os sofrimentos do amor dão passagem para o carnaval de Gal Costa. “Balancê” (João de Barro – Alberto Ribeiro), velha marcha carnavalesca de 1936, lançada por Carmen Miranda no carnaval de 1937, seria , surpreendentemente, a grande estrela do disco. A canção tornar-se-ia o maior sucesso tocado nas rádios em 1979, e conduziria o carnaval do ano seguinte. João de Barro, o Braguinha, um dos autores da marcha, surpreendeu-se com o sucesso retumbante na voz de Gal Costa, emocionando-se quando ouviu a platéia em peso cantá-la no espetáculo. “Balancê” marcava a volta das marchinhas carnavalescas, por décadas esquecidas pela MPB. A canção parecia inédita na voz de Gal Costa, feita sob medida para ela. “Balancê” seria para sempre ligada à cantora, impregnando-se ao seu repertório, desvinculando-se por completo do universo de Carmen Miranda. O sucesso da marcha levou Gal Costa a trazer de volta várias delas, gravando-as nos álbuns que se seguiram.

“Ô balancê, balancê
Quero dançar com você
Entra na roda, morena, pra ver
O balance, balance”

O Bater do Tambor” (Caetano Veloso), continuava com a proposta carnavalesca. Lançada em compacto, em novembro de 1978, por Caetano Veloso, tinha como função explodir no carnaval de 1979. Explodiu no show de Gal Costa, no álbum mítico, dando um ritmo mais do que tropical àquele momento. Sambista, carnavalesca, Gal Costa assumia um novo jeito de estar no palco, e fazer a sua música mesclar entre a emoção e alegria. Os tambores anunciavam a eletricidade, e a cantora era o próprio trio elétrico que conduzia a voz do carnaval brasileiro.

“Mão de preto no couro
E o Brasil grita em coro
Ê mori mori ô babá
Ê mori mori ô”

Em ritmo de samba e som eletrônico, Gal Costa encerrava o disco com a regravação de “Meu Nome É Gal” (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), dez anos após o seu lançamento. Gal Costa já não tinha vinte e quatro anos, mas tinha uma voz ainda mais graciosa e grandiosa. Utilizando toda a técnica vocal, ela acedia ao desafio da guitarra elétrica de Robertinho do Recife, emprestando os seus agudos a um mítico duelo. Agudos e acordes de guitarra confundiam-se, nunca ninguém ousara tanto com a voz. Gal Costa encerrava o disco de 1979, mostrando que nada mais poderia detê-la. Justificava a força estranha que a fazia cantar. Tornara-se intérprete de todos os ritmos dentro da MPB, distanciava-se de qualquer resquício de musa do desbunde. Era estrela da música, pertencendo a mais alta das suas constelações no céu de todos os tempos.

“Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha”

Ficha Técnica:

Gal Tropical
Philips
1979

Direção de Produção: Guilherme Araújo e Roberto Menescal
Criação: Guilherme Araújo
Arranjos e Regências: Perna Fróes
Direção Musical: Perna Fróes
Técnico de Gravação: Luigi Hoffer
Técnico de Mixagem: Luigi Hoffer
Assistentes de Estúdio: Julinho e Vitor
Foto da Capa: Antonio Guerreiro
Layout: Lielzo Azambuja
Arte: Jorge Vianna
Figurinos: Guilherme Guimarães
Participação Especial: Robertinho do Recife

Músicos Participantes:

Banda Talismã
Teclados: Perna Fróes
Guitarra: Robertinho do Recife
Baixo: Moacyr Albuquerque
Sopros: Juarez Araújo
Violão: Robertinho do Recife
Bateria: Charles Chalegre
Percussão: Sergio Boré
Ritmistas: Zezinho e Tangerina

Faixas:

1 Samba Rasgado (Portello Juno – Wilson Falcão), 2 Noites Cariocas (Minhas Noites Sem Sono) (Jacob do Bandolim – Hermínio Bello de Carvalho), 3 Índia (José Asunción Flores – Manuel Ortiz Guerrero – Versão José Fortuna), 4 Estrada do Sol (Tom Jobim – Dolores Duran), 5 A Preta do Acarajé (Dorival Caymmi), 6 Dez Anos (Diez Años) (Rafael Hernandez – Versão Lourival Faissal), 7 Força Estranha (Caetano Veloso), 8 Olha (Roberto Carlos – Erasmo Carlos), 9 Juventude Transviada (Luiz Melodia), 10 Balancê (João de Barro – Alberto Ribeiro), 11 O Bater do Tambor (Caetano Veloso), 12 Meu Nome É Gal (Roberto Carlos – Erasmo Carlos)


