A ÁRVORE DA VIDA (RAINTREE COUNTY) – EDWARD DMYTRYK

maio 2, 2016

Quando realizado, “A Árvore da Vida” (Raintree County) foi concebido para ser um novo épico equivalente ao mítico “…E o Vento Levou”. O filme não cumpriu o propósito, mas continua a ser um dos mais belos feitos na década de 1950, sem sofrer com a poeira do tempo, mostrando-se intacto na sua emoção dramática, beleza estética e composição de elenco memorável.
Inspirado no romance homônimo de Ross Lockridge, o filme retrata a procura intensa de John Wickliff Shawnessy (Montgomery Clift) pelos segredos da existência e os mistérios da árvore da vida. Sua sensibilidade é refletida pelo local onde vive, Raintree County, pela vida de poeta sonhador, pela simplicidade e beleza bucólica da namorada Nell Gaither (Eva Marie Saint), sendo violentamente interrompida com a chegada de Susanna Drake (Elizabeth Taylor). Susanna envolve o jovem John, levando-o a um casamento conturbado e à prisão ao seu mundo mentalmente instável. Ao lado da mulher ele assiste o distanciamento das suas indagações de vida, num desfecho dramaticamente trágico, que lhe trará de vez a resposta de qual é a verdadeira árvore da vida.
Ironicamente, “A Árvore da Vida” assinalou o início da agonia de Montgomery Clift, que durante as filmagens, sofreu um acidente no qual teve o rosto desfigurado. Sua agonia visual pode ser comparada a cada cena, gravada antes e depois do acidente. Prejudicado pela tragédia pessoal, o ator, então com o lado esquerdo da face paralisado, limitou a força que tinha em traduzir com o olhar a sua interpretação única. Elizabeth Taylor supera todos os estigmas da sua beleza, numa interpretação memorável, definitiva, compondo com o amigo de uma vida, a sutileza da tragédia dentro e fora da ficção. Juntos, os atores transbordam a empatia que os unia na vida e nas grandes telas do cinema, sendo, ao lado de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, a mais bela dupla romântica que Hollywood apresentou às platéias sonhadoras do mundo.
Esquecido pelas novas gerações, “A Árvore da Vida” é uma sensível descoberta, imprescindível para os amantes da sétima arte, aqui, em sua verdadeira essência visual para contar uma grande história.

O Idealista John Wickliff Shawnessy

Na segunda metade da década de 1950, os estúdios Metro-Goldwyn-Mayer investiram em uma grande produção, com o objetivo de criar outro épico comparado a “…E o Vento Levou” (Gone With the Wind), filme de 1939. Tratava-se da adaptação do romance “Raintree County”, de Ross Lockridge, que assim como “…E o Vento Levou”, trazia a Guerra da Secessão Americana como pano de fundo. Para dirigi-lo, foi chamado Edward Dmytryk, experiente cineasta de Hollywood. Sob a tecnologia do Cinemascope, começava, em 1956, a ser realizada a mais cara produção do cinema até então.
Para protagonistas, foram escolhidos os atores Montgomery Clift e Elizabeth Taylor, que pela segunda vez atuavam juntos, vindos do grande sucesso de “Um Lugar ao Sol” (A Place in the Sun), em 1951. Desde então, os atores haviam iniciado uma intensa amizade, refletida em uma cumplicidade exalada a cada filme que fizeram um ao lado do outro. A amizade só seria interrompida pela morte súbita de Montgomery Clift em 1966.
Sob a beleza da fotografia de Robert Surtees, “A Árvore da Vida” apresenta um dos mais sensíveis filmes sobre a alma humana, fugindo à aventura épica a qual tinha sido destinado. Ao som de uma magnificente trilha sonora, feita por Johnny Green, vamos sendo apresentados à calma bucólica do pequeno condado de Raintree, no sul de Indiana; lugar que dá título ao filme (Raintree County). Em um sopro singelo, vamos percorrendo a paisagem das árvores, como se em uma delas fôssemos encontrar os segredos da vida, da sua proposta para a eternidade da memória de cada pessoa. Num cenário de 1859, abrem-se as portas das casas e das pessoas que habitam em Raintree County.
Na tranqüilidade do lugar, encontramos o jovem poeta John Wickliff Shawnessy (Montgomery Clift), que sonha em ser escritor. Contrastando com a calmaria do lugar, a alma de John ambiciona descobrir os segredos da existência, poder um dia encontrar a mítica e perdida árvore da vida. Os sonhos do jovem são acalentados pela presença contundente do seu professor Jerusalem Webster Stiles (Nigel Patrick). É através do mestre que a semente da busca é implantada em John, sem jamais deixar de instigar-lhe a alma inquieta.
Na vida de John está a doce Nell Gaither (Eva Marie Saint), antiga namorada dos tempos do colégio, por quem tem um sentimento singelo e calmo, prontamente por ela correspondido. Assim, a vida parece conduzir os dois em um desenlace inevitável, construído através do amor em sua mais elegante pureza, com sonhos da elevação do ser através da família.
Mas o mundo idealista de John procura por verdades existenciais que se estendem além das árvores de Raintree County. Seu destino irá cruzar de forma indelével com o da bela Susanna Drake (Elizabeth Taylor). As sombras da alma instável de Susanna convergirão com as luzes da poesia de John, travando uma luta que os irá enlaçar em uma conturbada e asfixiante história de amor e de existência.

Casamento Com a Bela Susanna

Ao conhecer Susanna Drake, John sente por ela uma irresistível tentação, sem que se converta em amor e paixão dilacerantes. Se em John os sentimentos são mais intimistas, em Susanna eles se revelam à flor da pele. Para a jovem não há dúvidas, ele representa o seu elo com o amor e com a sua frágil consistência emocional, envolta nas trevas da sanidade.
Susanna é bela e rica, vinda de Nova Orleans. Sua personalidade não se lhe revela além de uma suposta superficialidade ante as convicções idealistas de John. Parece ser fútil e alheia ao mundo. Quando se depara com John, sente a paixão na sua forma possessiva e sem saída. Não tem dúvidas de que ama o mundo sem sombras do jovem professor. Se há obstáculos para tê-lo, no caso refletidos pela ligação de profunda amizade e comprometimento entre John e Nell; Susanna vai ultrapassá-los, nem que para atingir o propósito tenha que seduzir, ser ardilosa e mentir.
Preso à beleza sedutora de Susanna, John verá o seu mundo pacato e de verdades silenciosas ser rompido bruscamente. Acossado pela mentira da bela jovem, que se lhe apresenta grávida, John decide que irá tomá-la como esposa, apesar dos amigos mais próximos aconselhá-lo a não fazê-lo. John decide unir a sua vida a de Susanna, fazendo-a mais amiga do que amante, mais protetor do que homem apaixonado. Casados, eles partem para o sul do país. Susanna consegue afastar John do seu mundo, dos amigos e do lugar que lhe serve de base para a personalidade etérea.
Preterida por Susanna, resta a Nell Gaither conformar-se com a perda do amor de John. Contemplativa, ela seguirá ao longe o amor perdido, platônica e silenciosamente, manterá o seu amor por John por toda a vida, sendo a amiga que se não lhe abandona jamais.

Nos Campos de Batalha

Cedo John descobre os ardis que Susanna usara para envolvê-lo. Descobre-se preso a um casamento que se construíra em cima de uma sórdida mentira. Sente-se distante dos seus ideais de juventude, asfixiado pelo conturbado mundo emotivo da mulher, que se mostra cada vez mais perturbador e instável.
A decepção de John com a vida é crescente. Aos poucos descobre o mundo das sombras que rondam a mulher, do segredo que se lhe esconde o passado. A mãe de Susanna morrera internada em um asilo para loucos, totalmente despida da sanidade mental. John pressente o mesmo fim trágico para a mulher, cada vez mais distanciada do equilíbrio emocional.
Paralelamente, uma sangrenta guerra civil assola os Estados Unidos, tendo como principal causa a abolição dos escravos naquele país. Enquanto os estados do norte, mais industrializados, são favoráveis ao fim da escravatura, os sulistas, essencialmente agrícolas e dependentes da mão-de-obra dos escravos, são contra. Diante do impasse, surge uma guerra com a finalidade de dividir o país em dois. A guerra civil mergulha os americanos em sangrentas batalhas.
John Wickliff Shawnessy, pacifista e apegado às causas sociais do seu tempo, é um abolicionista convicto. Para suprir a decepção que sofreu ao descobrir as mentiras de Susanna, apega-se cada vez mais às conturbações políticas que eclodem ao seu redor. Frustrado por estar reduzido ao mundo instável da mulher, ele decide alistar-se no exército da União, lançando-se no meio da guerra, numa tentativa de redescobrir os ideais que se lhe moldaram o caráter, na esperança de descobrir na luta pelo que considerava justo, a verdadeira face dos segredos da vida, a luz que se lhe ia iluminar a árvore da vida.
Para desespero de Susanna, criada dentro das tradições sulistas que apoiavam a escravidão, John parte para as frentes de batalhas nos estados do Tennesse e da Georgia, lutando contra os confederados, opondo-se aos frágeis ideais políticos da mulher e ao seu mundo social e emocional.
As cenas de guerra dão ao filme o caráter épico ambicionado pelos produtores, mostradas em belas imagens estéticas e dramáticas. Será na guerra que John encontrará novas perguntas e algumas respostas que o façam refletir a sua existência além do vazio do seu casamento com Susanna. O sangue que escorre nos campos, a necessidade de se matar ou morrer nas batalhas, tudo faz com que ele não dê tréguas à instigante busca das verdades da existência que se lhe aquece e perturba a mente.
John Wickliff Shawnessy depara-se com as atrocidades das batalhas, as situações extremas de sobrevivência, garantidas pelo ecoar das balas das armas, pelo cheiro impregnado da pólvora e pelo sangue derramado no solo e nos ideais.

A Árvore da Vida

Enquanto John Wickliff Shawnessy encontra-se nos campos de batalha, Susanna mergulha em uma depressão sem volta, deixando-se arrebatar cada vez mais pela sombra do caráter da mãe, pela loucura iminente.
Ao retornar dos combates, John sente a fragilidade da mulher. Se não há a paixão tradicional por ela, há um sentimento de amizade e de proteção que o faz abraçar o mundo instável de Susanna. Este sentimento de compreensão e amizade é sublimemente exaltado pela cumplicidade entre Elizabeth Taylor e Montgomery Clift. Uma característica da dupla, que foi buscá-la na profunda amizade que os atores mantinham em suas vidas pessoais.
No meio do casamento conturbado, surge um filho, Jim Shawnessy (Donald Losby e Mickey Maga), o que ameniza a decepção de John em relação ao casamento, fazendo com que ele tente estabelecer o objetivo de tentar trazer a mulher de volta do abismo da loucura.
Apesar da luta intensa para trazer Susanna às malhas da estabilidade emocional, a vida de John torna-se tensa, sem um momento de paz ou de lapsos de felicidade. A própria Susanna chega à conclusão que é a responsável pela infelicidade do marido. Sabe das limitações da sua sanidade, das sombras que rondam a sua mente. Ao conversar com Nell Gaither, percebe que ela ainda ama John, obtendo a confirmação da própria ex-namorada do marido. Em um raro momento de lucidez e redenção profunda, ou de total perda da sanidade conforme o prisma que se olhe, Susanna decide deixar de ser um peso na vida do marido.
Quando a noite atinge o seu auge, Susanna fala com o filho em um tom de ruptura e adeus, beija-o, deixando na cama. Na calada da noite, foge em direção à mata e ao pântano. Da janela, Jim observa a fuga da mãe. Desesperado, o pequeno foge ao seu encalce. De uma das janelas da casa, uma empregada vê quando Jim embrenha-se na mata. Desesperada, a mulher corre até a igreja, batendo os sinos para que a população acorde e saia em socorro do menino.
Numa tensão final, John e os moradores do pequeno condado munem-se de tochas, adentrando-se na escuridão da mata em busca de mãe e filho. Ao seu lado está a dedicada Nell. As buscas atravessam a noite. Já é dia quando John é avisado que encontraram Susanna. Ele corre para ver a mulher, encontrando o seu corpo estendido, sem vida. John abraça-se à mulher morta. Desespera-se, chegando à conclusão que o mesmo acontecera ao filho.
Naquele momento, a imagem mostra o pequeno Jim a dormir debaixo de uma árvore. Ao ouvir vozes, ele acorda, grita pelo pai, atravessando o pântano e indo ao seu encontro. Jim atira-se aos braços de John, em um momento de emoção final. Sobrevivera à loucura e à morte de Susanna. Com o filho nos braços, ele caminha ao lado de Nell, como se recuperasse o verdadeiro caminho da sua vida, interrompida quando do surgimento de Susanna. A imagem fecha na árvore em que Jim adormecera aos pés. É a última cena do filme. Ali está a árvore da vida que John tanto perseguira, ela protegera o seu filho, o verdadeiro segredo da sua continuação, da sua eternidade no mundo. O filme encerra-se em sua beleza épica, numa sublime emoção e delicadeza existencialista.

Entre a Tragédia Fictícia e a Real

A Árvore da Vida” deixou de entrar para a história do cinema como um épico, para ser um comovente drama existencial, além de demarcar nas telas o início da agonia de um dos maiores atores do cinema. Se em “A Um Passo da Eternidade” (From Here to Eternity), em 1953, Montgomery Clift mostrou-se dilacerante nos campos de guerra, infelizmente o ator não pôde repetir aqui a sua tradicional sensibilidade e forma peculiar de transformar cada personagem em algo sublime. Durante todo o filme o ator parece flutuar, sem encontrar um ponto que arranque a emoção das suas expressões de homem envolventemente desprotegido, ou a luz etérea da imagem da angústia refletida em seus olhos. O ator vivia um dos momentos mais delicados e trágicos da sua existência. Um terrível acidente de automóvel no decorrer dos tempos das filmagens, deixaria marcas indeléveis no corpo e na alma de Montgomery Clift.
As filmagens de “A Árvore da Vida” foram iniciadas no início de abril de 1956. Seriam interrompidas em maio, quando na noite do dia 12, Montgomery Clift ao sair completamente bêbado de uma festa na casa de Elizabeth Taylor, envolver-se-ia em uma tragédia. A poucos metros da casa da atriz, bateu violentamente o carro em um poste telefônico. Ao ser informada do acidente, Elizabeth Taylor dirigiu-se ao local, chegando a tempo de salvar o amigo de morrer sufocado pelo próprio sangue, tirando-lhe dois dentes presos na garganta. Com a mandíbula quebrada, o nariz esmagado e várias escoriações faciais, Montgomery Clift foi obrigado a submeter-se a cirurgias reparadoras, ficando longe das filmagens de “A Árvore da Vida” por oito semanas. As cirurgias plásticas foram pagas com o dinheiro do seguro do filme, para tê-lo o mais breve possível de volta às rodagens da película. As marcas no rosto do ator podem ser vistas nas cenas do filme, em que se percebe perfeitamente as feitas antes e depois da tragédia. Com a face esquerda paralisada, o ator limitou a sua expressão intensa, dando a sensação etérea de flutuar sob a máscara de John Wickliff Shawnessy. Assim como Susanna Drake, Clift iria iniciar uma degradação emocional, regada por barbitúricos que passou a usar para se livrar das dores. Sua agonia seria longa, num suicídio lento que o levaria à morte em 1966, poucos meses antes completar 46 anos.
Elizabeth Taylor agarrou-se à alma de Susanna Drake, numa das mais memoráveis interpretações da carreira, que lhe valeu a indicação para o Oscar na categoria de melhor atriz. O filme receberia ainda três outras indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora, além de dar o prêmio do Globo de Ouro para Melhor Ator Coadjuvante a Nigel Patrick. Na trilha sonora, Nat King Cole cantou a belíssima música título.
No decorrer dos anos, “A Árvore da Vida” foi um filme praticamente esquecido. Uma verdadeira injustiça com um dos filmes mais belos da década em que foi lançado e de todos os tempos. Rever a cumplicidade entre Elizabeth Taylor e Montgomery Clift é sempre um elogio à química perfeita de dois atores de belezas singulares e talentos ilimitados. Ver o rosto mutilado de Clift, escondido entre a maquiagem, mas demarcado por lhe roubar a expressão contida em cada olhar etéreo que sempre trocou com as câmeras, é entender um pouco o mito, perceber a sua essência e agonia, numa busca infindável pela inconstância da existência e dos sentimentos à flor da pele, ou ainda pela infindável busca dos troncos míticos da árvore da vida.

Ficha Técnica:

A Árvore da Vida

Direção: Edward Dmytryk
Ano: 1957
País: Estados Unidos
Gênero: Drama, Romance
Duração: 168 minutos / Cor (Technicolor)
Título Original: Raintree County
Roteiro: Millard Kaufman, baseado em romance de Ross Lockridge Jr
Produção: David Lewis
Música: Johnny Green
Coreografia: Alex Romero
Direção de Fotografia: Robert Surtees
Direção de Arte: William A. Horning e Urie McCleary
Figurino: Walter Plunkett
Maquiagem: William Tuttle
Edição: John D. Dunning
Efeitos Especiais: Warren Newcombe
Som: Wesley C. Miller, Van Allen James e Burdick S. Trask
Estúdio: Metro-Goldwyn-Mayer
Distribuição: MGM
Elenco: Montgomery Clift, Elizabeth Taylor, Eva Marie Saint, Nigel Patrick, Lee Marvin, Rod Taylor, Agnes Moorehead, Walter Abel, Jarma Lewis, Tom Drake, Rhys Williams, Russell Collins, Oliver Blake, Don Burnett, Michael Dante, Dorothy Granger, Myrna Hansen, Rosalind Hayes, DeForest Kelley
Sinopse: John Wickliff Shawnessy (Montgomery Clift), é um jovem poeta e professor que vive no condado de Raintree, Indiana. Mantém um romance sincero com Nell Gaither (Eva Marie Saint), sua conhecida desde os tempos de colégio. Idealista, pacifista e eternamente em busca das verdades da vida, ele sonha em um dia encontrar a mítica árvore da vida. Inesperadamente, envolve-se com Susanna Drake (Elizabeth Taylor), uma bela e rica jovem de Nova Orleans. Apaixonada, a jovem mente que está grávida, forçando John a se casar com ela. Já casado, ele descobre a outra face de Susanna, seus ardis e sua tendência genética para a loucura. Decepcionado com a sua vida ao lado da mulher, ele alista-se no exército da União, indo para as frentes de batalhas na Guerra da Secessão. Durante o tempo que está na guerra, Susanna deixa-se abater pela depressão, estando a um passo da loucura. Ao regressar, John irá lutar pela mãe de seu filho, numa tentativa de trazê-la de volta ao equilíbrio emocional, em uma lenta e agonizante batalha com um fim quase movido pela tragédia e pelo encontro com os segredos da vida.

Edward Dmytryk

Filho de imigrantes ucranianos, Edward Dmytryk nasceu em Grand Forks, na Columbia Britânica, Canadá, em 4 de setembro de 1908. Criado em São Francisco, na Califórnia, ele tornou-se projecionista da Paramount ainda aos quinze anos.
Edward Dmytryk iniciaria a sua carreira como diretor em 1935, quando realizou o seu primeiro filme, “The Hawk”. Na primeira década da sua longa carreira de cineasta fez filmes de orçamentos baixos e limitados, apesar de ter sido considerada a fase mais criativa da sua obra. Em 1944, realizaria “Até a Vista, Querida” (Murder, My Sweet), considerado o seu melhor filme daquela década, trazendo uma interpretação magnífica de Dick Powell. Em 1947, receberia por “Rancor” (Crossfire), a sua única indicação ao Oscar na categoria de melhor diretor, e a primeira para melhor filme.
Após a indicação para o Oscar, Edward Dmytryk sofreria um grande abalo na carreira e na vida pessoal. Naquele ano de 1947, foi acusado de ser comunista pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas do Senado, fazendo com que fosse demitido pelo estúdio RKO, obrigando-o a refugiar-se na Inglaterra. Só retornaria aos Estados Unidos em 1950, para cumprir uma sentença de seis meses de prisão inferida pelo Comitê. Em 1951, passou por novos interrogatórios, levantando a suspeita de que teria denunciado o nome de diversos colegas, o que lhe criou para sempre o estigma de delator.
Mais tarde, Edward Dmytryk seria reabilitado por Hollywood, passando a dirigir grandes produções da era do Cinemascope. Em 1956, foi chamado pelo estúdio Metro-Goldwyn-Mayer para dirigir um épico à altura de “…E o Vento Levou”: “A Árvore da Vida”, com Montgomery Clift e Elizabeth Taylor, sendo até o seu lançamento, em 1957, o filme mais caro já produzido em Hollywood.
Edward Dmytryk continuou a dirigir filmes até a década de 1970. Em 1978 publicou uma autobiografia, “It’s a Hell of a Life, But Not a Bad Living”. Edward Dmytryk morreria pouco tempo antes de completar 91 anos, em 1 de julho de 1999, em Encino, na Califórnia, por causa de insuficiência cardíaca e renal.

