MIÚCHA & ANTONIO CARLOS JOBIM – ÁLBUM ANTOLÓGICO DA MPB



Em 1977 a música brasileira assistiu ao encontro histórico de Tom Jobim e Miúcha, registrado no álbum “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”, desde então um clássico da MPB. A voz afinada e tranqüila de Miúcha encontrou suporte decisivo no universo do maestro soberano, num disco em que ele abre mão da Bossa Nova jazzística, conforme era acusado na época, optando pela brasilidade genuína do som romântico e universal da sua obra.
O projeto do disco com Miúcha nascera dois anos antes, em 1975, e um ano depois do bem sucedido encontro com Elis Regina, no mítico “Elis & Tom”. Ao contrário do primeiro encontro, que teve uma projeção mínima nas paradas de sucesso, “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”, foi responsável por vários sucessos nas paradas tão logo foi lançado, com três faixas, à partida, transformadas em trilhas de novelas, sendo uma delas, “Vai Levando”, abertura da novela “Espelho Mágico”, de Lauro César Muniz, no horário nobre da TV Globo, em 1977. Ao longo das décadas, outras faixas, “Pela Luz dos Olhos Teus” e “Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)”, seriam aberturas de novelas de sucesso.
Miúcha, então incipiente nos discos, atingiria o ponto mais alto da sua carreira, tornando-se popular no Brasil. A divulgação do álbum, gerou um dos melhores shows estreados no Canecão, famosa casa de espetáculos carioca. No embalo, Miúcha e Tom Jobim dividiram o palco com Toquinho e Vinícius de Moraes. O show ficaria em cartaz no Rio de Janeiro por quase um ano, sendo registrado no álbum “Tom/ Vinicius/ Toquinho/ Miúcha – Gravado ao Vivo no Canecão”, outra grande pérola da MPB, lançado ainda naquele farto ano musical de 1977.
O projeto contou com a participação luxuosa de Chico Buarque, inicialmente previsto para participar de uma faixa, ficando em três delas. Definitivo, o álbum tornou-se atemporal, indo além do universo musical de Tom Jobim, passando pelos mais genuínos compositores da música popular brasileira, como Ary Barroso, Custódio Mesquita, Toquinho, Geraldo Carneiro e o eterno Vinícius de Moraes. Composições de autores ecléticos, as músicas vão da Bossa Nova ao samba canção, numa unidade irrepreensível que sustenta a proposta, fazendo a sofisticação do disco tocar na sensibilidade do grande público, ultrapassando as esferas elitizantes do culto ao mito de Tom Jobim.
Além do disco com Vinícius de Moraes e Toquinho, gravado ao vivo, o sucesso de “Miúcha & Antonio Carlos Jobim” deu origem a um segundo encontro entre a dupla, registrado em “Miúcha & Tom Jobim”, álbum de 1979, conhecido como o Volume II do encontro. Apesar de ser um bom disco, o disco de 1979 não teve o impacto e beleza do de 1977, único e intocável.

Fôlego Contunde nas Primeiras Canções

O primeiro encontro de Miúcha com Tom Jobim deu-se em 1975, quando ela participou da faixa “Boto” (Jararaca – Tom Jobim), do álbum “Urubu”, do maestro soberano. Desde então, arquitetou-se a idéia de juntos fazer um álbum.
Miúcha é daquelas cantoras que sempre carregou o estigma do parente mais brilhante, era a mulher de João Gilberto, a irmã de Chico Buarque, e mais recentemente, a mãe de Bebel Gilberto; o que não lhe faz jus ao talento individual e sensibilidade emotiva. Sua estréia profissional em disco deu-se em 1975, ao lado de João Gilberto e Stan Getz, no álbum “The Best of Two Worlds”. Quando chegou às mãos de Tom Jobim, era uma incipiente no mundo do vinil.
Produzido por Aloysio de Oliveira, “Miúcha & Antonio Carlos Jobim” foi lançado em 1977, trazendo doze faixas, contando com a participação especialíssima de Chico Buarque como cantor em três delas. O repertório, incluindo vários compositores diferentes, acentuou uma brasilidade que deu o tom aos arranjos musicais e à sonoridade do disco.
Vai Levando” (Chico Buarque – Caetano Veloso), abre o disco de forma contundente, já a mostrar a força que pulsará o repertório e a sua atmosfera. A canção foi feita para o show “Chico & Bethânia no Canecão”, em 1975, numa parceria poucas vezes explorada pelos autores. Traz a irreverência eterna de Caetano Veloso, mesclada com a poesia social de Chico Buarque. É cantada em três vozes, a de Tom Jobim, a de Miúcha e a de Chico Buarque. A letra fala da fama, da roda viva da vida, da pílula, das suas convulsões numa época de claustrofóbica ditadura e mudança de costumes, afinal 1977 trouxe após anos de luta contra os desgastados preconceitos morais e religiosos, a aprovação da lei do divórcio. “Vai Levando” é o existencialismo explícito, onde desfilam palavras do cotidiano midiático, como ‘Ibope’, ou marca de cerveja como ‘Brahma’. O disco mal tinha saído do forno e a canção tornou-se tema de abertura da novela global “Espelho Mágico” , um grande avanço na emissora de Roberto Marinho, que havia excluído Chico Buarque da sua programação desde a época dos festivais de canções, tendo-o como presença não grata.