SECOS & MOLHADOS – O GATO PRETO CRUZOU A MPB

novembro 26, 2009

No segundo semestre de 1973, o Brasil foi assolado por uma banda irreverente e original, chamada de Secos & Molhados. Ostentando um visual glitter rock, a banda trazia um repertório jovial, mesclando a musicalidade da época com rock progressivo, baião, folk, poesia e folclore português.
Os Secos & Molhados, com as suas caras pintadas e coreografias sensuais, quebraram os preconceitos, driblaram a censura naquele que tinha sido o seu ano mais claustrofóbico, tomaram as atenções da mídia, instalaram-se nas paradas de sucesso, conquistaram o Brasil, tornando-se um fenômeno de vendas de discos e de público.
Na banda estavam: o luso-brasileiro João Ricardo, fundador e principal mentor dela; um ator pouco conhecido, um certo Ney Matogrosso, com uma voz bela e exoticamente feminina, jamais ouvida em um cantor brasileiro; e o mais discreto, mas não menos talentoso, Gerson Conrad. O álbum de lançamento, que levava o nome da banda, vendeu em dois meses, trezentas mil cópias, chegando a um milhão, algo só conseguido até então, por Roberto Carlos.
Crianças, adolescentes, adultos, jovens ou velhos, todos se deixaram seduzir pelo som e pela presença da banda. Seus shows lotaram os teatros do Rio de Janeiro e de São Paulo, obrigando-os a dar um concerto no Maracanãzinho, previsto para trinta mil pessoas, deixando noventa mil de fora do estádio.
Os mais conservadores coraram com os rebolados de Ney Matogrosso. O cantor trazia uma sensualidade latente, aguçada pelas fantasias exóticas que lhe deixavam o torso ornado por pêlos naturais à mostra. Considerados demasiados provocativos, alguns programas de televisão foram obrigados pela censura a filmá-los ao longe e, em grandes tomadas, somente os seus rostos deveriam ser mostrados. Mas o carisma da banda venceu todas as limitações morais de uma sociedade em mutação, e atraíram para si os holofotes e aplausos da fama.
Musicalmente, deixaram sucessos que até hoje nos seduz, como “O Vira”, “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima”. O álbum “Secos & Molhados” é uma jóia rara da Música Popular Brasileira. Alegre, apaixonante, delicado, com canções reunindo a beleza de grandes poetas como Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Vinícius de Moraes e João Apolinário, traduzidos numa sofisticada poesia musical.
À luz do tempo, os Secos & Molhados, que pareciam uma vanguarda momentânea, escreveram uma importante página da história da MPB que se fez nos anos setenta, com uma consistência perene. Na sua proposta audaciosa, jamais houve outros como eles. Se João Ricardo e Gerson Conrad, apesar de sempre trazerem trabalhos novos, não se tornaram grandes ícones da música, Ney Matogrosso é a própria MPB das últimas três décadas, um presente ao Brasil dos inesquecíveis Secos & Molhados.