Filmografia de Edward Dmytryk:

Longa-Metragem

1935 – The Hawk
1939 – Million Dollar Legs (Ela Prefere Um Atleta)
1939 – Television Spy (Espionagem Por Televisão)
1940 – Emergency Squad (Servidores da Lei)
1940 – Mystery Sea Raider (O Corsário Fantasma)
1940 – Golden Gloves (Luvas de Ouro)
1940 – Her First Romance (Seu Primeiro Romance)
1941 – Sweetheart of the Campus (A Namorada do Colégio)
1941 – The Devil Commands (Os Mortos Falam)
1941 – The Blonde From Singapore (A Loura de Singapura)
1941 – Under Age (Menores de Idade)
1941 – Secrets of the Lone Wolf (As Jóias do Imperador)
1941 – Confessions of Boston Blackie (O Segredo da Estátua)
1942 – Counter-Espionage (Dama em Perigo)
1942 – Seven Miles From Alcatraz (O Farol dos Espias)
1943 – Hitler’s Children (Os Filhos de Hitler)
1943 – Captive Wild Woman (A Mulher Fera)
1943 – Behind the Rising Sun (Atrás do Sol Nascente)
1943 – The Falcon Strikes Back (O Falcão Contra-Ataca)
1943 – Tender Comrade (Mulheres de Ninguém)
1944 – Murder, My Sweet (Até a Vista, Querida)
1945 – Back to Bataan (Espírito Indomável)
1945 – Comered (Acossado)
1946 – Till the End of Time (Noite na Alma)
1947 – Crossfire (Rancor)
1947 – So Well Remembered (Aquele Dia Inesquecível)
1949 – Obsession (Mórbido Despeito)
1949 – Give Us This Day (O Preço de Uma Vida)
1952 – Mutiny (Motim Sangrento)
1952 – Eight Iron Men (Oito Homens de Ferro)
1952 – The Sniper (Volúpia de Matar)
1953 – The Juggler (O Malabarista)
1954 – The Caine Mutiny (A Nave da Revolta)
1954 – Broken Lance (A Lança Partida)
1954 – The End of the Affair (Pelo Amor de Meu Amor)
1955 – Soldier of Fortune (O Aventureiro de Hong-Kong)
1955 – The Left Hand of God (Do Destino Ninguém Foge)
1956 – The Mountain (A Maldição da Montanha)
1957 – Raintree County (A Árvore da Vida)
1958 – The Young Lions (Os Deuses Vencidos)
1959 – Warlock (Minha Vontade É a Lei)
1959 – The Blue Angel (O Anjo Azul)
1962 – The Reluctant Angel (O Anjo Relutante)
1962 – Walk on the Wild Side (Pelos Bairros do Vício)
1963 – The Carpetbaggers (Os Insaciáveis)
1964 – Where Love Has Gone (Escândalo na Sociedade)
1965 – Mirage (Miragem)
1966 – Alvarez Kelly (Alvarez Kelly)
1968 – The Battle for Anzio (A Batalha de Anzio)
1968 – Shalako (Shalako)
1972 – Bluebird (O Barba Azul)
1975 – He is My Brother
1975 – The Human Factor (Vingador Implacável ou Destinados a Morrer)

Curta-Metragem

1956 – Bing Presents Oreste
1979 – Not Only Strangers


OSCAR – O MAIOR PRÊMIO DO CINEMA

março 3, 2014

 

Apesar de todas as polêmicas e contestações, o Oscar é considerado o maior prêmio atribuído aos que fazem cinema. Instituído há pouco mais de oito décadas, oAcademy Awards(Prêmio da Academia), continua a definir as tendências que omercado cinematográficomundial e, em especial, o norte-americano, deve seguir.
O Oscar é dado pelaAcademia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, fundada na cidade de Los Angeles, na Califórnia, em 11 de maio de 1927, sendo concebida por Louis B. Mayer, um dos fundadores dos estúdios Metro-Goldwyn-Mayer. A cerimônia de entrega do Oscar, a mais antiga da mídia, é feita com pompa e glamour, estendo-se em uma passarela vermelha por onde passam as maiores estrelas do cinema, sendo recebidos no Teatro Kodak, desde 2002. Os prêmios atribuídos a cada edição correspondem aos filmes que estrearam no ano anterior à premiação.
Rejeitado pelos cinéfilos mais puristas, a importância do Oscar é indiscutível, pontuando carreiras, acrescentando valores monetários e popularidade mundial. Não define umacarreira de ator ou diretor, em um mercado dinâmico e instável, mas causa paixão entre os premiados e à platéia, estendida pelo mundo, que se maravilha com a atribuição da estatueta.
Nem sempre a qualidade está intimamente ligada aos premiados pelo Oscar, há grandes ícones da sétima arte que jamais o ganharam, como Charles Chaplin, Greta Garbo e Montgomery Clift, e construíram carreiras ímpares. E muitos que o ganharam, e simplesmente desapareceram do cenário cinematográfico.
Seja qual for a visão que se tenha do Oscar, artística ou comercial, o prêmio continua a ser o mais importante atribuído aos que fazem cinema. Levar a pequena estatueta para casa é o sonho de todos os atores, atrizes, diretores, produtores e roteiristas do mundo. É o reconhecimento, ainda que efêmero, daqueles que se propõem a construir os sonhos lúdicos da sétima arte.

Instituição do Prêmio e Locais da Cerimônia

Em 11 de janeiro de 1927, trinta e seis pessoas ligadas aomundo do cinema, entre eles Louis B. Mayer , Mary Pickford, Sid Grauman, Cecil B. DeMille, Douglas Fairbanks, George Cohen e Cedric Gibbons, reuniram-se em um jantar no Hotel Amabassador, em Los Angeles, com a proposta de fundar aAcademy of Motion Picture Arts and Sciences. Em 11 de maio daquele, um banquete realizado no Hotel Biltmore anunciava a fundação oficia da Academia, tendo como primeiro membro honorário Thomas Edison.
A primeira cerimônia de entrega do Oscar ocorreu no Hotel Roosevelt, em Hollywood, em 16 de maio de 1929. Foi apresentada pelo ator Douglas Fairbanks e pelo diretor William C. DeMille. Premiava os filmes estreados em 1927 e 1928. Desde então, vem sendo entregue anualmente, com exceções em 1930, ano em que teve duas entregas, e 1933, ano que não houve nenhuma.
De 1930 a 1943, os prêmios foram entregues primeiro no Ambassador Hotel, e, mais tarde, no Biltmore Hotel, em Los Angeles. Entre 1944 e 1946, foi entregue no Grauman’s Chinese Theater. Nos anos de 1947 e 1948, foi entregue no Shrine Auditorium. A 21º edição, em 1949, foi realizada no Oscar Theatre, em Melrose Avenue, em Hollywood, local que foi sede da Academia. De 1950 a 1960, as cerimônias de entregas do Oscar foram no Pantages Hollywood’s Theatre. Quando passou a ser transmitida pela televisão, a cerimônia de entrega deu-se simultaneamente em Hollywood e Nova York, entre 1953 e 1957, ocorrendo em Nova York no NBC Theatre. Encerrado o ciclo, voltou a ser entregue somente em Los Angeles. Em 1961, a cerimônia mudou-se para o Santa Monica Civic Auditorium, em Santa Mônica, na Califórnia. A partir de 1969, ficou decidido que a cerimônia voltaria para Los Angeles, ocorrendo no Dorothy Chandler Pavilion. Desde 2002, passou a ser entregue no Kodak Theatre, em Hollywood.

A Estatueta do Oscar

O prêmio símbolo da Academia é uma pequena estatueta de trinta e cinco centímetros de altura, pesando quase quatro quilogramas, feita em estanho e originalmente folheada a ouro de catorze quilates. Traz a forma de um homem sobre um pedestal no formato de um rolo de filme, portando uma espada atravessada verticalmente no peito.
A estatueta foi idealizada por Cedric Gibbons, diretor de arte, e pelo escultor George Stanley, conservando o mesmo formato desde a sua criação. O nome oficial Prêmio de Mérito da Academia, ficou conhecido pela alcunha de Oscar. Há algumas versões para esta alcunha, entre elas a de que a mítica atriz Bette Davis assim o teria chamado por achar a estatueta parecida com o seu primeiro marido. Outra variação da lenda é a de que Margareth Herrick, então secretária executiva da Academia, ao ver a estatueta achou-a parecida com o seu tio Oscar. A verdade é que a alcunha vingou, e o prêmio é por oito décadas, chamado de Oscar.
O valor real da estatueta não ultrapassa os duzentos dólares, mas o seu valor histórico não tem preço. Em 1993, a estatueta arrebatada por Vivien Leigh em 1940, pela interpretação contundente de Scarlett O’Hara em “…E o Vento Levou”, foi arrematada em leilão por 562 mil dólares.
A estatueta sofreu alterações não no formato, mas na composição, durante a Segunda Guerra Mundial. Por causa do racionamento de metal imposto pela guerra, na época ela foi confeccionada em gesso. Após o término do conflito mundial, os que foram agraciados com a estatueta de gesso tiveram os seus prêmios trocados pelas originais de estanho. Em 2010 a estatueta foi reforçada na composição com ouro de dezoito quilates.

Bastidores do Oscar

O processo de premiação do Oscar envolve cerca de 5.800 membros votantes da Academia. Todos os profissionais de cinema que já tiveram pelo menos uma indicação para o prêmio tornam-se automaticamente eleitores.
Os filmes que estrearam no mínimo uma semana antes do ano anterior à cerimônia, em pelo menos três cinemas de Los Angeles, são os concorrentes naturais ao prêmio. Os membros da Academia indicam cinco filmes selecionados para a escolha final. Cada membro indica a sua própria categoria, ou seja, ator indica ator, diretor indica diretor. Após a seleção, cada membro vota e elege um dos indicados em sua respectiva modalidade. Além das categorias tradicionais, entre elas a de melhor ator, melhor atriz, melhor filme, e melhor diretor, tem as categorias especiais, como Oscar honorário e memorial.
Em 2010, foram indicados dez filmes ao prêmio, fato que não acontecia desde 1944. As demais categorias continuaram com apenas cinco indicações.
Na história do Oscar, fatos envolventes marcaram as edições de entregas do prêmio, transmitidas pela televisão para milhões de telespectadores em todo o planeta. São as curiosidades que mais fascinam as pessoas.
Entre os recordes do Oscar estão:
Katharine Hepburn, que arrebatou quatro estatuetas, todas na categoria de melhor atriz. Em 1969, a atriz ganhou o Oscar pelo filme “O Leão no Inverno”, juntamente com Barbra Streisand, por sua atuação em “Funny Girl”. Era a segunda vez que acontecia um empate, tendo o outro ocorrido em 1932, quando Fredric March e Wallace Beery arrebataram o prêmio de melhores atores com os filmes “O Médico e o Monstro” e “O Campeão”, respectivamente.
Três foram os filmes que mais conquistaram prêmios, arrebatando onze estatuetas cada um: “Ben-Hur”, em 1960; “Titanic”, em 1998; e, “O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei”, em 2004.
Meryl Streep foi a atriz que mais recebeu indicações ao Oscar, totalizando, desde 1979, dezesseis, das quais arrebatou duas estatuetas, uma como atriz coadjuvante, em “Kramer vs. Kramer”, em 1980, e “A Escolha de Sofia”, em 1983. Em seguida vem Katharine Hepburn, com doze indicações.
Considerada como conservadora, a Academia premiou pouquíssimos atores negros, sendo Hattie McDaniel a primeira atriz negra a conquistar a estatueta, em 1940, por seu desempenho em “…E o Vento Levou”. Sidney Poitier seria o primeiro ator negro a receber o Oscar de melhor ator, em 1964, por sua atuação no filme “Uma Voz nas Sombras”. Denzel Washington e Helle Berry receberiam o Oscar de melhor ator e melhor atriz, em 2002, pelos filmes “Dia de Treinamento” e “A Última Ceia”, respectivamente, sendo a única vez que dois negros levavam o Oscar de melhores intérpretes na mesma cerimônia.
O Conservadorismo não permitiu que Michael Douglas arrebatasse o prêmio em 1988, por sua atuação em “Atração Fatal”. No mesmo ano, indicado também pelo filme “Wall Street”, Michael Douglas receberia o prêmio de melhor ator, sendo que em “Wall Street” seu papel era meramente de coadjuvante.
Ainda no estigma das curiosidades, dois atores foram premiados postumamente: Peter Finch, melhor ator por “Rede de Intrigas”, em 1977; e, Heath Ledger, melhor ator coadjuvante por sua atuação em “O Cavaleiro das Trevas”, em 2009. Dois atores recusaram os prêmios, sendo eles George C. Scott, como melhor ator em “Patton”, em 1971, e Marlon Brando por “O Poderoso Chefão”, em 1973.
Marlee Matlin, foi a única atriz surda que recebeu o Oscar de melhor atriz por sua atuação em “Children of a Lesser God”, em 1987.
Todos estes ingredientes, fazem do Oscar o prêmio mais cobiçado e mítico de todo a indústria cinematográfica do mundo, criando astros e estrelas, muitas vezes estigmatizando carreiras. Seu fascínio e importância permanecem por mais de oito décadas. Seu glamourcontinua inabalável.
Em 2010, Kathryn Bigelow foi a primeira mulher a arrebatar o Oscar na categoria de melhor diretora, pelo filme “Guerra ao Terror”.

Vencedores nas Principais Categorias

Melhor Atriz:

1929 – Janet Gaynor – Sunrise/ Seventh Heaven e Street Angel 
1930 – Mary Pickford – Coquette
1930 – Norma Shearer – A Divorciada
1931 – Marie Dressler – Lírio do Lodo
1932 – Helen Hayes – O Pecado de Madelon Claudet
1934 – Katharine Hepburn – Manhã de Glória
1935 – Claudette Colbert – Aconteceu Naquela Noite
1936 – Bette Davis – Perigosa
1937 – Luise Rainer – O Criador de Estrelas
1938 – Luise Rainer – Terra dos Deuses
1939 – Bette Davis – Jezebel
1940 – Vivien Leigh – …E o Vento Levou
1941 – Ginger Rogers – Kitty Foyle
1942 – Joan Fontaine – Suspeita
1943 – Greer Garson – Mrs. Miniver
1944 – Jennifer Jones – A Canção de Bernadette
1945 – Ingrid Bergman – À Meia Luz
1946 – Joan Crawford – Almas em Suplício
1947 – Olívia de Havilland – Só Resta Uma Lágrima
1948 – Loretta Young – Ambiciosa
1949 – Jane Wyman – Belinda
1950 – Olívia de Havilland – Tarde Demais
1951 – Judy Holliday – Nascida Ontem
1952 – Vivien Leigh – Um Bonde Chamado Desejo
1953 – Shirley Booth – A Cruz da Minha Vida
1954 – Audrey Hepburn – A Princesa e o Plebeu
1955 – Grace Kelly – Amar é Sofrer
1956 – Anna Magnani – A Rosa Tatuada
1957 – Ingrid Bergman – Anastásia
1958 – Joanne Woodward – As Três Máscaras de Eva
1959 – Susan Hayward – Quero Viver!
1960 – Simone Signoret – Almas em Leilão
1961 – Elizabeth Taylor – Disque Butterfield 8
1962 – Sophia Loren – Duas Mulheres
1963 – Anne Bancroft – O Milagre de Anne Sullivan
1964 – Patrícia Neal – O Indomado
1965 – Julie Andrews – Mary Poppins 
1966 – Julie Christie – Darling
1967 – Elizabeth Taylor – Quem Tem Medo de Virginia Woolf?
1968 – Katharine Hepburn – Adivinhe Quem Vem Para Jantar
1969 – Katharine Hepburn e Barbra Streisand – O Leão no Inverno e Funny Girl
1970 – Maggie Smith – Primavera de Uma Solteirona
1971 – Glenda Jackson – Mulheres Apaixonadas
1972 – Jane Fonda – Klute
1973 – Liza Minnelli – Cabaret
1974 – Glenda Jackson – Um Toque de Classe
1975 – Ellen Burstyn – Alice Não Mora Mais Aqui
1976 – Louise Fletcher – Um Estranho no Ninho
1977 – Faye Dunaway – Rede de Intrigas
1978 – Diane Keaton – Annie Hall
1979 – Jane Fonda – Amargo Regresso
1980 – Sally Field – Norma Rae
1981 – Sissy Spacek – O Destino Mudou Sua Vida
1982 – Katharine Hepburn – Num Lago Dourado
1983 – Meryl Streep – A Escolha de Sofia
1984 – Shirley MacLaine – Laços de Ternura
1985 – Sally Field – Um Lugar no Coração
1986 – Geraldine Page – O Regresso Para Bountiful
1987 – Marlee Matlin – Filhos do Silêncio
1988 – Cher – Feitiço da Lua
1989 – Jodie Foster – Os Acusados
1990 – Jessica Tandy – Conduzindo Miss Daisy
1991 – Kathy Bates – Louca Obsessão
1992 – Jodie Foster – O Silêncio dos Inocentes
1993 – Emma Thompson – Retorno a Howard’s End
1994 – Holly Hunter – O Piano
1995 – Jessica Lange – Céu Azul
1996 – Susan Sarandon – Os Últimos Passos de Um Homem
1997 – Francês McDormand – Fargo
1998 – Helen Hunt – Melhor é Impossível
1999 – Gwyneth Paltrow – Shakespeare Apaixonado
2000 – Hilary Swank – Meninos Não Choram
2001 – Julia Roberts – Erin Brockovich
2002 – Halle Berry – A Última ceia
2003 – Nicole Kidman – As Horas
2004 – Charlize Theron – Monster
2005 – Hilary Swank – Menina de Ouro
2006 – Reese Whiterspoon – Johnny & June
2007 – Helen Mirren – A Rainha
2008 – Marion Cotillard – Piaf – Um Hino ao Amor
2009 – Kate Winslet – O Leitor
2010 – Sandra Bullock – Um Sonho Possível
2011 – Natalie Portman – Cisne Negro
2012 – Meryl Streep – A Dama de Ferro
2013 – Jennifer Lawrence – O Lado Bom da Vida
2014 – Cate Blanchett – Blue Jasmine

Melhor Ator:

1929 – Emil Jannings – O Último Comando / Tentação da Carne
1930 – Warner Baxter – No Velho Arizona 
1930 – George Arliss – Disraeli
1931 – Lionel Barrymore – Uma Alma Livre
1932 – Wallace Beery e Fredric March – O Campeão e O Médico e o Monstro
1934 – Charles Laughton – Os Amores de Henrique VIII
1935 – Clark Gable – Aconteceu Naquela Noite
1936 – Victor McLaglen – O Delator
1937 – Paul Muni – A Vida de Louis Pasteur
1938 – Spencer Tracy – Marujo Intrépido
1939 – Spencer Tracy – Com os Braços Abertos
1940 – Robert Donat – Adeus, Mr. Chips
1941 – James Stewart – Núpcias de Escândalo
1942 – Gary Cooper – Sargento York
1943 – James Cagney – A Canção da Vitória
1944 – Paul Lukas – Horas de Tormenta
1945 – Bing Crosby – O Bom Pastor
1946 – Ray Milland – Farrapo Humano
1947 – Fredric March – Os Melhores Anos de Nossas Vidas
1948 – Ronald Colman – Fatalidade
1949 – Laurence Olivier – Hamlet
1950 – Broderick Crawford – A Grande Ilusão
1951 – Jose Ferrer – Cyrano de Bergerac
1952 – Humphrey Bogart – Um Aventura na África
1953 – Gary Cooper – Matar ou Morrer 
1954 – William Holden – Inferno nº 17
1955 – Marlon Brando – Sindicato de Ladrões
1956 – Ernest Borgnine – Marty
1957 – Yul Brynner – O Rei e Eu
1958 – Alec Guiness – A Ponte do Rio Kwai
1959 – David Niven – Vidas Separadas
1960 – Charlton Heston – Ben-hur
1961 – Burt Lancaster – Entre Deus e o Pecado
1962 – Maximilian Schell – O Julgamento de Nuremberg
1963 – Gregory Peck – O Sol é Para Todos
1964 – Sidney Poitier – Uma Voz nas Sombras
1965 – Rex Harrison – Minha Bela Dama
1966 – Lee Marvin – Dívida de Sangue
1967 – Paul Scofield – O Homem Que Não Vendeu a Sua Alma
1968 – Rod Steiger – No Calor da Noite
1969 – Cliff Robertson – Os Dois Mundos de Charly
1970 – John Wayne – Bravura Indômita
1971 – George C. Scott – Patton
1972 – Gene Hackman – Operação França
1973 – Marlon Brando – O Poderoso Chefão
1974 – Jack Lemmon – Sonhos do Passado
1975 – Art Carney – Harry e Tonto
1976 – Jack Nicholson – Um Estranho no Ninho
1977 – Peter Finch – Rede de Intrigas
1978 – Richard Dreyfuss – A Garota do Adeus
1979 – Jon Voight – Amargo Regresso
1980 – Dustin Hoffman – Kramer Versus Kramer
1981 – Robert De Niro – Touro Indomável
1982 – Henry Fonda – Num Lago Dourado
1983 – Ben Kingsley – Gandhi
1984 – Robert Duvall – A Força do Carinho
1985 – F. Murray Abraham – Amadeus
1986 – William Hurt – O Beijo da Mulher Aranha
1987 – Paul Newman – A Cor do Dinheiro
1988 – Michael Douglas – Wall Street 
1989 – Dustin Hoffman – Rain Man
1990 – Daniel Day-Lewis – Meu Pé Esquerdo
1991 – Jeremy Irons – O Reverso da Fortuna
1992 – Anthony Hopkins – O Silêncio dos Inocentes
1993 – Al Pacino – Perfume de mUlher
1994 – Tom Hanks – Filadélfia
1995 – Tom Hanks – Forrest Gump
1996 – Nicola Cage – Despedida em Las Vegas
1997 – Geoffrey Rush – Shine
1998 – Jack Nicholson – Melhor é Impossível
1999 – Roberto Benigni – A Vida é Bela
2000 – Kevin Spacey – Beleza Americana
2001 – Russell Crowe – Gladiador
2002 – Denzel Washington – Dia de Treinamento
2003 – Adrien Brody – O Pianista
2004 – Sean Penn – Sobre Meninos e Lobos
2005 – Jaime Foxx – Ray
2006 – Philip Seymour Hoffman – Capote
2007 – Forrest Whitaker – O Último Rei da Escócia
2008 – Daniel Day-Lewis – Sangue Negro
2009 – Sean Penn – Milk
2010 – Jeff Bridges – Coração Louco
2011 – Colin Firth – O Discurso do Rei
2012 – Jean Dujardin – O Artista
2013 – Daniel Day-Lewis – Lincoln
2014 – Matthew McConaughey – Clube de Compras Dallas

Melhor Diretor:
1929 – Frank Borzage – Sétimo Céu (Drama) e Lewis Milestone – Dois Cavaleiros Árabes (comédia)
1930 – Frank Loyd – Divina Dama
1930 – Lewis Milestone – Sem Novidades no Front
1931 – Norman Taurog – Skippy
1932 – Frank Borzage – Depois do Casamento
1934 – Frank Lloyd – Cavalgada
1935 – Frank Capra – Aconteceu Naquela Noite
1936 – John Ford – O Delator
1937 – Frank Capra – O Galante Mr. Deeds
1938 – Leo McCarey – Cupido é Moleque Famoso
1939 – Frank Capra – Do Mundo Nada se Leva
1940 – Victor Fleming – …E o Vento Levou
1941 – John Ford – As Vinhas da Ira
1942 – John Ford – Como Era Verde Meu Vale
1943 – William Wyler – A Rosa da Esperança
1944 – Michael Curtiz – Casablanca
1945 – Leo McCarey – O Bom Pastor
1946 – Billy Wilder – Farrapo Humano
1947 – William Wyler – Os Melhores Anos de Nossas Vidas
1948 – Elia Kazan – A Luz é Para Todos
1949 – John Huston – O Tesouro de Sierra Madre
1950 – Joseph L. Mankiewicz – Quem é o Infiel?
1951 – Joseph L. Mankiewicz – A Malvada 
1952 – George Stevens – Um Lugar ao Sol
1953 – John Ford – Depois do Vendaval
1954 – Fred Zinnemann – A Um Passo da Eternidade
1955 – Elia Kazan – Sindicato de Ladrões
1956 – Delbert Mann – Marty
1957 – George Stevens – Assim Caminha a Humanidade
1958 – David Lean – A Ponte do Rio Kwai
1959 – Vicente Minnelli – Gigi
1960 – William Wyler – Ben-Hur
1961 – Billy Wilder – Se Meu Apartamento Falasse
1962 – Robert Wise e Jerome Robbins – Amor, Sublime Amor
1963 – David Lean – Lawrence da Arábia
1964 – Tony Richardson – As Aventuras de Tom Jones
1965 – George Cukor – Minha Bela Dama
1966 – Robert Wise – A Noviça Rebelde
1967 – Fred Zinnemann – O Homem Que Não Vendeu Sua Alma
1968 – Mike Nichols – A Primeira Noite de Um Homem
1969 – Carol Reed – Oliver 
1970 – John Schlesinger – Perdidos na Noite
1971 – Franklin J. Schaffner – Patton
1972 – William Friedkin – Operação França
1973 – Bob Fosse – Cabaret
1974 – George Roy Hill – Um Golpe de Mestre
1975 – Francis Ford Coppola – O Poderoso Chefão II
1976 – Milos Forman – Um Estranho no Ninho
1977 – John G. Avildsen – Rocky, Um Lutador
1978 – Woody Allen – Annie Hall
1979 – Michael Cimino – O Franco-Atirador
1980 – Robert Benton – Kramer versus Kramer
1981 – Robert Redford – Gente Como a Gente
1982 – Warren Beatty – Reds
1983 – Richard Attenborough – Gandhi
1984 – James L. Brooks – Laços de Ternura
1985 – Milos Forman – Amadeus
1986 – Sydney Pollack – África Minha
1987 – Oliver Stone – Platoon
1988 – Bernardo Bertolucci – O Último Imperador
1989 – Barry Levinson – Rain Man
1990 – Oliver Stone – Nascido em 4 de Julho
1991 – Kevin Costner – Dança com Lobos
1992 – Jonathan Demme – O Silêncio dos Inocentes 
1993 – Clint Eastwood – Os Imperdoáveis
1994 – Steven Spielberg – A Lista de Schindler
1995 – Robert Zemeckis – Forrest Gump
1996 – Mel Gibson – Coração Valente
1997 – Anthony Minghella – O Paciente Inglês
1998 – James Cameron – Titanic
1999 – Steven Spielberg – O Resgate do Soldado Ryan
2000 – Beleza Americana
2001 – Steven Soderbergh – Traffic
2002 – Ron Howard – Uma Mente Brilhante
2003 – Roman Polanski – O Pianista
2004 – Peter Jackson – O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei
2005 – Clint Eastwood – Menina de Ouro
2006 – Ang Lee – O Segredo de Brokeback Mountain
2007 – Martin Scorsese – Os Infiltrados
2008 – Joel Coen e Ethan Coen – Onde os Fracos Não Têm Vez
2009 – Danny Boyle – Quem Quer Ser Um Milionário?
2010 – Kathryn Bigelow – Guerra ao Terror
2011 – Tom Hooper – O Discurso do Rei
2012 – Michel Hazanavicius – O Artista
2013 – Ang Lee – As Aventuras de Pi
2014 – Alfonso Cuarón – Gravidade

Melhor Filme:

1929 – Asas 
1930 – A Melodia na Broadway
1930 – Sem Novidades no Front
1931 – Cimarron
1932 – Grande Hotel
1934 – Cavalgada
1935 – Aconteceu Naquela Noite
1936 – O Grande Motim
1937 – Ziegfeld – O Criador de Estrelas
1938 – Émile Zola
1939 – Do Mundo Nada se Leva
1940 – …E o Vento Levou
1941 – Rebecca
1942 – Como Era Verde o Meu Vale
1943 – Mrs. Minivir
1944 – Casablanca
1945 – O Bom Pastor
1946 – Farrapo Humano
1947 – Os Melhores Anos de Nossas Vidas
1948 – A Luz é Para Todos
1949 – Hamlet
1950 – A Grande Ilusão
1951 – A Malvada
1952 – Sinfonia de Paris
1953 – O Maior Espetáculo da Terra
1954 – A Um Passo da Eternidade
1955 – Sindicato de Ladrões
1956 – Marty
1957 – A Volta ao Mundo em 80 Dias
1958 – A Ponte do Rio Kwai 
1959 – Gigi
1960 – Ben-Hur
1961 – Se Meu Apartamento Falasse
1962 – Amor, Sublime Amor
1963 – Lawrence da Arábia
1964 – As Aventuras de Tom Jones
1965 – Minha Bela Dama
1966 – A Noviça Rebelde
1967 – O Homem Que Não Vendeu Sua Alma
1968 – No Calor da Noite
1969 – Oliver!
1970 – Perdidos Na Noite
1971 – Patton
1972 – Operação França
1973 – O Poderoso Chefão
1974 – Golpe de Mestre
1975 – O Poderoso Chefão: Parte II
1976 – Um Estranho no Ninho
1977 – Rocky, Um Lutador
1978 – Annie Hall
1979 – O Franco-Atirador
1980 – Kramer Versus Kramer
1981 – Gente Como a Gente
1982 – Carruagens de Fogo
1983 – Gandhi
1984 – Laços de Ternura
1985 – Amadeus
1986 – África Minha 
1987 – Platoon
1988 – O Último Imperador
1989 – Rain Man
1990 – Conduzindo Miss Daisy
1991 – Dança com Lobos
1992 – O Silêncio dos Inocentes
1993 – Os Imperdoáveis
1994 – A Lista de Schindler
1995 – Forrest Gump
1996 – Coração Valente
1997 – O Paciente Inglês
1998 – Titanic
1999 – Shakespeare Apaixonado
2000 – Beleza Americana
2001 – Gladiador
2002 – Uma Mente Brilhante
2003 – Chicago
2004 – O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei
2005 – Menina de Ouro
2006 – Crash – No Limite
2007 – Os Infiltrados
2008 – Onde os Fracos Não Têm Vez
2009 – Quem Quer Ser Um Milionário?
2010 – Guerra ao Terror
2011 – O Discurso do Rei
2012 – O Artista
2013 – Argo
2014 – 12 Anos de Escravidão


O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN – ANG LEE

outubro 3, 2011
Um dos mais belos filmes feitos na primeira década de 2000, “O Segredo de Brokeback Mountain” (Brokeback Mountain), é, acima de qualquer tendência ou classificação, uma história de amor, um conceito da vida refletida nas escolhas que se faz, nas imposições morais da sociedade construída sobre os valores seculares, nos medos da vulnerabilidade dos sentimentos. O filme é o lado invisível da sociedade, que todos sabem existir, mas que relevam ao ostracismo dos seus pilares de moralidade.
Brokeback Mountain” é o amor vivido por dois homens, presos aos medos e às convenções do meio de onde vieram. Mais do que um filme de vertente homossexual, é uma história profunda da alma humana. É o amor vivido nos leitos clandestinos da existência, é a paixão essencial no seu íntimo e coadjuvante diante da sociedade. Uma história que se identifica não só a visão masculina, mas a da mulher, refletida no sofrimento contido de Alma Del Mar. Uma história que poderia facilmente ser identificada como vivida entre um homem e uma mulher casados, numa atmosfera que lembra outro drama, “As Pontes de Madison County”. É o amor consentido em seus labirintos, nos momentos de total sinceridade íntima, e de mentiras que constroem a vida social. Dois homens caminham a sua existência edificada no segredo puro dos seus sentimentos, paralelamente constroem família, uma vida social que não lhes refletem a essência, mas que é a oficial. Vivem o segredo da verdadeira alma, deixando respingos das suas verdades nos olhos contemplativos dos que os rodeiam. O amor é soberano entre eles, mas jamais a verdade social contada. Dividem o segredo, a existência, mas quando a vida ou a morte os separa, ficam à deriva das decisões da família civil, emergindo como meros coadjuvantes de cada um. Não lhes é permitido o corpo morto, as cinzas, a realização do mais tenro desejo final da eternidade. Para eles existem apenas as lembranças, o amor vivido na madrugada fria antes da sociedade despertar. A montanha como cúmplice, como uma verdade panorâmica magistral e silenciosa, guardiã do mais sincero segredo da alma humana, o sentimento.
Brokeback Mountain” é um drama na sua mais extensa composição. Ao contrário do que se propaga, não é um western, tão pouco a história de cowboys, mas de dois homens contemporâneos, presos nas limitações sociais do seu tempo, atemporais através dos sentimentos que vivem. Infinitos nas valias sociais, que mesmo no século XXI, continuam a respeitar seus conceitos de clã e família. É um filme de rara beleza fotográfica, música épica, e, principalmente, de atores. É nas interpretações memoráveis de Heath Ledger e Jake Gyllenhall que se sustenta toda a sua grandiosidade, estendida cronologicamente por mais de duas décadas. É um drama de amor, fazendo menor os conceitos de quem o vive, enaltecendo a coragem de quem não se deixa perder da sua essência emocional, mesmo vivida em segredo, clandestinamente.

A Montanha Inóspita

Produção canadense e norte-americana, realizada em 2005, “O Segredo de Brokeback Mountain” narra o relacionamento complexo e tempestivo de dois homens, numa seqüência cronológica que atravessa quase vinte anos.
Dirigido pelo cineasta taiwanês Ang Lee, é uma adaptação do conto homônimo de Annie Proulx, publicado pela primeira vez em 1997. Por trazer um tema delicado, que apesar de todos os tabus quebrados nas últimas décadas, o roteiro de Larry McMurtry e Diana Ossana, escrito no fim da década de 1990, ficou arquivado durante anos, sem conseguir financiamento para ser filmado.
Apesar de personagens fortes e fascinantes, os protagonistas da história assustavam aos atores diante de uma temática controversa e com cenas tão explícitas de romance homoerótico. O ator Mark Wahlberg, inicialmente convidado para viver Ennis Del Mar, recusou o papel por medo do preconceito. Heath Ledger e Jake Gyllenhall aceitaram o desafio, vencendo o medo da rejeição, sendo compensados com o reconhecimento do público e da crítica. Foram, pelo trabalho, indicados ao Oscar nas categorias de melhor ator e melhor ator coadjuvante respectivamente. Mais do que a polêmica da temática, o filme mostrou-se vitorioso na sua vertente humana, conquistando não um público específico, mas a todos com sensibilidade diante dos sentimentos e do amor, universais para quem os vive, não importando se um casal heterossexual ou homossexual.
A história abre-se no verão de 1963. Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhall), dois jovens pobres, conhecem-se ao procurar emprego como pastores de ovelhas, em Wyoming, estado rural e conservador do oeste dos Estados Unidos. São contratados pelo rancheiro Joe Aguirre (Randy Quaid), para um difícil trabalho, enquanto um vigia as ovelhas numa área de proteção ambiental no alto da montanha, o outro fica na base, responsável pelos alimentos e pela vigilância da área.
Juntos, os jovens sobem para a montanha. Levam consigo a força da juventude e a necessidade da sobrevivência, construída pela penúria da pobreza, irrigada pelo sonho limitado de cada um. Ennis é conciso, quieto, quase rude na alma introspectiva. Jack é mais solto, quem puxa pelo silêncio do companheiro de labuta. O ambiente é inóspito, quase hostil, cercado por lobos, ursos e outros animais silvestres, pelo calor escaldante do dia e o frio cortante das noites. A comida é precária, vivem de mesquinhas rações fornecidas por um patrão sovina. A labuta é quase insuportável, uma escravidão remunerada. Na solidão da montanha, somente a amizade poderá fazê-la suportável. Jack é quem arranca das entranhas de Ennis as palavras, o estoicismo latente, o fio que conduz os diálogos e as revelações que se vão quebrando os silêncios. Ele aprenderá a extrair para sempre os mais verdadeiros e negados sentimentos do companheiro.
As imagens da montanha vão surgindo como uma beleza radiante, como um bem acabado cartão postal. A solidão da paisagem é quebrada pela música contundentemente sedutora composta pelo argentino Gustavo Santaolalla.
No meio da paisagem, Ennis e Jack lutam contra as diversidades do ambiente silvestre. Enfrentam feras, caçam cervos para não morrerem de fome, revezam nas funções, ora um sobe ao topo da montanha, ora o outro desce.
Nos momentos que se encontram, conseguem fazer parte do gênero humano, não da paisagem selvagem da montanha. Alimentam-se, falam, bebem, trocam confidências de vida. Numa noite Ennis bebe demais, não conseguindo partir para o topo da montanha. Completamente embriagado, decide dormir no acampamento de Jack. Na sua visão viril do mundo, prefere dormir junto à fogueira, ao relento e ao frio, do que ao lado de Jack, dentro da tenda. A noite é áspera e fria, Ennis sente os ossos congelar. Jack ouve o amigo tremer de frio, vai buscá-lo, trazendo-o para a tenda. Deitam-se um ao lado do outro. A solidão da noite transforma-se na solidão da vida. Jack está decidido a quebrá-la. Envolve o braço do amigo em seu corpo. Aos poucos começa a despi-lo. Ennis, ainda sob o torpor da bebida, acorda assustado com os gestos de Jack. Levanta-se, deixando-se acossar pelos carinhos do outro. Sua atitude é brusca, quase selvagem, deixa-se levar pelos instintos, não pelos carinhos. A cena é crua, de forma bruta, quase que violenta, Ennis subjuga Jack, possuindo-o com a fúria da virilidade solitária. O sexo como explosão é o início do encontro complexo que prenderá as almas dos dois para sempre.