“Mesmo com o nada feito,
com a sala escura
com o nó no peito,
com a cara dura
a gente não tem cura
mesmo com o todavia,
com todo dia,
com todo ia,
todo não ia,
a gente vai levando
a gente vai levando…”

Tiro Cruzado” (Nelson Ângelo – Marcio Borges) continua com a pressão existencialista social. Num corte de canivete na opressão, no desafio às imposições, na contundência amenizada pelas vozes educadas de Tom Jobim e Miúcha, dando o equilíbrio ao arranque passional e de denúncia social. Uma canção belíssima, que poucas vezes foi gravada na MPB, passando involuntariamente despercebida.

Filosofia das Noites nos Bares

Comigo É Assim” (Luiz Bittencourt – José Menezes) deixa o existencialismo social, distancia-se da Bossa Nova, abrindo-se um delicioso samba de breque, numa viagem ao fascínio da malandragem da noite carioca, nos desencontros de um casal que se amam e se odeiam no mesmo copo de cachaça. Malevolente e maliciosa, gostosa provocação de briga de amor na voz dos dois cantores.
Na Batucada da Vida” (Ary Barroso – Luiz Peixoto) segue as noites infinitas dos habitantes dos bares, dos desvalidos no limiar da rua e da vida. É a mulher da rua, da cachaça, das rodas marginais do samba, da batucada, da boemia como ideologia existencial. A voz de Miúcha arrasta-se ao piano acústico de Tom Jobim, desembocando no final ao coro das duas vozes que se encontram. Esta canção é quase um hino aos desvalidos, aos sobreviventes da noite e da bebida, numa atmosfera que se atira ao underground da vida.

“No dia em que eu apareci no mundo
Juntou uma porção de vagabundo da orgia
De noite teve samba e batucada
Que acabou de madrugada em grossa pancadaria
Depois do meu batismo de fumaça 
Mamei um litro e meio de cachaça – bem puxados
E fui adormecer como um despacho
Deitadinha no capacho na porta dos enjeitados”

Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão)” (Vinícius de Moraes – Toquinho), delicioso samba da época de ouro da dupla Toquinho e Vinícius de Moraes, cantada despretensiosamente a três vozes, tendo novamente a intervenção de Chico Buarque. A letra traz perguntas simples da vida, com suas dúvidas geradas nos copos de uísque do poetinha e nas mesas de bares onde ele encontrava uma inesgotável inspiração. Trinta e dois anos depois de ter sido gravada e lançada, esta versão foi tema de abertura da telenovela “Viver a Vida”, de Manoel Carlos, sendo a terceira música deste disco a abrir uma produção da TV Globo.

Canções de Amor e Bossa Nova

Miúcha resgatou aqui um clássico da obra do irmão, “Olhos Nos Olhos” (Chico Buarque). A canção tinha sido gravada um ano antes pelo próprio autor e por Maria Bethânia, interpretação que correu as paradas de sucesso da época. A voz solitária de Miúcha é acompanhada pelo piano infinito de Tom Jobim, sem intervenção da sua voz. Foge da verve passional de Maria Bethânia, sendo uma interpretação mais intimista, quase a olhar o sentimento para dentro, jamais para a explosão dramática externa.
Pela Luz dos Olhos Teus” (Vinícius de Moraes), traz um dos mais belos duetos que Tom Jobim participou. Composição solitária de Vinícius de Moraes, é luxuosamente transformada em doce poesia lírica e musical. Na primeira parte da canção, cada um canta alguns versos, na segunda parte cantam simultaneamente, depois duelam entre si, a despejar o amor da canção, transformada em uma suave valsinha, despretensiosa, mas autêntica. A canção foi feita de imediato tema da novela “Dona Xepa”, de Gilberto Braga, tornando-se a mais popular do álbum. Em 2003 voltou às trilhas sonoras, desta vez abrindo “Mulheres Apaixonadas”, novela de Manoel Carlos.

“Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai, que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar”

A leveza poética de “Pela Luz dos Olhos Teus” continua, desembocando na eterna e definitiva Bossa Nova de Tom Jobim, destilada em “Samba do Avião” (Tom Jobim), uma homenagem ao Rio de Janeiro, hino que recebe de volta os saudosos migrantes do Brasil. É a cidade mãe da Bossa Nova vista de dentro de um avião, pronto para pousar na mítica do Brasil sincrético. O aeroporto internacional do Galeão, ponto de chegada da canção, é hoje oficialmente chamado de aeroporto Maestro Tom Jobim. Homenagem mais que justa a Antonio Brasileiro.
Saia do Caminho” (Evaldo Ruy – Custódio Mesquita), canção de beleza melancólica, de ruptura com o amor, samba-canção da época de ouro das sofridas e emotivas cantoras pré-Bossa Nova. O fracasso do amor, da paixão, do projeto de vida a dois, a entrega da luta por se estar junto, tudo despejado pelas notas tristes do piano e pela voz enfumaçada na emoção de Miúcha.