A Formação dos Secos & Molhados

No início da década de 1970, João Ricardo, um jovem jornalista nascido em Portugal e vindo para o Brasil em 1964, começava a compor músicas. Filho do escritor e crítico de teatro português João Apolinário, que esteve exilado no Brasil durante a ditadura salazarista, João Ricardo teve por intermédio do pai, contato com grandes personalidades do teatro brasileiro.
Em setembro de 1970, João Ricardo, em férias em Ubatuba, numa casa de secos e molhados onde comia, cria o nome “Secos & Molhados”. No ano seguinte, em abril, conhece Antonio Carlos, o Pitoco, e Fred, formando com eles a primeira composição dos Secos & Molhados, fazendo apresentações no bar Kurtisso Negro, no Bixiga, em São Paulo. Na época surgiu o primeiro convite para que a banda gravasse um disco na Som Livre, feito por Solano Ribeiro. Mas Pitoco decide abandonar a banda e prosseguir com carreira a solo.
João Ricardo queria um cantor de voz diferente, de preferência com experiência teatral. Em agosto de 1971, conheceu através da cantora e compositora Luli, um jovem e desconhecido cantor de voz aguda, Ney de Souza Pereira, a quem convidou para ser vocalista da sua banda.
Ainda em 1971, o diretor teatral Antunes Filho pediu a João Ricardo uma música para o monólogo “Corpo a Corpo”, de Oduvaldo Vianna Filho, interpretado por Juca de Oliveira. Ele cria a canção “Vôo” (João Ricardo – João Apolinário). Em novembro, Ney que vivia no Rio de Janeiro, volta para São Paulo, para gravar a música para a peça. O cantor adota o nome artístico de Ney Matogrosso. “Vôo” seria gravada mais tarde, em 1974, pelos Secos & Molhados.
Em janeiro de 1972, o músico flautista Sérgio Rosadas, o Gripa, juntou-se ao grupo e, algum tempo depois, foi formalizada a entrada de Gerson Conrad, vizinho de João Ricardo. Estava feita a composição clássica dos Secos & Molhados.
Na sua formação clássica, o grupo apresentava-se no bar e restaurante “Casa de Badalação e Tédio”, no Teatro do Meio do Ruth Escobar, em São Paulo.
A banda entraria em estúdio no dia 23 de maio de 1973. Durante quinze dias, gravaram o seu primeiro disco no estúdio Prova, da Continental. Os produtores esperavam que vendessem mil e quinhentas cópias em um ano, venderam trezentas mil em dois meses.
Em setembro de 1973, o recém criado programa “Fantástico”, da TV Globo, que trazia uma proposta de fazer um jornalismo musical e original, apresentava uma banda experimental e exótica para os padrões da época, os Secos & Molhados. O público assistia pela primeira vez, uma banda brasileira aos moldes do glam rock, movimento de origem inglesa, também chamado de glitter rock, nascido no fim dos anos 1960, sendo difundido pelo mundo de 1971 a 1973. Vestiam-se de forma andrógina, com trajes extravagantes, além de vistosas maquiagens no rosto, com cílios postiços, batom. A novidade não chamaria tanto a atenção, não fosse a voz aguda e feminina de Ney Matogrosso, algo inédito no cenário musical; o jeito explosivo e elétrico do cantor despejava uma forte energia sexual. A banda refletia propositalmente uma ambigüidade sexual. Após a apresentação do “Fantástico”, a banda explodiu pelo Brasil. O álbum passou a ser vendido aos milhares. Na época, a crise do petróleo causava a falta de vinil no mercado. A Continental passou a comprar velhos discos e derretê-los para que pudesse ser feitos novas cópias, e atender à demanda do fenômeno Secos & Molhados.

Secos & Molhados, o Disco

Secos & Molhados”, primeiro álbum da banda homônima, foi lançado oficialmente em 6 de agosto de 1973, com um show no Teatro Aquarius, em São Paulo. A capa era, por si só, uma provocante obra de arte. Com fotografias de Antonio Carlos Rodrigues e layout de Décio Duarte Ambrósio, ela traz Ney Matogrosso e João Ricardo à frente, Gerson Conrad e um quarto elemento, o baterista Marcelo Frias, atrás; com as cabeças servidas em pratos, tendo ao redor, produtos secos e molhados, como vinho, feijão, pão… Os quatro (mais tarde, Marcelo Frias iria recusar-se a fazer parte da banda), estão com os rostos pintados. A originalidade da capa fez com que ela fosse eleita uma das mais originais e perfeitas dos discos da MPB. Produzido por Moracy do Val, o álbum traz treze faixas. São canções com duração pequena, algumas com pouco mais de um minuto. Com toques de rock and roll, folk, rock progressivo, baião e jazz, tudo isto arrematado por poemas musicalizados de autores modernistas.
Miticamente, o álbum abre com “Sangue Latino” (João Ricardo – Paulinho Mendonça). Canção com letra forte, de um existencialismo típico do desbunde, com um leve travo da fatalidade do fado português, o que lhe identifica o latino absoluto, tanto lusitano como sul-americano. É o grito do homem diante das trapaças da vida, pronto para sobreviver, sem olhar os seus mortos.

“Minha vida meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh’alma cativa
Rompi tratados
Traí os ritos”

A tortura existencialista da primeira faixa dá passagem para a alegre e mexida “O Vira” (João Ricardo – Luli). A canção foi o maior sucesso do disco, tocando exaustivamente na mídia da época. Ela recupera mitos e sons do folclore português, numa ligeira adaptação tropical. Uma geração inteira dançou ao som da canção, que sintetizava perfeitamente a proposta dos Secos & Molhados.