Estabelecido o Segredo na Montanha

Na manhã seguinte, Ennis acorda ao lado do companheiro de jornada. Veste as calças e saí. Não considera o que fizera um ato digno, mas sim uma explosão do desejo viril. Rejeita o prazer, cobrindo-se de culpa. Jack aparece. Senta-se à fogueira, ao lado de Ennis, que lhe permanece virado de costas. Não consegue olhar para Jack. Consegue apenas dizer que aquilo terminava ali, não haveria uma outra vez. Jack responde convicto: “Isto não interessa a mais ninguém além de nós”. Para Ennis, a verdade é a que encerra, a que lhe cobra o mundo. Ele só quer uma afirmação: “Ain’t no queer”, ou seja, não era anormal, não era um maricas. Jack também diz que não o é.
Ennis monta o cavalo e parte para o alto da montanha. Ficará a tarde toda preso à culpa latente pela noite que se permitira ser mais animal, ejacular sobre a solidão. É o momento mais contundente à frase que se está estampada nos cartazes do filme, o slogan “Love is a force of nature” (O amor é uma força da natureza).
Mais complacente com a sua culpa, Jack despe-se à beira do rio, lavando as suas roupas nas águas límpidas e correntes, como se lavasse a fúria da noite, o cheiro de Ennis, o seu sêmen. São notáveis os momentos em que as personagens cuidam da sua higiene pessoal, mesmo com a precariedade do local, banhando-se com improvisadas canecas e água fervida na fogueira.
Ennis só retorna já muito tarde da noite. Encontra Jack deitado dentro da tenda. Pede-lhe desculpa, deita-se ao seu lado, e desta vez o sexo dá passagem para o sentimento. O carinho substitui o ato animal. O ato físico cru e selvagem dá passagem para o ato amoroso, iniciando uma relação que os seguirá para o resto de suas vidas. Permitem-se amar um ao outro, encontrando o que há de mais genuíno em suas almas, assumindo o maior segredo das suas vidas.
A partir de então, o filme mostra a força pujante de dois homens, que se equilibram pelo sentimento, jamais por suas naturezas. Rolar bruscamente na relva, trocar socos, cavalgar, fazem parte dos carinhos viris que dissimulam a condição de amantes. Jamais se diz “eu te amo”, jamais será dito com palavras, apenas com olhares e silêncios emanados da alma.
Cada vez mais envolvidos, descuidam-se do trabalho escravo que fazem. Ovelhas são mortas por lobos, tempestades fazem com que elas se misturem a outros rebanhos. Para eles é mais importante preservar a vida juntos, aquecidos na tenda, em uma noite de tempestade do que enfrentá-la na escuridão atrás de ovelhas desgarradas. Suas vidas tornam-se mais importantes do que a servidão humana que lhe exigem aquele trabalho.
As cenas dos dois na montanha são envolvidas sempre por um carinho latente que explode em leves lutas corporais. Heath Ledger rodou uma cena de nu frontal, numa seqüência que o seu personagem e o de Jake Gyllenhall, atiram-se sem roupas ao rio. O diretor Ang Lee, temeu que a ousadia fosse por demais, cortando a cena, mas fotografias com as imagens de nudez do ator foram parar na internet, rodando o mundo. Na cena, Jake Gyllenhall foi substituído por um dublê, não sendo ele quem está ao lado de Heath Ledger.
Enquanto Jack e Ennis distraem-se em viver os seus sentimentos, o idílio da montanha é visto por Joe Aguirre, o contratante, que os observa de longe. O segredo de ambos torna-se tão frágil quanto a própria existência daquele sentimento nascido ao topo da montanha.
Uma tempestade de neve fora de hora encerra o trabalho dos dois improvisados pastores de ovelhas. Inicialmente contratados para chegarem até o fim de setembro, são dispensados um mês antes. Ennis recebe mal a ordem de desmontar o acampamento um mês antes. Tenso e mal-humorado com a decisão, Ennis inicia uma briga com Jack, ambos saem feridos e com as camisas manchadas de sangue.
Os dois deixam em silêncio a montanha. Sabem que a vida continuaria mesquinha e programada para eles. A paisagem silvestre da montanha permitia que fossem livres para amar um ao outro, mas não a sociedade para a qual voltavam. Assim, deduzem que aquele encontro fora um calor de verão, só existente nas leis da natureza presa na montanha. Jack promete voltar no ano seguinte, mas Ennis apenas diz que se vai casar, seguir a vida como acha que deve ser.
Após a contagem das ovelhas, são humilhados pelas palavras do patrão, que diante de tanta perda no rebanho, diz que não prestam para olhar animal algum. Os dois despedem-se sem trocar um aperto de mão, sem uma garantia de que se iriam rever um dia. Separam-se como dois estranhos. Pelo retrovisor da sua velha caminhonete, Jack observa o amigo desaparecer na distância, friamente, sem ousar olhar para trás. O que ele não vê é que debaixo da frieza aparente do Ennis, uma dor insuportável apodera-se dele. Pensando que vai vomitar, Ennis encosta-se em um canto, mas termina por chorar escondido, esmurrando a parede, deixando explodir o sofrimento da separação. Ao perceber que é observado, vocifera para que o deixem em paz. Assim, o mais contido dos homens, chora desesperadamente por perder o seu companheiro, por voltar ao cotidiano da sua vida sem brilho, coberta pelos mistérios da sua existência.

Casamentos e Reencontros

Ennis Del Mar e Jack Twist seguem caminhos separados. A tênue cumplicidade adquirida entre os dois parece ter ficado presa no passado. A amizade que se estabelecera, não fosse o envolvimento emocional, perduraria como exemplo para toda a sociedade, e eles poderiam ser apresentados a todos sem qualquer culpa além da unidade fraterna. Mas o sentimento secreto de ambos, fazia que só existissem um para o outro, longe dos olhares do mundo.
Ennis Del Mar não tinha nada na vida. Perdera os pais muito cedo, sendo criado por irmãos que, à medida que se casavam, excluíam-no das suas vidas. Só lhe restava casar e construir a sua própria família. Assim, já com a marca de Jack fincada em seu ser, casa-se com Alma Beers (Michelle Williams). Construindo com ela uma vida simples, complementada pelo nascimento de duas crianças.
Jack Twist ainda debate-se com a sua solidão. No ano seguinte, conforme prometera ao amigo, volta para tentar trabalhar como pastor na montanha. É recusado por Joe Aguirre. Jack ainda pergunta por Ennis. A resposta do contratador é irônica, elucidando o jovem de que ele sabia o que se havia passado entre ele e o amigo. Jack nada responde. Segue errante o seu caminho pelos rodeios da vida. Atira-se por vezes a possíveis companheiros, sentindo-se rejeitado por sua homossexualidade cada vez mais latente. Por fim casa-se com a impulsiva Lureen Newsome (Anne Hathaway), filha de um rico comerciante de máquinas agrícolas. Gerará com ela um filho.
A vida de Ennis segue monótona, sem grandes sonhos. Assume o seu lar como um marido comum e bom pai de família. Trabalha muito em vários empregos rurais, ganha pouco, mas o suficiente para conduzir a sua vida modesta e simplória. Poderia viver assim para sempre, não fosse em 1967, quatro anos depois de ter trabalhado como pastor na montanha, receber um inesperado cartão postal de Jack, avisando que estaria na sua região, e se ele o queria ver. O mundo familiar de Ennis, construído sobre alicerce frágil, parece desmoronar. Como um sopro no coração, atende ao chamado de Jack, dizendo que sim, que queria vê-lo.
No dia marcado do encontro, Ennis prepara-se como um adolescente perdido. Pela primeira vez a dureza da vida, a maturidade precoce, dá passagem para um jovem sonhador, à espera do amor da sua vida. Ao lado da mulher, espera com uma ansiedade latente a chegada do amigo. Chega a dizer que não acredita que ele virá. De repente abre a cortina da janela, e lá está a caminhonete de Jack, mostrando que a vida tinha sido menos dura financeiramente com o amigo.
O reencontro de Ennis e Jack é convulsivo desde o primeiro instante. O contido Ennis, que guarda as emoções por anos, e que as explode em situações de brigas, sexo ou beijos, mostra-se um homem passional. Ao rever Jack, não se contenta com um simples abraço, inadvertidamente puxa-o para um canto e o beija com fúria ali mesmo. O contacto físico é à flor da pele e dos sentimentos, quase que de forma explosiva. Tão forte que ao se rodar o filme, Heath Ledger quase quebrou o nariz de Jake Gyllenhall em uma cena de beijo. Tão intenso, que deu ao filme o prêmio MTV Movie Award de melhor beijo.
Ao seguir o seu impulso, Ennis não se dá conta do quão insensato tinha sido o seu ato. Da janela da sua casa, Alma assiste ao beijo do marido e do amigo, descobrindo o seu segredo. Pela segunda vez o amor entre os dois é convertido em um segredo aberto. Se o momento é de felicidade extrema para Ennis, é o fim das ilusões de um casamento tranqüilo para Alma. O início do seu sofrimento, da sua tristeza solitária. Alma conviverá com o segredo do marido silenciosamente, sem nunca confessar que sabe. Passará a ser uma mulher triste e infeliz, presa à teia de uma infidelidade que jamais compreenderá. Michelle Williams compõe uma sofrida personagem, vítima do segredo do marido, da sua indecisão de viver uma escolha. A atriz foi nomeada ao Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante. Durante as filmagens, iniciou um relacionamento com Heath Ledger, que duraria dois anos, dando ao ator a sua única filha, Matilda Rose, sendo Jake Gyllenhall o padrinho da menina.

O Amor Clandestino

O reencontro de Jack e Ennis define para sempre o destino dos dois. Estão irremediavelmente destinados a viver aquele amor clandestino. Juntos, em um momento de intimidade incontida, Jack dá a sentença: “Brokeback Mountain nos pegou de jeito”. Não podiam mais fugir daquele sentimento.
Jack propõe a Ennis que abandonem suas vidas de casados e construam um rancho isolado, vivendo juntos para sempre. É quando Ennis revela o seu medo do mundo, de enfrentar a sociedade. Conta ao amigo que quando criança, na sua terra, um casal homossexual decidiu viver junto, sendo motivo de repulsa e hostilidade da comunidade. Um dia, o seu pai o levou para ver o cadáver de um deles, que fora assassinado, puxado pelo pênis e atirado em um canal de irrigação. O pequeno Ennis foi obrigado pelo pai a ver aquele cadáver, para que o filho compreendesse os valores morais e inabaláveis da sua comunidade. Ennis confessa que sempre suspeitara que o próprio pai cometera aquele crime ignóbil.
Revela a Jack que dois homens juntos jamais seriam aceitos. Que mais uma vez a vida os pusera juntos fora de hora, tarde demais. Mas que já não seguiria sem ele. Viveriam aquele sentimento clandestinamente, até onde se lhes fosse possível de agüentar.
O que Ennis não sabia é que agüentariam aqueles reencontros furtivos por toda a juventude dos dois. Encontrar-se-iam duas vezes por ano, fugindo para um acampamento na montanha, onde a força da natureza permitia que vivessem aquela paixão em segredo. Ennis e Jack só não sabiam que o seu segredo era mais frágil do que se imaginava. Assim como Joe Aguirre, também Alma sabia do amor proibido vivido pelos dois. Ennis pensa que engana o seu mundo, à sociedade em que está inserido, quando o segredo da sua verdade é compartilhado com outras tantas pessoas, que se calam por um ou outro motivo.

Separação e Decepção

Ennis construirá o sentido da sua vida baseado nos seus encontros com Jack, que se darão por toda vida. Ennis teme a sociedade, mas teme a si mesmo, pois não se consegue ver um homem homossexual. Para ele Jack é o único homem que aceita tocar, beijar, e amar. Longe dele não existe um mundo de opção sexual entre homens. Jack é mais que um ato sexual, é o amor na mais profunda cicatriz da existência, é o sentimento genuíno e revelador. É fácil para ele esperar cada dia pelo encontro, em que pode ser feliz sem medo, sem as pressões de uma vida sofrida e repleta de privações financeiras. Sem perceber, Ennis faz da esposa a mulher mais infeliz do mundo. Não enxerga o que se passa no coração feminino de Alma, porque ela não é o centro do seu universo, é a coadjuvante, a capa que o protege do mundo, que lhe possibilita amar o amigo sem ser confrontado pelas valias, dogmas e moralidades do mundo.
Por sua vez, Jack amadurece a sua homossexualidade. Vive-a sem medo. Corre os riscos, expõe-se sempre. Seu casamento não tem o mesmo peso do de Ennis. A mulher vive distante, mergulhada no seu mundo, deixando o marido livre para percorrer os labirintos do seu ser. Jack não tem o respeito do sogro, que o enxerga como um simples aproveitador. Limita-o dentro da própria casa, como se fosse um nada. Jack sonha em deixar aquela vida, aquela casa onde é um simples figurante. E Ennis está nos seus sonhos. É com ele que quer dividir um rancho, cuidar das suas próprias ovelhas. Jack não reprime a sua opção sexual. Ela é latente no seu ser. Longe de Ennis, ele procura bares em que homens se vendem por dinheiro. Vive encontros furtivos. Envolve-se com o vizinho, sem nunca deixar de ver Ennis. Por mais que tente, não consegue se libertar do velho companheiro. Segue a vida, preso às decisões de Ennis, sem poder realizar o seu sonho. Para aliviar o seu desejo latente, quando está longe, envolve-se com outros homens, sem jamais conseguir ir além do sexo. Os outros representam o ato sexual, Ennis é o amor vivido, o sentimento verdadeiro, a esperança do companheirismo eterno. Uma curiosidade é a cena em que Jack paga um homem no México para ter relações, o gigolô é vivido por Rodrigo Prieto, diretor de fotografia do filme.
Se a mentira de Ennis faz a infelicidade de Alma, ela um dia dá um basta naquela vida angustiada, sofrida e menor ao lado do marido, pedindo o divórcio. Alma voltaria a casar novamente, reconstruindo a sua vida longe do segredo do marido.
A notícia da separação reacende as esperanças de Jack, em ver finalmente, que poderia realizar o sonho de viver ao lado de Ennis. Tão logo sabe da separação, dirige apressado por longos quilômetros para ver o amigo. Ao chegar, é recebido com as limitações impostas por Ennis. Jack é recebido formalmente, pois as filhas de Ennis estão com ele no rancho. O recém divorciado pede ao amigo que parta, pois não via as filhas há um mês, e teria que ficar com elas naquele fim de semana. Ennis diz a Jack que tem que trabalhar para pagar a pensão às filhas, que jamais poderia abandoná-las.
Mais uma vez Jack acata as decisões do amigo. Parte com a certeza que jamais realizaria o sonho de viver ao lado de Ennis. Que está para sempre condenado a vir ao encontro dele, e a buscar sexo nos perigos da noite. As lágrimas rolam pelo rosto de Jack, enquanto ele dirige, como se com elas escorressem todos os seus sonhos. Pela primeira vez ele sente que se um dia realizasse o sonho de ser ele mesmo, de ter a paz vivida em seu rancho, teria que ser sem Ennis. Jack irá permitir-se envolver além do sexo com um vizinho.

O Último Encontro

O tempo passa. Ennis vive na completa solidão social. Em um jantar com Alma e com a sua nova família, ela insinua que sabe a verdade que o unia realmente ao amigo de pescaria. Ennis não suporta ouvir que outra pessoa saiba do seu segredo. Deixa a casa da ex-mulher furioso. Dirige com raiva, envolvendo-se em uma discussão com outro motorista, parte para cima do homem e descarrega nele toda a sua raiva diante de uma iminente revelação da sua vida particular. Agride com socos violentos o homem que por má sorte, cruzara o seu caminho.
Para manter a sua imagem viril, ele envolve-se com Cassie Cartwrigth (Linda Cardellini), jovem que trabalha no bar onde costuma comer.
Um novo encontro na montanha entre Jack e Ennis será decisivo. Juntos revisam as suas vidas. Ennis fala do seu namoro com Cassie, e Jack fala do dele com uma vizinha, o que é mentira, pois é com o marido dela que ele faz insinuações. Falar de mulheres é fundamental para Ennis, que vê naquele momento a sua virilidade não se esvair diante do amor que o prende a Jack. É um elo que o mantém firme à sociedade da qual se despe em frente à montanha.
Quando se preparam para partir, Ennis diz a Jack que só poderá revê-lo em novembro. Jack exaspera-se, perguntando o que tinha acontecido com agosto? Ennis explica que precisa trabalhar para pagar a pensão das filhas. Que já está a envelhecer, já não podia abandonar os trabalhos e seguir ao encontro do amigo. Os empregos já não lhe vinham com facilidade. Jack não se conforma. Uma longa discussão é estabelecida entre os dois. Ennis questiona o amigo se ele foi ao México atrás de outros homens, se ficasse sabendo da traição, era capaz de matá-lo. Jack explode, finalmente. Revelando que ia buscar o que nunca tinha, que não era como ele, que conseguia ter uma vida sexual apenas duas vezes ao ano. Questiona o que tinham de verdade, a não ser a montanha? Desfere finalmente a frase: “Quem me dera saber como te deixar”. Diante da revelação, Ennis desmorona, cai de joelhos a chorar, dizendo que por causa do que sente por Jack, não tinha mais nada na vida, não construíra nada além daqueles momentos, não tinha forças nem mesmo para suportar aquela situação. Jack aproxima-se de Ennis, sendo afastado por ele. Mas o amigo volta, abraço-o. Mais calmos, despendem-se. Ennis não sabe que será a última vez que verá Jack.
Ao ver Ennis partir, Jack revive um momento, preso em 1963, quando jovem, cansado pela labuta com as ovelhas, dormia em pé, em frente à fogueira, e Ennis abraçava-lhe por trás, como se quisesse protegê-lo da fadiga. Ennis sussurrava umas palavras aos ouvidos do amigo, depois partia para o alto da montanha. Os olhos de Jack voltam ao presente. Ele vê Ennis já maduro, partir na sua caminhonete. Jack sabe que é a última vez que o verá. Está decidido a viver o seu sonho de liberdade, numa casinha ao fundo do rancho dos seus pais. Viveria o seu sonho, ainda que não fosse com Ennis.

Em Busca das Cinzas

Passam os meses. Ennis recebe de volta o cartão que enviara a Jack para confirmar a próxima viagem. No postal o carimbo do correio diz “falecido”. Ennis desespera-se. Rompe as barreiras que impusera e telefona para a casa de Jack. Conversa com Lureen, que lhe relata sobre a morte do marido, supostamente em um acidente na estrada, quando ao trocar um pneu, este explodiu na sua cara. Imagens de Jack sendo assassinado são intercaladas, numa ambigüidade em que parece ter vindo da cabeça de Ennis, que vê o mesmo fim que levara o homem que supunha o pai tinha matado por ser homossexual, quando ainda criança; ou que, Jack tinha tido o mesmo fim. Lureen diz a Ennis que não sabia do seu endereço, por isto não lhe comunicou a morte do marido. Que o último pedido de Jack tinha sido para que as suas cinzas fossem espalhadas na montanha Brokeback, mas que ela não sabia onde era, o se o lugar existia realmente. Ennis revela que sim, a montanha existia. O silêncio de Lureen é como se lhe fosse confirmada uma suspeita que tinha em relação ao marido. Ela diz que tinha enterrado parte das cinzas de Jack, a outra parte enviara para os seus pais, em Lighting Flats, para que eles cumprissem o desejo final do marido. Sugere a Ennis que procure os pais de Jack, e cumpra o pedido do marido.
Ennis segue para o rancho dos pais de Jack. Diante da sociedade, não representa nada na vida do amigo. Não lhe conhecia o filho, a mulher, a vida paralela que tinha. Nada lhe era permitido, nem mesmo as cinzas do amigo, espalhadas onde deveriam estar, no lugar em que os dois construíram as suas vidas, existente em segredo, na face invisível da sociedade. Ennis vai resgatar o que lhe é permitido, as cinzas de Jack.
Ao chegar ao local, Ennis encontra um rancho pobre e decadente. É recebido pelos pais de Jack. O pai, John Twist (Peter McRobbie) traz as palavras duras e tacanhas de um homem sofrido e rude. Através dele, Ennis descobre que Jack jamais escondeu a sua existência dos pais. As palavras duras de John Twist revelam as frustrações de vida do filho morto. Conta que ele prometera um dia construir uma casa atrás do rancho, e que viria para ali morar com o amigo Ennis, e juntos iriam ajudá-lo. Revela que para o fim, traria um outro amigo, um vizinho do Texas, decisão que precipitara o seu fim. Ennis escuta todas as revelações em silêncio, como se visse nelas os sonhos desfeitos de Jack, sonhos que ele sempre soube da existência.
Se as palavras do pai são frias, o olhar da mãe de Jack (Roberta Maxwell) é cheio de cumplicidade e revelações de ternura. Ela sabe quem é o homem que está à sua frente, conhece os segredos do filho morto, o seu silêncio traduz que está diante daquele que realmente dera verdade à vida do filho. Diz a Ennis que vá até o quarto que fora de Jack, pois lá conserva tudo que lhe pertencera, desde criança. Tudo está como ele o deixou.
Ennis aceita entrar no quarto do amigo. Pela primeira vez percorre o mundo do companheiro além daquele que criaram e estabeleceram um para o outro. Olha todos os detalhes. De repente depara-se com duas camisas no armário. Encontra manchas de sangue sobre elas. Ennis reconhece as camisas, são as mesmas que Jack e ele traziam no último dia em que estiveram juntos em Brokeback Mountain, em 1963, quando brigaram e verteram sangue um do outro. O contraste entre as ações se intercala, a primeira vez que se atracaram sexualmente, como animais, Jack sentira necessidade de lavar a sua roupa no rio no dia seguinte. Quando verteram o sangue um do outro, era porque o sexo dera passagem ao amor, Jack guardou as camisas sem jamais as ter lavado, perpetuando através do seu sangue e do de Ennis, o amor que levaria para o resto da sua vida.
Ennis tem a certeza de que Jack sempre o amara, que assim como ele, sofrera com a separação. Encolhe-se ao canto do armário e, com lágrimas nos olhos, abraça-se à camisa de Jack, como se nela sentisse o seu cheiro. Como se abraçasse toda a sua vida, todos os seus segredos. De volta à sala, ele traz as camisas. Nada diz, mostra-as à mãe de Jack, que lhe acena permitindo-o levar aquela lembrança. Ela pega um saco e guarda as camisas, entregando-as a Ennis. Seu olhar diz que ela sabe que as camisas lhe pertencem, pois ao guardá-las sujas de sangue, respeitou a vontade do filho, segredo que ela como mãe, soube velar, e que a cada olhar lançado a Ennis, divide-o finalmente.
Nos últimos momentos da visita de Ennis, John Twist sentencia que as cinzas do filho serão enterradas no jazigo da família. Antes de partir, a mãe de Jack troca mais um olhar cúmplice com Ennis, pedindo a ele que volte, que venha visitá-los, como se estabelecessem um acordo velado para que se cumprisse o último desejo de Jack. Ennis acena que sim.