Nostalgia e Saudade

O momento de grande apoteose chega com “Maninha” (Chico Buarque), canção feita especialmente para Miúcha. Chico Buarque faz aqui a sua terceira e última intervenção vocal no disco. Modinha saudosista, lírica, mostrando os jardins dos sonhos infantis e juvenis, relembrados na virada dos anos, na quebra da pureza que a vida se nos arranca. Momento de poesia límpida, numa visão de imagens saudosistas da inocência de todos nós. A canção também entrou para a trilha sonora de “Espelho Mágico”, pontuando duas vezes Chico Buarque dentro da emissora que lhe virara as costas por quase uma década.

“Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Os sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou”

Choro de Nada” (Eduardo Souto Neto – Geraldo Carneiro), alenta as lembranças latentes, viagem ao que se perde, através dos cenários imutáveis da cidade, quando as personagens por algum motivo, desligaram-se, deixando apenas um vazio que se percorre. A vida vista de um lado da rua, no cansaço dentro do cotidiano da cidade. Um sopro no vazio da noite, no nada da tristeza.
É Preciso Dizer Adeus” (Tom Jobim – Vinícius de Moraes) encerra este álbum histórico. Em doze canções, Tom Jobim só interviu em duas composições, sendo esta a segunda. Triste, pungente, numa dor que arranha em cicatriz, a canção era uma das preferidas de Tom Jobim. Composta em 1958, só foi usada por ele em momentos especiais, com cantores que lhe proporcionaram a emoção exigida. Voltaria a registrá-la três vezes, em 1981, com Edu Lobo, no álbum “Edu & Tom”; com Gal Costa, em 1993, no “Songbook Vinícius de Moraes”; e, na sua despedida, em 1994, no “Rio Vermelho”, com Ithamara Koorax. Nesta versão, Tom Jobim não interfere na parte vocal, deixando a voz de Miúcha transcender a melancolia aguda da canção. Era preciso dizer adeus, assim, o álbum antológico era encerrado. Fixando-se para sempre na galeria memorial da MPB.

“E essa beleza do amor
Que foi tão nossa
E me deixa tão só
Eu não quero perder
Eu não quero chorar
Eu não quero trair
Porque tu foste pra mim
Meu amor
Como um dia de sol”

O sucesso do disco proporcionou a sua divulgação através de um show no Canecão, que juntava a Tom Jobim e Miúcha, as presenças de Toquinho e Vinícius de Moraes. O espetáculo permaneceu em cartaz no Rio de Janeiro por quase um ano, percorrendo depois outras cidades. Foi registrado no álbum “Tom/ Vinicius/ Toquinho/ Miúcha – Gravado ao Vivo no Canecão”. Em 1979, Tom Jobim e Miúcha voltariam a se encontrar em outro álbum, “Miúcha & Tom Jobim”, gravado quase todo em Nova York. O volume dois da dupla apesar da qualidade, não trouxe a beleza estética e definitiva deste “Miúcha & Antonio Carlos Jobim”.

Ficha Técnica:

Miúcha & Antonio Carlos Jobim 
RCA Victor 
1977

Produção: Aloysio de Oliveira
Diretor Criativo: Durval Ferreira
Arranjos e Regências: Antonio Carlos Jobim
Técnico de Som: Mário Jorge Bruno
Direção de Arte: Ney Távora
Fotos: Ivan Klingen
Vocal: Tom Jobim e Miúcha
Participação Vocal Especial: Chico Buarque

Músicos Participantes:

Piano: Antonio Carlos Jobim
Bateria: Rubinho, Robertinho Silva e Wilson das Neves
Percussão: Ariovaldo Contesini
Baixo: Novelli, Luiz Alves e Edson Lobo
Flauta: Antonio Carlos Jobim, Danilo Caymmi, Franklin e Paulo Jobim
Violão: Dori Caymmi
Cello: Peter Dauelsberg

Faixas:

1 Vai Levando (Chico Buarque – Caetano Veloso) Participação: Chico Buarque, 2 Tiro Cruzado (Nelson Ângelo – Marcio Borges), 3 Comigo É Assim (Luiz Bittencourt – José Menezes), 4 Na Batucada da Vida (Ary Barroso – Luiz Peixoto), 5 Sei Lá (A Vida Tem Sempre Razão) (Vinícius de Moraes – Toquinho) Participação: Chico Buarque, 6 Olhos Nos Olhos (Chico Buarque), 7 Pela Luz dos Olhos Teus (Vinícius de Moraes), 8 Samba do Avião (Tom Jobim), 9 Saia do Caminho (Evaldo Ruy – Custódio Mesquita), 10 Maninha (Chico Buarque) Participação: Chico Buarque, 11 Choro de Nada (Eduardo Souto Neto – Geraldo Carneiro), 12 É Preciso Dizer Adeus (Tom Jobim – Vinícius de Moraes)

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