“O gato preto cruzou a estrada
Passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul
Na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa”

Um dos momentos de profundidade latente do disco, “O Patrão Nosso de Cada Dia” (João Ricardo), destila o homem moderno, preso entre o progresso e os seus próprios sentimentos, diluídos pela existência dos dias e das suas frustrações. 1973 foi o ano que o Milagre Brasileiro chegou ao fim, com ele o fim do apogeu econômico de uma geração. Restavam os sentimentos, a vida, presa à senha da sobrevivência e dos erros dos sentidos difusos.

“Eu vivo preso a sua senha
Sou enganado
Eu solto o ar no fim do dia
Perdi a vida”

Leve, suave e pulsante, “Amor” (João Ricardo – João Apolinário), combina a beleza da poesia de João Apolinário e a música de João Ricardo, pai e filho respectivamente. O amor, sentimento maior, na sua leveza sedutora, disfarçando a paixão, é na verdade algo complexo, que de suave coisa tem apenas a ilusão. A canção encantou os jovens da época, já sobreviventes do desbunde.
O ano de 1973 foi o mais feroz da censura militar, com várias obras amputadas e proibidas, em especial as de Milton Nascimento e de Chico Buarque. Mas os censores eram gente sem muita qualificação cultural, o que justifica “Primavera nos Dentes” (João Ricardo – João Apolinário), ter passado sem ser percebida na sua mensagem implícita. Grande parte da canção é só musical, o que faz com que o ouvinte pense que ela é instrumental. Para o fim, o poema de João Apolinário é despejado como um cântico doce, de mensagem dilacerante, cantado a três vozes, encerrado bruscamente por um grito agudo e passional de Ney Matogrosso.
Assim Assado” (João Ricardo), foi um grande sucesso entre os adolescentes e as crianças da época. Sua proposta lúdica, a lembrar histórias em quadrinhos, dá o tom jovial que fascina o público juvenil, que mergulha em uma deliciosa aventura sem sentido, sem pretensões explícitas.
Mulher Barriguda” (João Ricardo – Solano Trindade), escandalizava o público, quando Ney Matogrosso explodia a canção, de vertente moral, aos movimentos frenéticos dos seus quadris. Se ao olhar para uma mulher grávida, a pergunta se haveria guerra ainda quando ela crescesse era a mais cabível naquele ano. Logo a seguir ao lançamento do disco, uma guerra sangrenta foi deflagrada no Oriente Médio, entre Israel e os países árabes, o petróleo foi usado pela primeira vez, como arma de guerra, gerando uma grande crise mundial. O ano era nebuloso. E a pergunta da música veio como um sopro na esperança.

“Haverá guerra ainda?
Tomara que não
Mulher Barriguda?
Tomara que não”

El Rey” (João Ricardo – Gerson Conrad), é uma das menores faixas do disco, tendo apenas um minuto. Novamente o folclore lusitano mostra as suas influências sobre João Ricardo, em uma metáfora quase que em forma de galope medieval. Implicitamente, faz referência a celas cheias e a mortes de centenas. O ano era de 1973, celas, prisões e mortes eram normais nos porões da ditadura. A canção seria uma alegoria àqueles tempos sombrios? Talvez, mas os Secos & Molhados eram, supostamente alegres e leves para que se identificasse mensagem assim.
O disco atinge o seu ápice em “Rosa de Hiroshima” (Gerson Conrad – Vinícius de Moraes), a partir desta faixa, nada mais precisa brilhar. A poesia de Vinícius de Moraes é reluzida na beleza da canção de Gerson Conrad. Ressalta a dor da bomba atômica atirada sobre Hiroshima durante a Segunda Guerra Mundial. Se hoje o fato parece distante, como um filme de efeitos especiais, no inicio dos anos de 1970 ainda estava latente na dor do planeta. A voz de Ney Matogrosso, no seu esplendor jovial, transmite uma emoção ímpar, delineando a paisagem da tragédia. A canção tornou-se um clássico da MPB e símbolo de lutas pela vida em movimentos nacionais. É a única faixa do disco a não levar a assinatura de João Ricardo. Ressentido, ele declararia mais tarde, que Gerson Conrad era autor de uma música só.