A Promessa Final

Na cena final, Ennis vive em um trailer. Jamais teve um fôlego financeiro, ou mesmo a liberdade de ser a sua essência. Ali, é visitado pela filha, Alma Jr (Kate Mara), agora com 19 anos. A filha revela-lhe que se vai casar, e pede para que ele a conduza até ao altar. Ennis pergunta se os dois se amam de verdade. Ela diz que sim. Ela tem a mesma idade que ele quando conheceu Jack e a verdade do amor.
A princípio Ennis, sempre estóico e contido, reluta em ir ao casamento da filha, alegando que tem que trabalhar. De repente percebe que dissera o mesmo a Jack, quando o viu pela última vez. É como se, não tivesse faltado ao encontro de agosto, o amado ainda pudesse estar vivo. Ennis diz que sim, que acompanhará a filha ao altar. A jovem parte feliz, com a certeza da presença do pai.
Ennis percebe que Alma Jr se esqueceu do suéter. Dobra-o, abre o armário para guardá-lo. Salta-nos a imagem das duas camisas penduradas na porta, desta vez com a de Ennis por cima da de Jack, ao lado, um cartão postal da montanha Brokeback. Ennis olha para as camisas, cuidadosamente abotoa a parte de cima da camisa que pertencera a Jack. Os olhos estão marejados. Com um olhar turvo, diz: “Jack eu prometo”. Endireita o postal da montanha e fecha a porta. A câmara é fixada na imagem da porta fechada. A música de Gustavo Santaolalla eleva-se. O filme é encerrado. O que prometera Ennis à memória de Jack? Que voltaria a visitar a sua mãe, trazendo-lhe as cinzas para a montanha Brokeback, juntando-as, futuramente às suas? Realizaria o sonho de Jack, unindo as suas cinzas as dele na montanha?
A composição longa do tempo gerou uma forte maquiagem nos atores, demasiados jovens para os anos que se lhe são impregnados. Se a imagem é pesadamente forçada, a essência do envelhecimento das personagens é magistralmente assimilada pelos atores. Jake Gyllenhall, tido como coadjuvante, ultrapassa em importância o papel, indo muito além do que lhe foi proposto, sem a sua personagem não há a outra, portanto não há coadjuvantes. Heath Ledger viveu o grande papel da sua vida, curta e rápida, sem tempo para outros grandes papéis. Viveu a juventude e a maturidade que a vida lhe negou através do olhar de Ennis Del Mar. O ator viria a falecer em 22 de janeiro de 2008, aos 28 anos.
O Segredo de Brokeback Mountain”, inicialmente previsto para ser sucesso em um circuito fechado, ultrapassou os preconceitos e as barreiras, atingindo grandes públicos. Sendo indicado para oito Oscars da academia, arrebatando três, inclusive o de melhor diretor. Recebeu o Leão de Ouro como melhor filme no Festival de Veneza, e o Globo de Ouro na mesma categoria. Apesar de ter sido barrado em vários países de cultura conservadora, transformou-se no oitavo filme romântico recorde de bilheteria nos Estados Unidos.
O pôster do filme foi inspirado no de “Titanic”, trazendo a instigante frase “O amor é uma força da natureza”.
O filme é essencialmente, o reflexo das escolhas que fazemos. Ao recusar viver com Jack, Ennis não temia somente os preconceitos da sociedade, mas também os seus próprios. Optara por uma vida em segredo, sem se aperceber que era um segredo aberto. Quantos não o sabiam? A sua mulher Alma, o patrão Joe Aguirre, a mãe de Jack. Quantos não suspeitavam? Tragicamente, Ennis escondia um segredo que só ele imaginava existir. O seu medo gerou a infelicidade de Alma, a vida errante de Jack, e quem sabe, a sua morte prematura. Ao fim, do que se escondeu Ennis Del Mar senão de si mesmo? Quem que sabia dos seus segredos ameaçou-o concretamente? Joe Aguirre apenas insinuou que sabia a Jack, mas nada fez para expô-los, estava mais preocupado com o bem estar das ovelhas do que com o relacionamento dos seus pastores. Não dispensou Jack por causa do preconceito, mas pelo prejuízo que julgou ter pelo ilídio amoroso dos dois. Alma calou-se impotente diante da verdade do marido, jamais aceitaria os sentimentos do marido, mas pior foi ter que conviver com tão pungente realidade todas às vezes que ele deixava tudo para ir ter com o amigo. Doía-lhe saber o que faziam de verdade nas fictícias pescarias. Por fim, os pais de Jack esperavam o dia em que o filho traria Ennis pelas mãos. Portanto o empecilho maior sempre esteve na mente de Ennis, que na escolha de viver uma vida em segredo, perdeu a única verdade da sua alma, fazendo da vida uma rara felicidade, vertida apenas ao pé da montanha Brokeback. Mas quem pode culpar Ennis? Em pleno século XXI, quantos não vivem os sentimentos à margem da sociedade? Quantos amores clandestinos não se tornam visíveis em leitos fechados e invisíveis à sociedade?

Ficha Técnica:

O Segredo de Brokeback Mountain

Direção: Ang Lee
Ano: 2005
Pais: Estados Unidos e Canadá
Gênero: Drama Romântico
Duração: 134 minutos / Cor
Título Original: Brokeback Mountain
Roteiro: Larry McMurtry e Diana Ossana, baseado no conto de Annie Proulx
Produção: Michael Costigan, Scott Ferguson, Michael Hausman, Larry McMurtry, Diana Ossana, William Pohlad e James Schamus
Música: Gustavo Santaolalla
Direção de Fotografia: Rodrigo Prieto
Direção de Arte: Laura Ballinger e Tracey Baryski
Produção de Design: Judy Becker
Decoração de Set: Catherine Davis
Figurino: Marit Allen
Maquiagem: Mary-Lou Green-Benvenuti, Linda Melazzo, Manlio Rocchetti, Penny Thompson e Sharon Toohey
Edição: Geraldine Peroni e Dylan Tichenor
Direção de Elenco: Avy Kaufman
Efeitos Especiais: Kelly Coe e Maurice Routly
Efeitos Visuais: Sarah Coatts, Jason Giberson, Ara Khanikian, Bruno-Olivier Laflamme, Jean-François Laffleur, Louis Morin, Alexandre Lafortune, Pierre-Simon Lebrun-Chaput, Chris Ross, Mathew Rouleau, Robin Tremblay e Mark Turesk
Som: Philip Stockton, Larry Wineland, Marko A. Costanzo, Michael J. Fox, Eugene Gearty, Kenton Jakub, Frank Kern, Drew Kunin, Avi Laniado, George A. Lara, Wyatt Sprague, Peter Melnychuck, Geo Major, Igor Nikolic, Relly Steele, Sara Stern e David Warzynski
Estúdio: Paramount Pictures / Good Machine / This is That Productions / River Road Entertainment / Alberta Filmworks Inc.
Distribuição: Focus Features / Europa Filmes
Elenco: Heath Ledger, Jake Gyllenhall, Anne Hathaway, Michelle Williams, Randy Quaid, Linda Cardellini, Anna Faris, Scott Michael Campbell, Kate Mara, Cheyenne Hill, Brooklyn Proulx, Tom Carey, Graham Beckel, David Harbour, Mary Liboiron, Roberta Maxwell, Peter McRobbie, Valerie Planche, David Trimble, Victor Reyes, Lachlan Mackintosh, Larry Reese, Marty Antonini
Sinopse: Ennis Del Mar (Heath Ledger) e Jack Twist (Jake Gyllenhall) são dois jovens pobres que se conhecem no verão de 1963, quando contratados para cuidar das ovelhas de Joe Aguirre (Randy Quaid), na montanha Brokeback. Jack quer ser um astro de rodeios, enquanto que Ennis tenciona casar-se com Alma (Michelle Williams), tão logo regresse da montanha. Isolados por semanas, sobrevivendo a um ambiente inóspito e de penúria, os dois tornam-se cada vez mais amigos, até que iniciam um relacionamento amoroso. No término do serviço, cada um segue o seu caminho, mas permanecerão ligados para sempre, vivendo uma paixão clandestina por duas décadas.

Ang Lee

Ang Lee é um dos vários cineastas talentosos que Hollywood importou nos anos noventa. Nascido em Pngtung, Taiwan, em 23 de outubro de 1954, o cineasta, ator e produtor, teve a sua formação na National Taiwan College of Arts, concluindo-a na Universidade do Illinois, nos Estados Unidos, país para o qual se mudou em 1978.
Em 1983, casou-se com Jane Lin, com quem teve dois filhos nascidos nos Estados Unidos.
Ang Lee estrear-se-ia como diretor em 1992, com o longa-metragem “A Arte de Viver”. A consagração viria em 1993, com o filme “O Banquete de Casamento”, sendo indicado para o Globo de Ouro, além de arrebatar o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim.
Em 1994, outro filme seu receberia a indicação do Oscar na categoria de melhor filme estrangeiro, “Comer, Beber e Viver”. No ano seguinte traria para as telas um clássico da literatura, “Sense and Sensibility”, inspirado no romance de Jane Austen, desta vez contando com um elenco internacional luxuoso, com Emma Thompson e Hugh Grant.
Ao longo do tempo, Ang Lee foi acumulando grandes sucessos, como “O Tigre e o Dragão”, em 2000, sendo, com este filme, ovacionado no festival de Cannes. A consagração maior viria com o polêmico “Brokeback Mountain”, em 2005, com o qual ganhou os prêmios Globo de Ouro e Oscar na categoria de melhor diretor. Ang Lee é hoje um dos mais respeitados cineastas de Hollywood e do mundo.

Filmografia de Ang Lee:

1992 – Tui Shou (A Arte de Viver)
1993 – Xi Yan (O Banquete de Casamento)
1994 – Yin Shi Nan Nu (Comer, Beber e Viver)
1995 – Sense and Sensibility (Razão e Sensibilidade)
1997 – The Ice Storm (Tempestade de Gelo)
1999 – Ride With the Devil (Cavalgada com o Diabo)
2000 – Wo Hu Cang Long (O Tigre e o Dragão)
2001 – Chosen
2003 – Hulk
2005 – Brokeback Mountain (O Segredo de Brokeback Mountain)
2007 – Se, Jie (Desejo e Perigo)
2009 – Taking Woodstock
2011 – Life of Pi (pré-produção)

 


RIO DE JANEIRO DO SÉCULO XIX

novembro 16, 2010

Desde que foi fundada pelo português Estácio de Sá, em 1 de março de 1565, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro tornou-se local de importância estratégica, por estar no meio do território brasileiro na época do seu desbravamento e expansão das fronteiras. Crescendo como proeminente centro portuário e econômico, foi elevada à capital do Brasil, em 1763, quando o polêmico ministro Marquês de Pombal, transferiu para ali a sede da colônia, anteriormente em Salvador. Desde então, a cidade não parou de avançar política e economicamente. Com a chegada da família real portuguesa, em 1808, passou a ser a cidade de onde o reino de Portugal e Brasil eram administrados. Com a independência do Brasil, em 1822, passou a ser a capital do Império.
Pela sua importância política ao longo da história, o Rio de Janeiro foi a cidade que mais teve registros antigos de imagens. Muito antes da técnica da fotografia chegar ao Brasil, a cidade maravilhosa foi retratada em litografias, pinturas e aquarelas. Valeram-se da sua paisagem de beleza natural singular, situada na margem ocidental da baía de Guanabara, entre montanhas e morros, os mais importantes artistas do século XIX, entre eles Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas.
Graças aos artistas geniais que nos legou um rico acervo de paisagens pitorescas do Rio de Janeiro, podemos contemplar um passado distante, o pulsar de uma cidade movida pela beleza natural e pela essência da sua gente. Através das imagens das litografias de Debret, Rugendas, P. Bertichem, Maria Graham e Planitz, percorrermos ruas, casas e palacetes do Rio de Janeiro do século XIX, numa agradável viagem no tempo e à história de uma cidade de rara beleza natural.

Largo do Rocio, de Debret

Para fugir ao cerco de Napoleão Bonaparte, a família real portuguesa migrou para o Brasil, aqui desembarcando em 1808. A cidade do Rio de Janeiro passou a ser a sede administrativa do reino de Portugal e Brasil, aumentando freneticamente a sua importância, o desenvolvimento social e econômico.
Após a queda de Napoleão, Portugal e França reconciliaram-se. Por solicitação de Dom João VI, em 1816, chegou ao Brasil, vinda da França, uma missão artística comandada por Joachim Lebreton. Entre os artistas estava Jean-Baptiste Debret.
Debret viveu quinze anos no país, atravessando o período final do Brasil colônia à formação e fim do Primeiro Império. Durante o tempo que aqui esteve, estabeleceu uma relação emotiva e pessoal com o Brasil, registrando em sua pintura e desenho, a paisagem, o cotidiano, os costumes de uma jovem e recém-nascida nação. Por motivos de saúde, voltou à França em 1831. Em 1834 começou a publicar “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, num dos maiores documentos de imagens do Brasil do século XIX.
Na litografia aqui apresentada, “Real Teatro de São João, no Largo do Rocio”, podemos ver a vida pulular no coração da capital do Império. Escravos de ganho circundam o pelourinho, no lado direito. Senhores e senhoras bem vestidos transitam, concentrando uma multidão ao meio do Largo do Rocio, onde se encontra o Real Teatro de São João. A partir de 1831, o local e o teatro seriam rebatizados respectivamente como Praça da Constituição e Teatro Constitucional Fluminense. No decorrer dos anos, teriam os nomes mudados outras vezes, chegando aos tempos atuais como Praça Tiradentes e Teatro João Caetano.

Corcovado, de Maria Graham

Lady Maria Dundas Graham Callcott, foi uma notável pintora, desenhista, ilustradora e escritora britânica, que ficou conhecida no Brasil com Maria Graham. Em 1823 acertou com o imperador Dom Pedro I ser a preceptora da sua filha, a jovem princesa Dona Maria da Glória, futura rainha de Portugal. Permaneceria no Brasil até 1826, quando a princesa retornou para Portugal.
No Rio de Janeiro residiu entre os belos casarões da enseada do Botafogo, lugar que considerava uma das mais belas paisagens do mundo.
Na sua passagem pelo Brasil, deixou registros preciosos da época, publicados em Londres, em 1824, na obra “Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821, 1822, 1823”.
Em “Corcovado”, a gravura de Maria Graham registra a beleza silvestre da cidade, do pico solitário, sem o marco do Cristo Redentor, ladeado das cores de uma flora tropical que tanto encantou a pintora.
“Todas as vezes que passo por um bosque no Brasil, vejo plantas e flores novas, e uma riqueza de vegetação que parece inexaurível. Hoje vi flores de maracujá de cores que dantes nunca observara: verdes, róseas, escarlates, azuis, ananases selvagens de belo carmesim e púrpura; chá selvagem ainda mais belo do que o elegante arbusto chinês, palmeiras de brejo e inúmeras plantas aquáticas novas para mim.”

Rua Direita, de Rugendas

Johann Moritz Rugendas, pintor alemão do século XIX, chegou ao Brasil em 1821, como desenhista da missão científica do barão de Langsdorff. Permaneceu no país por cinco anos, viajando por diversas regiões, coletando um rico material que registraria em suas pinturas e desenhos. Retratou com apurada beleza artística e científica a botânica, os tipos humanos, a paisagem física, a fauna e a flora do Brasil que ao sair da fase colonial, conservava os costumes em contraste com os tempos vindouros de uma nova nação.
Deixou o Brasil em 1826. Em 1835, publicaria as suas memórias de viagem através das litografias transpostas para o álbum “Viagem Pitoresca ao Interior do Brasil” (Voyage Pittoresque dans le Brésil).
Na litografia “Rua Direita” (Rue Droite), atual Rua Primeiro de Março, sente-se a pulsação no centro da capital do Império, desfilando vários personagens da cidade: senhores em seus trajes elegantes, escravos em suas funções seculares, padres, tropeiros, cavaleiros em seus cavalos, numa convulsão de cenas da vida cotidiana, tendo o morro do Castelo ao fundo, onde se pode observar um cavaleiro passando por baixo do arco de ligação entre o Paço e o convento do Carmo.
Sobre as edificações da parte antiga da cidade, Rugendas descreveria:
“As casas deste setor são, em geral, altas e estreitas; seus telhados são empinados e nada, em suas características construtivas, faz lembrar o clima tropical. Elas possuem, quase sempre, três ou quatro andares e apenas três panos de fachada. Como as janelas são muito alongadas, a desproporção que se observa entre a altura e a largura das casas se torna ainda mais chocante.”

O Palácio de São Cristóvão

Com a presença da corte no Rio de Janeiro, a cidade recebeu melhoras no saneamento e na urbanização. Com a ascensão de Dom João VI ao trono, em 1816, melhorou-se o calçamento das ruas; nivelou-se as principais artérias da cidade, favorecendo as ruas São José, do Ouvidor e da Cadeia; concluiu-se o revestimento de granito do Largo de São Francisco.
Entre as melhoras, estava o caminho percorrido pelo cortejo real, do Palácio de São Cristóvão ao Largo do Paço.
Aqui, duas litografias que apresentam a residência imperial de São Cristóvão em fases distintas. A primeira, “Residência Imperial de São Cristóvão”, é uma litografia aquarelada, de autor anônimo, de data imprecisa.
A segunda, “Paço de São Cristóvão de Pézerat”, foi desenhada pelo barão Karl Robert Planitz.
Pierre Joseph Pézerat, no Brasil Pedro José, foi um engenheiro politécnico francês, que chegou ao Brasil em 1825. Estudou na Escola de Belas Artes de Paris. Quando o Brasil declarou independência de Portugal, em 1822, era necessário que se fizesse obras de melhora na capital do Império. O francês tornar-se-ia arquiteto particular do imperador Dom Pedro I. Foi ele quem definiu o estilo do Palácio Imperial de São Cristóvão, acrescentando um pavilhão à casa de campo que já existia.
Pézerat daria estilo e elegância a várias residências da corte, entre elas a moradia da Marquesa de Santos. Seria condecorado com a Ordem do Cruzeiro do Sul e com Ordem da Rosa. Após a abdicação e partida de Dom Pedro I para Portugal, em 1831, Pézerat também deixaria o Brasil, rumando para a Europa.

Águas Férreas, Colégio Episcopal de São Pedro e Alfândega, de P. Bertichem

Apesar de ter deixado registros preciosos do Rio de Janeiro do século XIX, Pieter Godfred Bertichen, pintor holandês, tem uma biografia escassa, sem que se lhe esclareça certas passagens de vida.
Contava com 41 anos quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1837, vivendo no Brasil até a sua morte. Fez parte da Exposição Geral da Academia Imperial de Belas Artes, em 1845, apresentando a pintura “Vista da Cidade do Rio de Janeiro Observada da Ilha dos Ratos”. Em 1856, publicaria “O Brasil Pitoresco e Monumental”, obra rara do Brasil do século XIX, contendo quarenta e seis paisagens litográficas.
Com o nome aportuguesado para Pedro Godofredo Bertichem, aparece muitas vezes grafado como P. G. Bertichem, ou simplesmente P. Bertichem.
Na primeira litografia de P. Bertichem, “Águas Férreas, Rio de Janeiro”, elegantes senhoras acompanhadas de um cavalheiro, estão paradas em frente a uma fonte, enquanto um sofisticado coche as aguarda. Debaixo de uma árvore frondosa, outro senhor aproveita-se da sombra. Na outra rua paralela, três crianças caminham em sentido contrário à fonte. A paisagem retrata a esquina formada pelas ladeiras do Pindura-Saia e Rua Indiana, onde existia uma fonte de água mineral ferruginosa, que deu origem ao nome pelo qual o local era chamado, Águas Férreas. No século XIX, visitar este ponto das Laranjeiras era um dos passeios prediletos dos habitantes da capital do Império.
Na litografia “Colégio Episcopal de São Pedro de Alcântara”, P. Bertichem retrata a luxuosa residência rural anteriormente conhecida como Quinta do Bispo. Em 1702, Dom Frei Francisco de São Jerônimo, segundo bispo do Rio de Janeiro, conseguiu do reitor do Colégio da Companhia de Jesus um terreno na sua fazenda do Rio Comprido, onde mandou edificar uma casa de campo e uma chácara de recreio. A casa ficou conhecida como Quinta do Bispo, sendo a sua arquitetura atribuída ao engenheiro José Fernandes Alpoim. Quando P. Bertichem fez a litografia, ali funcionava o Colégio Episcopal de São Pedro de Alcântara. Mais tarde, passaria a funcionar no local o Seminário São José. Debret também registrou o prédio, na litografia “A Grande Casa de Campo”, classificando-a como ideal “para dar uma idéia da mais nobre construção de uma antiga residência rural”. O prédio foi tombado, em 1938, como patrimônio histórico.
Na terceira litografia, temos “A Nova Alfândega do Rio de Janeiro”. Com edifícios novos e espaçosos, a então nova alfândega da capital do Império teve os seus armazéns erguidos na antiga praia dos Mineiros, tendo ao fundo o mar, abrindo-se para a atual rua Visconde de Itaboraí. A alfândega apresentava armazéns com condições de atender às crescentes necessidades econômicas do Império, que se sustentava através do trabalho escravo e da exportação do café.
Com o avanço das obras que mudaram por completo a paisagem urbanística do Rio de Janeiro, os prédios da então nova alfândega aqui retratados, foram demolidos, dando passagem à avenida Perimetral.
Para encerrar esta viagem pitoresca ao Rio de Janeiro do século XIX, vamos nos distanciar um pouco da cidade maravilhosa, desembarcando na vizinha Petrópolis, através do olhar generoso do holandês P. Bertichem, na litografia “Palacete Imperial de Petrópolis”. Este belo palácio foi construído entre 1845 e 1857, servindo como residência de verão da família imperial. A partir de 1940, o palácio foi transformado no Museu Imperial, trazendo em seu acervo ricas coleções de carruagens, armas e outros objetos que pertenceram à nobreza do Brasil Império.


SPARTACUS – STANLEY KUBRICK

maio 18, 2010

  Um dos maiores clássicos do cinema épico, “Spartacus”, de Stanley Kubrick, é talvez, o filme que traz diálogos e estruturas mais elaboradas, sem fugir do maniqueísmo imposto pelo gênero, mas não se atendo a ele de forma indelével. Feito na seqüência de “Ben-Hur”, trazia a responsabilidade de repetir o sucesso do seu antecessor, sendo o primeiro filme épico a se distanciar do cristianismo primitivo, com a sua trama datada em 71 a.C.
Adaptação do livro homônimo de Howard Fast, o filme conta a saga de Espártaco, ou Spartacus em latim, escravo e gladiador de origem trácia, que liderou a maior revolta de escravos do Império Romano, conhecida como “Terceira Guerra Servil”. Reconstrói com perfeição os movimentos em campo de batalha das legiões romanas, em cenas memoráveis, como a derrota dos escravos pelos romanos.
Kirk Douglas, produtor executivo do filme, toma para si a pele do herói imaculado, com personalidade vincada na crueza dos gladiadores, no sangue vertido nas arenas, ou na lamina da espada, que corta em lâmina a opressão em nome da liberdade.
Spartacus” é o filme que menos traduz o estilo de Stanley Kubrick, mas não se deixa de assinalar a sua genialidade. Quando lançado nos Estados Unidos, em 1960, em plena guerra fria, foi acusado de comunista, visto que os escravos representavam o proletariado moderno, e os nobres romanos os opressores capitalistas. Visão simplista e ambígua, “Spartacus” é um épico em sua mais pura confecção, feito nos moldes da emoção do melodrama, para levar as platéias às lágrimas, e fazer com que ela saia de lá na certeza que viu um grande espetáculo. Cinco décadas após a sua estréia, permanece intacto em sua beleza visual, sem a tecnologia de “Gladiador”, de Ridley Scott, mas com uma consistência grandiosa superior, mantida por um roteiro coeso, com histórias paralelas vividas magistralmente por um elenco luxuoso. Inesquecível a beleza bíblica de Jean Simmons como a escrava Varinia ou a crueldade humanizada de Crassus, refletida numa interpretação impar de Laurence Olivier.
Spartacus” teve uma versão mais recente, em 2004, sem a grandiosidade épica do filme de Stanley Kubrick. Vários foram os filmes sobre gladiadores, mas nenhum o superou. Drama, história, grandes batalhas, elenco apurado, personagens carismáticas, sensível beleza estética, direção primorosa, fazem de “Spartacus” uma excelente redescoberta, mesmo diante do teor do melodrama, não deixa de fascinar o mais exigente do espectador, fazendo acreditar na verdadeira magia do cinema como entretenimento universal e atemporal.

Bastidores da Preparação do Filme

Reza a lenda que Kirk Douglas fez grande campanha para ganhar o papel título do épico “Ben-Hur”, sendo preterido por Charlton Heston. Diante da frustração, comprou os direitos autorais do romance histórico de Howard Fast, “Spartacus”, e decidiu ele próprio produzir e interpretar o seu épico.
Inspirado em uma personagem real, Espártaco (120 a.C. – 70 a.C.), escravo e gladiador que foi responsável por uma das maiores revoltas contra a classe dominante da Roma antiga, o livro de Howard Fast não é uma biografia, acrescentando personagens fictícias aos fatos históricos. O mesmo acontecendo ao filme, que segue em seu roteiro a adaptação cabal do romance. Mesmo feito para grandes platéias, o roteiro não se priva de trazer um texto inteligente e bem acabado, escrito por Dalton Trumbo. É importante que se assinale este momento, pois marca a volta de Dalton Trumbo como roteirista, após uma perseguição de quase uma década pelo Macartismo, movimento anticomunista que incluiu numa lista negra o nome de vários atores, roteiristas e diretores de Hollywood, tidos como suspeitos, impedidos de trabalhar na indústria do cinema. A volta de Dalton Trumbo encerrava este triste período, chancelando a mensagem do filme, um claro grito contra a opressão do poder e à escravização do homem e dos seus sonhos de liberdade.
Na pré-produção do filme, os estúdios da Universal temiam o investimento, pois seria o primeiro no gênero das grandes produções épicas a não trazer histórias ligadas ao cristianismo primitivo, tema que tanto fascinava as platéias. Os escravos retratados não trazem a conversão religiosa como símbolo de luta, mas a contundente luta do homem pela liberdade, pelo fim do domínio de classes, pela convicção que se pode derrubar os grilhões através do grito da rebeldia.
Anthony Mann foi o escolhido para a direção do filme. Chegou a iniciar as filmagens, mas desentendimentos com os produtores fizeram com que se afastasse, gerando um sentimento de frustração no elenco. Para substitui-lo, Kirk Douglas contratou um jovem diretor, quase que principiante na época, Stanley Kubrick.
Nos relatos de bastidores, a experiência de Kubrick ao dirigir “Spartacus” teria sido traumática, visto que não pôde imprimir muito do seu estilo, pois Kirk Douglas, o produtor executivo do filme e a quem cabia a última palavra, não o permitia. Talvez isto explique o maniqueísmo latente que pouco se encontra na filmografia do diretor. “Spartacus” não é considerado como obra-prima de Kubrick, mas não deixa de ter a grandiosidade da sua genialidade, e serve como consolidação de carreira, demonstrando a versatilidade que ele tinha em transformar temas dos mais diversos numa produção de qualidade. O filme marcaria o rompimento do diretor com os grandes estúdios, fazendo-o optar por produções independentes.
Kubrick teve vários dissabores durante as filmagens, desde não poder mexer no roteiro de Dalton Trumbo, a discussões constantes com o fotógrafo Russell Metty, que não gostava quando o diretor interferia no posicionamento da câmera e na iluminação. Kubrick impôs o seu estilo, fazendo com que o filme recebesse o Oscar de melhor fotografia no ano seguinte. Também a sua amizade com Kirk Douglas ficou bastante arranhada. Mesmo diante das adversidades, o diretor apresentou um filme de magnífica qualidade, fazendo-o o maior dentro da temática dos gladiadores, insuperável cinco décadas depois de ser realizado.

No Sofrimento do Gladiador Surge o Rebelde

O filme narra a evolução do caráter e dos princípios rebeldes de Spartacus (Kirk Douglas), um escravo de origem trácia, que se apresenta como um homem que sobrevive à sua condição cativa, usando da força natural que traz no corpo. No início da sua saga, serve como escravo em uma mina de sal na Líbia, província romana do norte da África. Na sua rebeldia intuitiva pela sobrevivência, defende-se de uma humilhação sofrida, mordendo ferozmente um guarda, sendo por este motivo condenado à morte.
O destino de Spartacus é mudado quando o ianista Lentulus Batiatus (Peter Ustinov) o vê. Grande negociador e treinador de gladiadores, Batiatus enxerga em Spartacus a força bruta própria de um grande lutador das arenas do império romano. O escravo é comprado por Batiatus, livrando-se da pena capital. É levado para a escola de gladiadores em Cápua, onde será treinado para os combates.
Entre os combatentes treinados são estabelecidos princípios de respeito e admiração mútua. Princípios que se tornam frágeis diante da condição de cativos, que são ameaçados pelo perigo iminente do sangue vertido nas arenas.
A rispidez dos combates, a violência sanguinária que os conduz, é abrandada pelo surgimento da bela Varinia (Jean Simmons), escrava que conquista o coração de Spartacus. Jean Simmons consegue dar o tom sofrido à personagem, fazendo da sua beleza bíblica o ponto de encontro com o carisma da alma. Ingrediente essencial para gerar a humanização romântica do filme, o amor entre os dois será o fio que conduzirá os mais ínfimos atos da trajetória de ambos. Varinia virá a ser a esposa do gladiador. A personagem foi introduzida por Howard Fast, sem a comprovação de que tenha existido como é apresentada aqui.
Roma era na época de Spartacus o centro do mundo. Mantinha o seu poderio por todos os reinos da antiguidade através da sua verve guerreira, das grandes legiões de soldados e da desenvolvida estratégia de guerra. Sendo um povo belicoso, não se pode estranhar que a luta de gladiadores fosse o principal espetáculo que fascinava tanto os nobres quanto à plebe. Com o passar do tempo, os espetáculos foram ficando cada vez mais sofisticados e sanguinários. Os mais aplaudidos eram aqueles que os gladiadores combatiam até a morte, arrancando aplausos da platéia e dando fama ao vencedor.
Será no contexto das regras do espetáculo sanguinário que Spartacus terá a sua consciência ideológica despertada. O fato acontece quando a escola de Cápua é visitada por dois imponentes patrícios vindos de Roma, o presidente do senado Sempronius Gracchus (Charles Laughton) e, o general Marcus Licinius Crassus (Laurence Olivier), acompanhados por suas esposa e noiva, respectivamente. As duas mulheres pedem para que lhes seja oferecido um espetáculo de gladiador. Mas não querem uma luta comum, exigem um combate mortal, em que só o mais forte irá sobreviver. Curiosamente, a mulher, lado frágil e sensível dentro das tramas, é quem maldosamente exige o sangue e a morte como apoteose do espetáculo que desejam fervorosamente assistir.
Spartacus é o gladiador escolhido para o combate. Terá que lutar contra o negro Draba (Woody Strode). A superioridade física de Draba é visivelmente gritante diante de Spartacus. Estabelecido o combate, Draba vence. Mas contrariando os que se lhe aplaudem e pedem o sangue do vencido, o negro mostra que a sua ética é maior do que a sua força colossal. Draba recusa-se a matar Spartacus. Como resposta aos que se lhe gritam para que derrame o sangue do vencido, o gladiador atira o seu tridente contra a tribuna onde se encontravam os romanos. O seu gesto de rebeldia e ética incontestável custa-lhe a vida. Draba é morto por desobedecer aos caprichos do público.
Sobrevivente da compaixão de Draba, Spartacus é atingido por um grande sentimento de revolta. Sabia bem que se fosse o contrário, não teria poupado a vida de Draba. O gesto do gladiador negro provoca uma convulsão nos princípios de Spartacus, que até então eram regidos pela necessidade de sobreviver. A partir de então, passa a existir pelo princípio de querer ser livre, nem que para isto tenha que desafiar todo o império romano, reescrever as leis e fazer de cada escravo um homem liberto. Não será a sede pelo poder que conduzirá a luta de Spartacus, mas a vontade de ser livre.
Após a morte de Draba, nada será igual para Spartacus e para Crassus. A partir daquele momento, os seus destinos estão interligados. O primeiro rebela-se, liderando uma revolta de escravos, tornando-se comandante de um grande exército de homens cativos, enquanto que o segundo sonha em ascender ao poder absoluto dentro da poderosa Roma, para isto liderará a legião de soldados romanos, que assim como em uma feroz arena, combaterão até que se tenha apenas um lado vencedor.

O Núcleo dos Patrícios Romanos

Iniciada a revolta, Spartacus refugia-se no monte Vesúvio, construindo ali uma cidadela que abriga gladiadores e escravos fugitivos. Durante três anos, o exército de escravos cresce. A rebelião incita a todos os cativos do grande império, que fogem dos seus amos, agregando-se aos combatentes. Sob o comando de Spartacus, os rebeldes derrotam dois exércitos de Roma, conquistando todo o sul da península Itálica. Sucessivamente, derrota outras três milícias romanas.
Paralelamente, o filme apresenta o núcleo dos patrícios romanos. Neste ponto, o maniqueísmo do filme é totalmente dissipado. Enquanto os escravos são mostrados como íntegros, alegres e distantes da falta de princípios morais, os patrícios são dissecados em toda a sua verve humana. Não se portam como simples vilões antagonistas, mas como homens na essência da luta para que não se lhe roubem o poder, sem apegos ao moralismo inexistente que se estabeleceria somente após a propagação da moral judaico-cristã, um século depois. Talvez a falha do filme seja esta, a moralidade judaico-cristã respingando sobre o núcleo de escravos antes mesmo da sua existência. No núcleo dos patrícios não ocorre a falha, o que faz o grande equilíbrio do filme.
Enquanto Spartacus lidera o seu exército de escravos, gerando grandes batalhas, vamos acompanhando os bastidores do poder romano, através do embate pelo poder entre Gracchus e Crassus. Gracchus, uma excepcional atuação do memorável Charles Laughton, procura uma solução para a rebeldia, sem que se traga transtorno e ameace o seu poder de senador do maior império do mundo. Crassus ao contrário, vê na rebelião o grande momento da sua ascensão política, derrotá-la era obter um passaporte para o poder ilimitado. No jogo pelo poder entre Gracchus e Crassus, excelentes diálogos são travados. Para desacreditar o general Crassus, Gracchus indica Marcus Glabrus (John Dall), protegido e pupilo do seu opositor, como comandante da guarda romana, enviando-o contra o exército de Spartacus, sabendo que ele não tem condições para garantir uma vitória e, como era previsto, volta derrotado. A humilhação de Glabrus é também a de Crassus. Gracchus não protegeu Spartacus, mas a si mesmo, ao seu poderio.
Crassus é a personagem que mais se explora toda a uma vertente humana. Laurence Olivier entrega-se sem medo às complexidades do instigante general romano. Traz uma interpretação de fôlego, calcada por uma frieza ligeira, que se não lhe consegue apagar uma explosão dramática persistente, quase a flor da pele, e, uma sensualidade homoerótica latente. Crassus é tomado por uma obsessão sem limite para derrotar Spartacus. É a sua oportunidade de ascender politicamente, tornando-se um líder absoluto de Roma. Sua obsessão inclui Varinia, a mulher de Spartacus. Não percebe, ou não quer ver, como uma mulher pode desprezar um homem de grande prestigio e poder como ele. O que não enxerga é que Spartacus atingiu o mesmo poder, tornando-se um rebelde lendário. Também a sua sexualidade é dúbia. Sutilmente aceita os sentimentos e desejos do afetado Glabrus, tornando-o seu pupilo. O equilíbrio é quebrado quando Glabrus é derrotado por Spartacus, e Crassus já não vê fascínio no protegido, enxergando-lhe apenas a afetação, que se lhe trará grande repulsa por Glabrus. Também o culto e sensível Antoninus (Tony Curtis), a quem torna seu escravo particular, exerce uma irresistível atração sobre ele. Mas também Antoninus é perdido para Spartacus. O escravo foge para se juntar ao exército rebelde. Stanley Kubrick dirigiu uma insinuante cena de banho entre Crassus e Antoninus, criando uma acirrada polêmica na época. A ousadia sofreria a mão da censura, que cortou a cena. Em 1991 o filme teve uma versão restaurada lançada, tendo treze minutos a mais do que o original. A cena de Crassus e Antoninus na banheira pôde finalmente ser vista. O ator Anthony Hopkins dublou a voz de Laurence Olivier na cena, uma vez que este tinha falecido em 1989.
Antoninus, sensível interpretação do ator Tony Curtis, em uma participação especial, é responsável por um dos grandes momentos de lirismo do filme, quando recita um poema, aludindo ao retorno para casa, dando a visão de um desejo de liberdade que condição cativa alguma pode destruir dentro do ser humano.

A Batalha Final

O ápice do filme converge para a batalha final entre o exército romano e a rebelião liderada por Spartacus. Após sucessivas derrotas, o senado romano percebe a gravidade do alastramento da rebelião de escravos, mandando-lhe ao encalce todo o seu poderio militar. Chega o fatídico dia, quando Spartacus é cercado na região de Reggio di Calábria, pelas tropas comandadas por Crassus. Antes da batalha propriamente dita, há momentos épicos únicos, com vários minutos mostrando a movimentação das tropas, conduzindo a uma frenética atmosfera de tensão absoluta. Mais de 8.500 figurantes foram utilizados nas tomadas das cenas da batalha final. Um dos momentos mais marcantes do filme é quando, sob intensa tensão, ouve-se o som da multidão a gritar:
Spartacus, Spartacus”.
A batalha final é um marco na história do cinema mundial, com cenas de grande realismo, que cinco décadas depois, ainda deixam o espectador sem fôlego. Acossados, os rebeldes põem-se em fuga. Spartacus é perseguido por Crassus, tendo o seu exército finalmente derrotado na Lucania.
O final do filme foge ao que se sucedeu de fato a Spartacus, que após ser derrotado, teria sido retalhado. No filme o herói rebelde é crucificado, dando uma conotação cristã a uma história que veio antes da existência de Jesus Cristo. A morte de Spartacus não é instantânea, é lenta, sem glória, humilhado e pendurado em uma cruz. O encontro final entre ele e Varinia atinge todos os níveis do melodrama, fazendo com que a platéia se banhe em lágrimas. Diante do marido crucificado, ela faz o seu último pedido:
Por favor, meu amor, morra logo.
As palavras de Varinia ecoam pela beleza cênica e trágica do filme. Ao pé da cruz, ela abraça-se às pernas do marido, antes de uma sofrida despedida final. Jean Simmons tem um dos mais belos momentos da sua carreira, traduzindo a dor da mulher diante de uma cruz, numa espécie de antecessora de Maria.
Spartacus definha-se na cruz. Desde a primeira cena que o escravo estava destinado para ser morto. Primeiro ao ser condenado sem grande razão, por morder um soldado romano. Outra vez pelo tridente do negro gladiador que o derrotou na arena. Finalmente, por todos os motivos do mundo, por desafiar a hierarquia do maior império da antiguidade, e conclamar um grito de liberdade que só seria possível mediante o fim da própria concepção que sustentava o império. Spartacus olha de cima de uma cruz o fim dos seus sonhos. Morrer lentamente é o pior castigo para os que atingiram a glória heróica. Só a morte poderá perpetuar o mito de Spartacus e apagar-lhe a humilhação final. Assim como um homem oriundo de uma pequena cidade na Palestina, que nasceria 70 anos depois, Spartacus dá o último suspiro na cruz. Um épico daquela época não poderia deixar de fazer esta conexão com o cristianismo, mesmo que ela seja historicamente falsa. Encerrava-se assim, um dos maiores épicos de Hollywood, que mesmo depois de cinqüenta anos da sua produção, continua a ser classificado como um dos cem melhores filmes de todos os tempos.
Spartacus” ganhou o Globo de Ouro como melhor filme, além de ser indicado para as categorias de melhor direção (Stanley Kubrick), melhor trilha sonora original, melhor ator (Laurence Olivier) e melhor ator coadjuvante (Peter Ustinov). Apesar de não ser indicado para o Oscar de melhor filme e de melhor direção, teve seis indicações, levando quatro estatuetas, a de melhor ator coadjuvante para Peter Ustinov, de melhor direção de arte, de melhor figurino e o de melhor fotografia. Recebeu ainda a indicação de melhor filme da Academia Britânica de Cinema e Telvisão, no Reino Unido.