“Pensem nas feridas como rosas cálidas
Mas oh! Não se esqueçam da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa estúpida e invalida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada”

Prece Cósmica” (João Ricardo – Cassiano Ricardo) é mais uma canção que mostra a sofisticação literária musical dos Secos & Molhados, poucas vezes observada pelos fãs ou mesmo pela crítica. Cantada a três vozes, os agudos de Ney Matogrosso são aqui fulminantes, quase metálicos. A melodia dá luz às palavras, e a poesia acende o seu esplendor, como um vinho a aquecer o coração.
Rondó Capitão” (João Ricardo – Manuel Bandeira), é uma suave e deliciosa balada que se inspira em uma velha ciranda infantil. A canção tem pouco mais de um minuto, deixando um gosto de querer mais. Toda a delicadeza de Manuel Bandeira é captada pela voz de Ney Matogrosso, aqui graciosa e contida, quase etérea.
E a viagem pelo mundo dos poetas é encerrada com a faixa “As Andorinhas” (João Ricardo – Cassiano Ricardo), com apenas um minuto, a canção revela um Ney Matogrosso emotivamente melancólico, numa interpretação que se sustenta pela grandiosidade da voz e arranjos perfeitos. A condensação da letra lembra o experimentalismo dos tropicalistas, em 1968.
Quem pensa que já passou por todas as surpresas do álbum, chega à sua última faixa, “Fala” (João Ricardo – Luli) com mais uma extasiante surpresa. Canção intimista, contida em um Ney Matogrosso que pulsa emoções, com arranjos geniais de Zé Rodrix, que beiram ao psicodélico. Definitiva, a música parece encerrar de vez os resquícios do desbunde e criar uma nova geração, maliciosamente chamada de “bicho grilo”. “Fala” encerrava um grande disco, e explodia para o Brasil uma grande e mítica banda.

“Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
(…)Fala”

O esplendor dos Secos & Molhados duraria apenas um verão. Após encherem o Maracanãzinho em fevereiro de 1974, extasiarem os mexicanos em uma excursão àquele país, eles entraram em estúdio para a gravação do segundo álbum. Entretanto, os componentes da banda já não se entendiam. Em agosto de 1974, apresentavam no “Fantástico” um novo disco ao Brasil, cantando “Flores Astrais” (João Ricardo – João Apolinário), e, ao mesmo tempo, anunciando o fim da banda.
Ney Matogrosso seguiu a solo, construindo uma das mais bem sucedidas carreiras da MPB. Gerson Conrad nunca deixou de cantar e compor, mas passou longe do sucesso. João Ricardo, após um período sozinho, fez várias e diferentes composições dos Secos & Molhados, mas nenhuma delas repetiu o sucesso e a magia daquela que encantou e seduziu o Brasil em 1973.

Ficha Técnica:

Secos & Molhados
Continental
1973

Produzido por: Moracy do Val
Direção Musical: João Ricardo
Direção Artística: Júlio Nagib
Coordenação de Produção: Sidney Morais
Arranjos: Secos & Molhados e Zé Rodrix
Estúdio: Prova
Gravação de Estúdio: Luís Roberto Marcondes e Luizio de Paula Salles Jr
Fotos: Antonio Carlos Rodrigues
Lay Out: Décio Duarte Ambrósio
Arte Final: Oscar Paolilo

Músicos Participantes:

Flauta Transversal : Sergio Rosadas
Flauta de Bambu: Sergio Rosadas
Piano: Zé Rodrix e Emílio Carrera
Guitarras: John Flavin
Bateria: Marcelo Frias
Acordeom: Zé Rodrix
Percussão: Marcelo Frias
Baixo: Willie Verdaguer
Sintetizador: Zé Rodrix
Ocarina: Zé Rodrix

Secos & Molhados:

Ney Matogrosso – Vocal
João Ricardo – Vocal, Violões de 6 e12 cordas e Harmônica de Boca
Gerson Conrad – Violões de 6 e 12 cordas e Acompanhamento vocal

Faixas:

1 Sangue Latino (João Ricardo – Paulinho Mendonça), 2 O Vira (João Ricardo – Luli), 3 O Patrão Nosso de Cada Dia (João Ricardo), 4 Amor (João Ricardo – João Apolinário), 5 Primavera Nos Dentes (João Ricardo – João Apolinário), 6 Assim Assado (João Ricardo), 7 Mulher Barriguda (João Ricardo – Solano Trindade), 8 El Rey (Gerson Conrad – João Ricardo), 9 Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad – Vinícius de Moraes), 10 Prece Cósmica (João Ricardo – Cassiano Ricardo), 11 Rondó do Capitão (João Ricardo – Manuel Bandeira), 12 As Andorinhas (João Ricardo – Cassiano Ricardo), 13 Fala (João Ricardo – Luli)