Ficha Técnica:

Spartacus

Direção: Stanley Kubrick
Ano: 1960
País: Estados Unidos
Gênero: Épico/ Drama Histórico/ Aventura
Duração: 183 minutos / Cor
Título Original: Spartacus
Roteiro: Dalton Trumbo, baseado no livro de Howard Fast
Produção: Edward Lewis
Produção Executiva: Kirk Douglas
Música Original: Alex North
Direção de Fotografia: Russell Metty
Direção de Arte: Eric Orbom
Produção de Design: Alexander Golitzen
Decoração de Set: Russel A. Gausman e Julia Heron
Figurino: Bill Thomas e Valles
Maquiagem: Bud Westmore e Larry Germain
Edição: Robert Lawrence
Efeitos Visuais: Peter Ellenshaw e Ditta Peruzzi
Som: Joe Lapis, Ronald Pierce, Murray Spivack e Waldon O. Watson
Estúdio: Universal Pictures / Bryna Productions
Distribuição: Universal Internacional
Elenco: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Jean Simmons, Charles Laughton, Peter Ustinov, Tony Curtis, John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, Charles McGraw, John Hoyt, Woody Strode, Frederick Worlock, John Dall, Joanna Barnes, Harold Stone, Peter Brocco, Paul Lambert, Nick Dennis, Jim Sears, Tom Steele
Sinopse: Spartacus (Kirk Douglas), é um escravo que ao servir em uma mina na Líbia, é condenado a morte por morder um soldado. Visto por um negociador e treinador de gladiadores, tem o seu destino mudado quando este se interessa por ele, comprando-o, levando-o em seguida para ser treinado em uma escola de gladiadores. Numa visita de poderosos patrícios romanos à escola, é escolhido para entretê-los em um combate mortal com um negro. Ao derrotar Spartacus, o negro recusa-se a matá-lo, atirando o seu tridente contra a tribuna. O negro é punido com a morte pelo seu ato, gerando a revolta de Spartacus. O gladiador vencido lidera uma rebelião de escravos, formando um grande exército de cativos rebeldes. Ignorando a força dos revoltados, legiões romanas são enviadas para conter a rebelião, sendo por eles derrotados. Diante da gravidade, o senado de Roma envia uma poderosa legião para pôr fim à insurreição dos escravos.

Stanley Kubrick

Considerado um dos maiores cineastas de todos os tempos, Stanley Kubrick nasceu em Nova York, Estados Unidos, em 26 de julho de 1928. Aluno pouco brilhante, passou a infância no conhecido bairro do Bronx. Logo cedo desenvolveu grande aptidão pela fotografia, recebendo do pai a sua primeira máquina fotográfica. Ainda adolescente, empregou-se como fotógrafo na conceituada revista “Look”. O futuro cineasta atingiu a visão de um grande fotógrafo, o que lhe deu uma perspectiva estética de beleza impar, sintetizada em sua obra cinematográfica.
Aos vinte e dois anos Kubrick já fazia filmes de curta-metragem. Em 1953, com a ajuda financeira do pai, empenhou a casa e produziu o seu primeiro longa-metragem, “Fear and Desire”, filme que foi exibido poucas vezes, mesmo depois da fama do cineasta. A sua carreira só começou a ser vista a partir do filme “O Grande Golpe” (The Killing), em 1956. No ano seguinte, com a ajuda do ator Kirk Douglas, fez o filme “Horizontes de Glória” (Paths of Glory). A presença de um astro como Kirk Douglas foi fundamental para que o filme tivesse boa repercussão, mas a polêmica gerada em torno da produção, fez com que fosse proibido em alguns países, entre os quais a França.
A experiência com Stanley Kubrick, levou Kirk Douglas a convidá-lo para substituir Anthony Mann, em 1960, na direção do épico “Spartacus”. O filme gerou um desgaste na amizade com Kirk Douglas, produtor executivo, trazendo um rompimento informal na amizade dos dois. “Spartacus”, considerado um dos maiores épicos de todos os tempos, consolidou a carreira de Stanley Kubrick, que viria a ser uma das mais singulares do cinema norte-americano e mundial.
Diante das limitações que teve em participar da concepção final de “Spartacus”, Kubrick decidiu não voltar a trabalhar para um grande estúdio, só aceitando dirigir projetos que pudesse ter liberdade criativa. A partir de então, o cineasta construiu uma galeria de grandes obras do cinema, como “Lolita”, em 1962. Em 1968, os cinemas assistiriam à estréia de “2001: Uma Odisséia no Espaço(2001: A Space Odyssey), inspirado no livro homônimo de Arthur C. Clarke, considerado por muitos o maior filme de ficção científica. O filme trazia efeitos especiais inovadores para a época, garantindo o Oscar na categoria.
Em 1971, viria o mais complexo filme de Kubrick, “Laranja Mecânica” (A Clockwork Orange), inspirado no livro homônimo de Anthony Burgess. Nunca a violência da juventude foi tão alegoricamente retratada como aqui.
Em 1999 Kubrick realizaria o seu último filme, “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut), tendo como protagonistas o então mais poderoso casal de Hollywood, Tom Cruise e Nicole Kidman. Um ataque cardíaco enquanto dormia, em 7 de março de 1999, mataria o cineasta, que não viu a estréia da sua última produção, sendo poupado da frieza com que o filme foi recepcionado tanto pela crítica quanto pelo público.

Filmografia de Stanley Kubrick:

Longa-Metragem

1953 – Fear And Desire
1955 – Killer’s Kiss (A Morte Passou Perto)
1956 – The Killing (O Grande Golpe)
1957 – Paths of Glory (Glória Feita de Sangue)
1960 – Spartacus (Spartacus)
1962 – Lolita (Lolita)
1964 – Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying And Love the Bomb (Dr. Fantástico)
1968 – 2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisséia no Espaço)
1971 – A Clockwork Orange (A Laranja Mecânica)
1975 – Barry Lyndon (Barry Lyndon)
1980 – The Shining (O Iluminado)
1987 – Full Metal Jacket (Nascido Para Matar)
1999 – Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados)

Curta-Metragem

1951 – Flying Padre: An RKO-Pathe Screenliner
1951 – Day of the Fight
1953 – The Seafarers


QUANDO O SOM CHEGOU AO CINEMA

abril 20, 2010

Desde que surgiu, em 1895, o cinema conquistou as platéias do mundo inteiro. Sua evolução técnica foi lenta, mas o sucesso foi imediato. Por cerca de trinta anos, o cinema mudo reinou absoluto, criando sofisticadas produções e gerando astros e estrelas, amados e idolatrados por todo o planeta.
No dia 6 de outubro de 1927, o mundo do cinema sofreu um terremoto, fazendo com que nascesse uma nova linguagem, a do cinema sonoro. Naquele dia estreava em Nova York “O Cantor de Jazz” (The Jazz Singer), pioneiro no filme com som sincronizado.
Com ampla publicidade, a Warner Bros anunciava o primeiro filme falado da história. Um grande número de pessoas lotou o cinema, trazendo uma enorme expectativa diante da novidade anunciada. Na tela surgia, em gigante, o rosto do ator lituano Al Jolson, pintado de negro, a extasiar a platéia com o som da sua voz a cantar. O cinema nunca mais seria o mesmo.
O filme não era totalmente falado, trazendo cenas ainda mudas, mas a voz de Al Jolson, assim como a banda que o acompanhava, ouvia-se perfeitamente. Trazia uma história mediana, tão linear que quase se apagou da memória das pessoas. O que permaneceu para sempre no imaginário, foi o rosto pintado de negro de Al Jolson, e a sua voz a ecoar pelas salas, a encantar as platéias do mundo inteiro.
O Cantor de Jazz” foi o maior sucesso daquele ano, salvando a Warner Bros da falência, inaugurando um novo tipo de cinema, o sonoro. Ganhou um Oscar especial, o primeiro da história, só não arrebatando o de melhor filme porque os produtores dos outros estúdios acharam que a concorrência era desleal. Apesar da precariedade técnica do som, o filme impôs de vez a passagem do cinema mudo para o falado. Mesmo com a resistência de grandes cineastas, como Charles Chaplin e Serguei Eisenstein, quase três anos depois, em 1930, 99% dos filmes eram falados.
A nova estética do cinema trouxe grande fôlego aos estúdios, mantendo-os longe da grande crise econômica gerada pela queda da bolsa de Nova York, em 1929, levando o mundo à recessão. Na contramão da evolução do cinema sonoro, grandes carreiras foram dizimadas pela chegada do som. Astros e estrelas apagaram-se, condenados ao ostracismo por não possuírem voz adequada, como a de Al Jolson, a cantar sublimemente, mostrando ao mundo a chegada definitiva do som à sétima arte.

Os Primeiros Testes do Som no Cinema

Cronologicamente, o som chegou ao cinema muito antes da estréia de “O Cantor de Jazz”, em 1927. Já era um anseio tão logo os irmãos Louis e Auguste Lumière, consolidaram-se como os pais da sétima arte, em 1895. Em 28 de setembro daquele ano, os irmãos Lumière realizaram a primeira projeção pública, no cinema Eden, em La Ciotat, no sudeste da França. A data oficial da primeira exibição de cinema no mundo, é tida, entretanto, como 28 de dezembro de 1895, quando foi projetada “La Sortie de L’Usine Lumière à Lyon” (A Saída da Fábrica Lumière em Lyon), no Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris. Estava concretizado o invento do cinematógrafo, e, iniciada a bem-sucedida saga do cinema.
Os trabalhos de Thomas Edison são tidos por alguns historiadores como a origem do cinema. O seu quinetoscópio, que inspirou os irmãos Lumière, conseguia projetar som e imagem simultaneamente. O aparelho consistia em dois elementos: o quinetografo, que tratava a imagem, e o quinetofonógrafo, que trabalhava o som. Por apresentar diversos defeitos, Thomas Edison apostou em um aparelho mais simples, o quinetofone, que conjugava imagem e música simultâneas. O projeto seria abandonado, em 1913, por não conseguir um sincronismo contínuo.
Na Europa, no fim do século XIX, som e imagem sempre estiveram juntas em experiências concretas. Em 1891, quatro anos antes da exibição dos irmãos Lumière, o francês Marey registrou a patente do fonoscópio. Em 1896, a empresa Pathé lançou o gramofone Berliner, aparelho que sincronizava a imagem de um projetor com o som de um disco. Em 1899, Auguste Baron, apresentou em Paris o seu filme sonoro, obtendo sucesso junto à elite da cidade.
Já no início do século XX, em 1901, o alemão Ernst Ruhmer trazia a público a criação de um aparelho que conseguia reproduzir som em película, chamado de fotografofone. Em 1904, Eugen Laustre conseguia a mesma proeza de Ruhmer, mostrando que a imagem e o som eram perfeitamente conciliáveis. Em 1907, Lee deForest desenvolveu, com sucesso, o trabalho de Laustre através da aplicação do tríodo, uma válvula que tinha a função de amplificar os sinais eletrônicos.
Ainda em 1907, os irmãos Lumière já haviam conseguido um som mais perfeito do que os modelos Vitaphone e Movietone iriam apresentar no fim da década de 1920.
Incorporar o som ao filme era possível desde a sua origem, o sucesso do trabalho de Lee deForest não foi aproveitado pela indústria cinematográfica, visto que o cinema mudo era sucesso absoluto, e os altos custos que envolviam a sua sonorização, adiaram o mecanismo por cerca de trinta anos.

O Mítico Cinema Mudo

Enquanto não se conseguia sincronia perfeita do som e da imagem, o cinema mudo tornou-se sucesso no mundo inteiro, transformando-se em uma grande e poderosa indústria.
O filme mudo era praticamente silencioso, sendo exibido em salas que muitas vezes contratavam músicos para tocarem durante a sua exibição. Algumas vezes apresentavam efeitos especiais, com narração e diálogos escritos entre as cenas. Com o tempo, passaram a adquirir uma estética sofisticada, com nuances próprias dos atores do gênero, fotografias primorosas, numa linguagem que se tornou popular, e, com o tempo, conquistou as classes elitistas.
Nos primeiros tempos do filme mudo, a Itália e a França tornaram-se os maiores produtores de cinema do mundo. Em 1914, a Itália produziu um dos primeiros filmes de longa duração, “Cabiria”, com 123 minutos de duração. Com o desencadear da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos passariam a liderar o mercado, surgindo, nos subúrbios de Los Angeles, a poderosa indústria cinematográfica de Hollywood. “O Nascimento de Uma Nação” (The Birth of a Nation), de D. W. Griffith, feito em 1915, é considerado um dos filmes mais populares americanos da época do filme mudo, e pioneiro das grandes produções naquele país.
Grandes produções demarcaram o sucesso do cinema mudo. Atores e atrizes atingiam o estrelato de forma vertiginosa. Entre eles Greta Garbo, John Gilbert, Mary Pickford, Charles Chaplin, Buster Keaton, Douglas Fairbanks, Rudolph Valentino, Gloria Swanson e Lillian Gish.
Grandes cineastas surgiram com o cinema mudo, destacando-se Henry King, Cecil B. DeMille, King Vidor, Ernst Lubitsch, Rex Ingram, Frank Borzage, King Vidor, Erich Von Stroheim, Serguei Eisenstein, Raoul Walsh, Maurice Tourneur e Joseph Von Sternberg.
Produções definitivas foram feitas na época do cinema mudo, como “Metrópolis” (Metropolis), em 1927, de Fritz Lang, considerado um dos grandes expoentes do expressionismo alemão. O mítico “O Couraçado Potemkin” (Bronenosets Potiomkin), em 1925, de Serguei Eisenstein, considerado um dos maiores filmes de todos os tempos. “Nosferatu” (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens), em 1922, de F. W. Murnau. “O Garoto” (The Kid), em 1921, de Charles Chaplin. “Sangue e Areia” (Blood and Sand), em 1922 e “O Sheik” (The Sheik), em 1921, que consagraram o mito de Rudolph Valentino como maior astro do cinema mudo. Ou ainda, “O Demônio e a Carne” (Flesh and the Devil), 1926, de Clarence Brown, imortalizando um dos maiores pares românticos da época, Greta Garbo e John Gilbert. Os épicos “Os Dez Mandamentos” (The Ten Commandments), 1923 e “O Rei dos Reis” (King of Kings), 1927, de Cecil B. DeMille, que ganhariam versões no cinema sonoro.

Evolução das Técnicas de Som

A força que o cinema mudo tinha, a resistência de grandes cineastas à sonorização, tida como banalização da estética da sétima arte, fez com que não se investisse na técnica por várias décadas. Os europeus eram os principais críticos e opositores ao som. Mas as experimentações nunca deixaram de ser feitas, mesmo no auge do filme mudo.
Em 1914, Edward Wente criou um sistema de gravação de som por meio do uso de um espelho oscilográfico, atingindo uma sincronia perfeita. Diante da imposição do cinema mudo, o modelo de Wente foi abandonado em 1922, só vindo a ser recuperado em 1926 como base do Movietone, modelo que a Fox apresentaria como concorrente do Vitaphone.
O grande e definitivo avanço viria em 1918, quando os engenheiros alemães Joseph Engel, Hans Vogt e Joseph Massole inventaram o Tri-Ergon, que possibilitava a gravação do som no próprio filme. O sistema foi adquirido pela Fox, em 1926, que começou a usá-lo para adicionar trilhas sonoras em filmes mudos.
Em 1920, Theodore Case, engenheiro da General Electric, desenvolveu um registrador fotográfico para telégrafo através de sinais de rádio. O sistema foi acompanhado pela Fox, inspirando o Movietone, em 1928.
No final da década de 1920, o período de ouro da economia norte-americana começava a sucumbir. A crise não deixou de respingar na indústria cinematográfica. Alguns estúdios passaram a conviver com uma possível e inevitável falência. Entre os ameaçados, estava a Warner Bros.
O cinema mudo havia alcançado o auge da sua perfeição estética, mas se não oferecesse novos caminhos, seguiria o caminho da grande depressão econômica que estava por vir. Para fugir da falência, a Warner Bros decidiu investir no filme sonoro, técnica que durante décadas foi relegada ao segundo plano.
Em 1925, Sam Warner, presidente da Warner Bros, comprou o modelo Vitaphone, desenhado nas fábricas da General Eletric. O projeto passou a ser desenvolvido durante um ano, nos estúdios da Vitaphone Company, formada pelos subsídios da Warner Bros. Foi testado pela primeira vez no filme “Don Juan”, com John Barrymore, substituindo a orquestra de fundo por uma trilha sonora própria do filme. O Vitaphone foi usado em vários curtas-metragens, antes de ser, finalmente usado no mítico “O Cantor de Jazz”, em 1927.

O Cantor de Jazz

Numa cartada decisiva, para ser salva da falência, a Warner Bros anunciou com grande pompa e promoção, o primeiro filme totalmente falado da história do cinema, “O Cantor de Jazz”, com estréia em Nova York, em 6 de outubro de 1927.
Tecnicamente, o filme era quase que um híbrido, com cenas mudas e faladas. Trazia o básico para o desenvolvimento do cinema sonoro, abrindo uma nova etapa na sétima arte. Ouvir a voz do ator Al Jolson em seis canções empolgou, encantou e emocionou as platéias do mundo inteiro.
Vindo dos palcos da Broadway, “O Cantor de Jazz”, dirigido por Alan Crosland, contava a história de uma família judia, que tinha como tradição os cantores de cultos litúrgicos. Jakie Rabinowitz (Al Jolson) sonhava vir a ser um grande cantor de jazz, interrompendo a tradição de cinco gerações da sua família. A determinação do jovem em ser um cantor de jazz ofendia o pai conservador, culminando com a sua expulsão de casa. Longe da família, Jakie sobreviveria através da força da sua vocação e do grande talento que possuía. Quebraria os estigmas, sofrendo com as conseqüências de perseguir um sonho que se chocava com a tradição familiar.
Al Jolson, um ator de origem judaica, nascido na Lituânia, migrado com a família para os Estados Unidos, é quem carrega todo o filme. Inicialmente o papel foi oferecido a George Jessel, intérprete de Jakie Rabinowitz na Broadway, que pediu um ordenado muito alto. Eddie Cantor foi a segunda opção, mas Al Jolson foi a escolha definitiva. O rosto pintado de preto, como um minstrel, tornou-se mítico. A vitalidade do ator, os gestos enquanto cantava, comoveram o público. O ápice é alcançado, quando o ator chora com o rosto pintado de negro, numa sensibilidade e carisma que emociona e prende a platéia.
Anunciado como um filme totalmente falado, “O Cantor de Jazz” tem como base toda estrutura e estética do cinema mudo. Há apenas um diálogo entre as personagens no decorrer de todo o filme. Traz ainda, os tradicionais letreiros de diálogos. Seu diferencial está nas canções diretas da película. Seu sucesso é visceralmente sustentado pelo carisma de Al Jolson. Outro momento mítico é quando o ator vira para a tela, e com grande convicção expressiva, diz:
Acalmem-se, vocês não viram nada ainda”.
Nunca uma frase fora tão profética. A partir de então, o cinema jamais foi o mesmo. Estava encerrada a era do filme mudo.

Consolidação do Cinema Sonoro

A chegada do filme sonoro causou controvérsias no meio cinematográfico. Grandes cineastas rejeitaram a nova técnica. Na França, René Clair e Abel Gance foram os principais opositores do filme sonoro. Serguei Eisenstein e Dziga Vertov, da União Soviética, achavam que o som diminuía e vulgarizava a sétima arte. Serguei Eisenstein escreveu o “Manifesto do Som”, contra a implementação da técnica. Charles Chaplin, mesmo quando todos os filmes já eram sonoros, resistiu, dirigindo dois filmes mudos: “Luzes da Cidade” (City Lights), em 1931; e, “Tempos Modernos” (Modern Times), em 1936. Mesmo a resistir, “Luzes da Cidade” foi lançado com música sincronizada.
Com o sucesso de “O Cantor de Jazz”, os estúdios, que a princípio acreditavam no filme como um modismo passageiro, constataram que o gênero viera em definitivo. Sem os equipamentos adequados para a produção de filmes com som, a maioria dos estúdios assinou um protocolo para adquirir o Vitaphone. Somente a Fox e a RKO recorreram a outros métodos que já vinham desenvolvendo nos anos anteriores. A Fox lançou mão do Movietone e a RKO do RCA Photophone.
Os três anos que se seguiram à estréia de “O Cantor de Jazz”, foram confusos e definitivos para que se desenvolvesse o cinema sonoro. Em 1928, “Lights of New York” tornava-se o primeiro filme inteiramente sonoro, mostrando-se tecnicamente primitivo, gerando cenas beirando ao grotesco. Um só microfone era usado para gravar as vozes dos atores, gerando cenas estáticas. O problema seria solucionado por Rouben Mamoulian, em seu filme “Aplauso” (Aplause), em 1929, que usou dois microfones ligados a um mixer. Ainda em 1929, King Vidor utilizou a dublagem das cenas filmadas, em “Aleluia” (Hallellujah). A solução técnica viria com “Alvorada do Amor” (The Love Parade), de Ernst Lubitsch, musical de 1929. A técnica do filme sonoro estava consolidada. Em 1930, 99% das produções do cinema eram totalmente faladas.
O Beijo” (The Kiss), que estreou em 1929, trazendo Greta Garbo como protagonista, foi o último filme totalmente mudo. A implementação do som nas películas livrou não só a Warner Bros da falência, mas o próprio cinema, que resistiu à depressão econômica da década de 1930. Por outro lado, deixou desempregados os músicos de orquestras e pianistas que tocavam em projeções nas salas de cinema. Lançou no ostracismo grandes estrelas do filme mudo, que não se adaptaram à nova linguagem estética do cinema, ou simplesmente não tinham voz adequada ao mito, enquanto estrela do filme mudo. Entre os que foram legados ao esquecimento, podemos citar John Gilbert, Glória Swanson, Lillian Gish, Emil Jannings e Douglas Fairbanks. Era o preço pela chegada do som à sétima arte.


QUANTO MAIS QUENTE MELHOR

março 27, 2010

Considerada a melhor comédia do cinema de todos os tempos, “Quanto Mais Quente Melhor” (Some Like It Hot), é daqueles filmes que encanta pela genialidade das situações cômicas, por diálogos ambíguos e imprevisíveis, pela música e pelo carisma dos atores.
Visto através do tempo, cinco décadas depois da sua estréia nos cinemas, o filme parece ingênuo, em uma primeira leitura, mas no decorrer da agilidade das cenas, revela-se uma surpresa constante, que inspirou muitas outras comédias do cinema mundial. Sua originalidade abalou os costumes da época, fazendo com que entrasse para a categoria das grandes obras cinematográficas.
A ousadia de Billy Wilder transformou Tony Curtis em uma sofisticada mulher e Jack Lemmon em uma atrapalhada e divertida garota. Ambíguo, o filme é uma sátira mordaz aos tempos da Lei Seca, trazendo caixões que transportam bebidas alcoólicas clandestinas, criminosos que se reúnem em velórios e festas de hotéis, advogados corruptos; tudo regido por uma confusão compulsiva, marcada pelas circunstâncias e atos das personagens, fazendo-as envoltas nas teias da mentira, numa inteligente e inesperada trama.
Quanto Mais Quente Melhor” é considerado a obra-prima de Billy Wilder. Recebeu várias indicações para o Oscar, incluindo a de melhor diretor e ator (Jack Lemmon). Iniciou uma parceria feliz entre o diretor e Jack Lemmon, que por mais de duas décadas, resultaria em bons filmes e excelentes momentos do cinema. Registra momentos antológicos da sétima arte, como Marilyn Monroe cantando doce e sensualmente a canção “I Wanna Be Loved By You”, que se tornou um clássico do mito. Ou a cena final, em que Daphne (Jack Lemmon), revela para seu admirador, Osgood Fielding III (Joe E. Brown), ser um homem, e, para surpresa da platéia, não ver sinal de repúdio no milionário apaixonado.
Nada é o que parece no filme. As mulheres são homens, as de aparência comportadas trazem um vulcão e bebem languidamente em plena hipocrisia da era da Lei Seca. Os hóspedes são mafiosos. Os sentimentos são tecidos pelas mentiras que envolvem a verdadeira identidade das personagens. Situações imprevisíveis são desencadeadas e conduzidas com habilidade, em um roteiro inteligente e bem alinhavado, com cenas de desfechos hilariantes. O filme demarca a linha tenaz da habilidade de Billy Wilder em transitar por uma grande comédia ou um drama excepcional, como o mítico “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard), fazendo dele um dos mais geniais diretores de todos os tempos, e de “Quanto Mais Quente Melhor”, a maior das comédias.

A Fuga no Trem de Josephine e Daphne

Na efervescente Chicago de 1929, a Lei Seca, que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos, gera a subversão e a formação de grandes gângsteres. É neste cenário que nos é apresentado o saxofonista Joe (Tony Curtis) e o contrabaixo Jerry (Jack Lemmon), músicos e amigos, que passam dificuldades financeiras. Desempregados, eles conseguem um trabalho extra para tocar no baile de uma universidade na noite de São Valentin. Para chegar ao local, os dois conseguem um carro emprestado de um amigo. Na garagem onde está estacionado o automóvel, os dois presenciam um acerto de contas entre gângsteres da Máfia de Chicago.
No local errado, na hora errada, Joe e Jerry testemunham quando Spats Colombo (George Raft), chefe dos criminosos da delegação do sul, conhecido por suas polainas brancas, e os seus homens, executam os criminosos da delegação do norte, chefiados por Toothpick Charlie (George E. Stone). Ao perceber que o seu crime tinha testemunhas, Spats Colombo inicia uma frenética perseguição aos músicos. Está desencadeada a confusão da trama.
Acossados, Joe e Jerry decidem despistar os criminosos de uma maneira original: travestem-se de mulheres. Na fuga, juntam-se às alegres meninas da banda feminina de Sweet Sue (Joan Shawlee), que embarcam em um trem a caminho da Flórida. Na estação ferroviária, combinam os nomes, Joe seria Josephine e Jerry Geraldine.
É numa cena antológica na estação, que Marilyn Monroe é inserida na trama. Como Sugar Kane, ela caminha deslumbrante, femininamente provocante, seguida pelos olhares seduzidos de Jerry e Joe, quando é quase atingida nas ancas pelo vapor do trem. A atriz encontrava-se no auge da sua beleza, no esplendor balzaquiano que duraria mais três anos, até a sua morte trágica. Apesar de já ter feito um filme de sucesso de Billy Wilder, “O Pecado Mora ao Lado” (The Seven Year Itch), em 1955, a atriz não foi a primeira opção do diretor, que pensou em Mitzi Gaynor para o papel.
A confusão começa já na entrada do trem, quando Joe apresenta-se como Josephine, e Jerry, inesperadamente, como Daphne, fugindo ao combinado, que seria Geraldine. Tony Curtis empresta sofisticação e elegância a Josephine, enquanto que Jack Lemmon faz uma desajeitada e alegre Daphne, em uma interpretação divertida e hilária. Jack Lemmon foi daqueles atores que brilhou com desenvoltura tanto pela comédia quanto pelos dramas que interpretou. O papel foi pensado para que Frank Sinatra o interpretasse, mas caiu, para sorte e alegria das platéias do mundo, como uma luva na mão de um dos mais completos atores do cinema. O à vontade de Jack Lemmon é surpreendente. Valeu-lhe a indicação para o Oscar de melhor ator, além de arrebatar o Globo de Ouro na mesma categoria.
No trem, Josephine e Daphne travam amizades com as meninas da banda. A caminho de Miami, as comportadas meninas, quando todos dormem, tomam bebidas clandestinas, cantam e fazem uma grande festa. Maliciosamente, Daphne/Jerry divide a mesma cama com a sedutora e ingênua Sugar Kane. A bela loira fala da sua pouca sorte com os homens e da vontade de encontrar um milionário na Flórida, e tê-lo como marido. A viagem de trem continua alegre, sendo um dos melhores momentos do filme.

Assédios e Paixões Sutis

A chegada ao hotel, em Miami, parece tranqüila, e a fuga dos músicos bem sucedida. Na entrada, Josephine caminha com elegância, enquanto que Daphne tropeça no salto, sendo amparada pelo veterano Osgood Fielding III, milionário que se sente atraído por ela. Aproveitando-se da condição de mulher, Daphne/Jerry dá a sua mala para o embebido apaixonado carregar. No elevador, ao ouvir uma proposta indiscreta, uma indignada dama dá uma bofetada em Osgood, que se apaixona irremediavelmente por ela.
Como se não bastassem os problemas em se travestir como Josephine, Joe, fascinado pela beleza de Sugar, cria uma nova personagem: a do milionário Junior Shell, herdeiro de empresas petrolíferas. Assim, ele investe na conquista ao coração da ingênua Sugar. Um dos momentos mais deliciosos do filme é quando Sugar canta “I Wanna Be Loved By You”. Naquele momento, Josephine/Joe sente-se irremediavelmente encantado pela doçura sedutora de Sugar. Marilyn Monroe deslumbra a platéia, fazendo suspirar o mais rígido dos espectadores.
O jogo de sedução e de paixões improváveis prossegue.
Em paralelo, Osgood Fielding III assedia com veemência a alegre Daphne. Sugar e Daphne dividem em suas farsas, o título de Cinderelas, a primeira por pensar ter encontrado um jovem, belo e milionário amor; a segunda, por ter atraído um dos homens mais ricos do país. Se Sugar tem o seu amor frustrado pela falsa fortuna de Joe/Junior Shell, Daphne é a própria farsa de uma suposta mulher.
Frases ambíguas, de duplo sentido, permeiam a genialidade dos diálogos. Jerry, ao mesmo tempo em que foge do assédio de Osgood, deixa-se levar pelo fascínio de ser Daphne, e pela fantasia de ter um milionário aos seus pés. Uma das cenas mais hilariantes do filme é o tango que Daphne e Osgood dançam, com uma rosa entre os dentes, que sutilmente troca de bocas. Na parte final do tango, Daphne dobra o corpo de Osgood, tomando, inesperadamente, a posição de homem na dança. Jack Lemmon arranca aplausos naquele momento de puro delírio do riso.
Osgood Fielding III presenteia Daphne com flores e jóias. Joe/Junior Shell rouba os presentes ao amigo e os dá a Sugar. Joe mantém a farsa através do sucesso do assédio que tanto assusta Jerry. Deixando-se levar pela fantasia, Daphne/Jerry apresenta o anel de noivado a um espantado Joe. Com muito humor, realidade e fantasia mesclam-se, fazendo com que as personagens se distanciem cada vez mais do seu eu verdadeiro, abraçando uma vida dentro de outra vida. Todos enganam a todos. Sugar, por ver no amor de Junior Shell os cifrões do sonho da Cinderela; Joe, por se fazer “amiga” e confidente da jovem, ao vestir-se de Josephine, e de milionário apaixonado ao se passar por Junior Shell; Jerry, que apesar de fugir aos assédios de um milionário, deixa-se levar pelo deslumbramento dos presentes e das jóias, que não recusa; Spats Colombo, que ao eliminar rivais, transita como mafioso honrado e cidadão respeitável; e, Osgood Fielding III, que insiste em ver em Daphne a perfeição da mulher fatal, longe da sua real condição de homem.

“Ninguém é Perfeito”

A farsa de enganos caminharia perfeita, não fosse uma fatalidade do destino: no mesmo hotel em que se hospedam os músicos, em Miami, ocorrerá a “10ª Convenção dos Amigos da Ópera Italiana”, na verdade uma reunião de mafiosos, chefiada pelo poderoso chefão Little Bonaparte (Nehemiah Persoff), que vieram para resolver o massacre ocorrido em Chicago. Entre eles está o temido bandido de polainas brancas, Spats Colombo. A trama fica cada vez mais quente.
Não se pode assistir ao filme, sem estar atento à sutileza das suas insinuações; à agudeza do humor mordaz das falas; à ingenuidade aparente e inocência disseminada na malícia de Sugar Kane e Jerry/Daphne. O príncipe é um sapo, a Cinderela tem o pé grande e voz grave. Nada é perfeito, tudo é farsa, deslumbre e fantasia, que se esvai ao som de tiros das armas mortais dos mafiosos.
Numa perseguição frenética, gângsteres e músicos enchem a grande tela. É a luta entre a força bruta e os frágeis, a inteligência e a aspereza criminosa, a astúcia e os gatilhos das armas, a mentira e a sedução, homem másculo e o seu lado feminino, os sonhos e as ambições.
A fuga final das personagens desemboca no iate do milionário Osgood Fielding III. É a hora da verdade. Se Joe não é o milionário Junior Shell, é o músico mentiroso e frágil dos enganos de Sugar, o estereótipo do amor que ela tanto recusa, mas que reflete a verdadeira luz dos seus sentimentos e jeito de amar.
Mas se em Joe e Sugar os opostos se atraem de maneira irreversível, o mesmo não acontece entre Jerry e Osgood. A hora da verdade entre o casal mais divertido da história traz o final mais surpreendente de todos os filmes. No iate, em plena fuga, Osgood insiste na idéia do casamento com Daphne. Acossado, Jerry/Daphne tenta dar várias desculpas em um diálogo hilariante:

Osgood – Eu falei com a mamãe. Ela está muito feliz e gostaria que você usasse o seu vestido de noiva.
Daphne – Eu não posso casar com o vestido dela. Nossos corpos são muitos diferentes.
Osgood – Nós podemos mandar adaptá-lo para você.
Daphne – Não, Osgood. Nós não podemos nos casar.
Osgood – Por que não?
Daphne – Em primeiro lugar, porque não sou uma loira natural.
Osgood – Isso não tem importância.
Daphne – Eu fumo muito.
Osgood – Eu não me importo.
Daphne – Eu vivo com um saxofonista há três anos.
Osgood – Eu lhe perdôo.
Daphne – Eu não posso lhe dar filhos.
Osgood – Nós podemos adotar um.

Sem saída, Daphne resolve revelar o seu segredo. Tira a peruca da cabeça, e com a voz grave revela: “Eu sou homem!”. Para surpresa de todos, Osgood Fielding III mantém-se imperturbável e ainda apaixonado, respondendo prontamente: “Afinal ninguém é perfeito”. De maneira imprevisível, encerrava-se a mais eloqüente e ambígua de todas as comédias. E assim como começou, mostrou que quanto mais quente, melhor a genialidade de um grande diretor e um elenco talentoso, onde a maior farsa é o ridículo moralista, e a maior verdade o riso.

Ficha Técnica:

Quanto Mais Quente Melhor

Direção: Billy Wilder
Ano: 1959
País: Estados Unidos
Gênero: Comédia/Musical
Duração: 122 minutos / preto e branco
Título Original: Some Like It Hot
Roteiro: I. A. L. Diamond e Billy Wilder, baseado em história de Michael Logan e Robert Thoeren
Produção: Billy Wilder, I. A. L. Diamond e Doane Harrison
Música Original: Adolph Deutsch, Bert Kalmar, Matty Malneck e Herbert Stothart
Música Não Original: A. H. Gibbs
Direção de Fotografia: Charles Lang
Direção de Arte: Ted Howorth
Decoração de Set: Edward G. Boyle
Figurino: Bert Henrikson e Orry-Kelly
Maquiagem: Agnes Flanagan, Emile LaVigne, Alice Monte e Allan Snyder
Edição: Arthur P. Schmidt
Efeitos Visuais: Milt Rice e Daniel Hays
Som: Fred Lau
Estúdio: United Artists / Ashton Productions / Mirisch Company
Distribuição: United Artists
Elenco: Marilyn Monroe, Tony Curtis, Jack Lemmon, George Raft, Pat O’Brien, Joe E. Brown, Nehemiah Persoff, Joan Shawlee, Billy Gray, George E. Stone, Dave Barry, Mike Mazurki, Harry Wilson, Beverly Wills, Barbara Drew, Edward G. Robinson Jr.
Sinopse: Dois músicos desempregados, Joe (Tony Curtis) e Jerry (Jack Lemmon), testemunham involuntariamente, na Chicago de 1929, um crime cometido pelo temível Spats Colombo (George Raft). Para fugir da mira do criminoso, os dois vestem-se de mulher, conseguindo trabalho numa banda de mulheres. Joe adota o nome de Josephine, e Jerry torna-se Daphne. Travestidos, juntam-se à banda e seguem em um trem, para Miami. No percurso, deparam-se com a bela vocalista da banda, Sugar Kane (Marilyn Monroe). Em Miami, a confusão é geral quando Joe se faz passar por um milionário para conquistar o amor de Sugar, e um verdadeiro milionário (Joe E. Brown) apaixona-se por Daphne. Não bastasse, uma reunião dos Amigos da Ópera traz a Miami uma convenção de criminosos, entre eles está Spats Colombo e a sua gangue.

Billy Wilder

Considerado um dos maiores gênios do cinema, Samuel Wilder, conhecido como Billy Wilder, nasceu em Sucha Beskidzka, atual Polônia, em 22 de junho de 1906. Filho de uma família de judeus, Billy Wilder tinha intenções de se tornar um advogado, mas abandonou a carreira quando se mudou para Viena, tornando-se jornalista.
Foi em Berlim, na Alemanha, quando trabalhava para um tablóide, que Billy Wilder iniciou a carreira no cinema, estreando-se como roteirista, em 1929. Com a ascensão do nazismo, em 1933, o jovem roteirista viu-se obrigado a deixar a Alemanha, emigrando para a França, e depois para os Estados Unidos. A barbárie nazista atingiu a sua família, tendo a mãe e os avós mortos em Auschwitz.
Nos Estados Unidos, Billy Wilder teve que aprender o idioma inglês em um curto tempo. No início contou com a ajuda de Peter Lorre para ingressar na seleta indústria de Hollywood. Escreveu roteiros em parceria com Charles Brackett que se tornaram clássicos do cinema americano, como “Ninotchka”, de 1939. A partir de 1942, Brackett começou a produzir filmes dirigidos por Wilder. Da união dos dois, surgiram grandes produções que se tornaram míticas, como “Farrapo Humano”, em 1945, que ganhou o Oscar de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro, e “Crepúsculos dos Deuses”, em 1950, que teve várias indicações para o Oscar, ganhando o de melhor roteiro, melhor direção de arte e melhor trilha sonora.
A partir de 1951, Billy Wilder produziu os próprios filmes. Sua filmografia é de uma genialidade impar, transitando entre grandes comédias como “O Pecado Mora ao Lado” (1955) e “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), ao filme noir, como o imprescindível “Crepúsculo dos Deuses”. É considerado um dos maiores diretores de todos os tempos, dono de uma obra com pouca oscilação, contundente e surpreendente, marcada pela ousadia de como os temas eram propostos. Impossível apontar um único filme do diretor como sendo a sua obra-prima. Billy Wilder tem várias obras-primas.
Billy Wilder teve uma vida longa, morrendo aos 95 anos, em 27 de março de 2002, em Beverly Hills, Los Angeles, vítima de uma pneumonia, após enfrentar uma batalha contra um câncer. Deixou um legado inconfundível dentro da sétima arte, responsável pela grandiosidade de várias carreiras de ídolos de Hollywood.

Filmografia de Billy Wilder:

1934 – Mauvaise Graine
1942 – The Major and the Minor (A Incrível Susana)
1943 – Five Graves to Cairo (Cinco Covas no Egito)
1944 – Double Indemnity (Pacto de Sangue)
1945 – Death Mills
1945 – The Lost Weekend (Farrapo Humano)
1948 – The Emperor Waltz (Valsa do Imperador)
1948 – A Foreign Affair (A Mundana)
1950 – Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses)
1951 – Ace in the Hole (A Montanha dos Sete Abutres)
1953 – Stalag 17 (Inferno nº 17)
1954 – Sabrina (Sabrina)
1955 – The Seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado)
1957 – The Spirit of St. Louis (Águia Solitária)
1957 – Love in the Afternoon (Um Amor na Tarde)
1957 – Witness for the Prosecution (Testemunha de Acusação)
1959 – Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor)
1960 – The Apartment (Se Meu Apartamento Falasse)
1961 – One, Two, Three (Cupido Não Tem Bandeira)
1963 – Irma la Douce (Irma la Douce)
1964 – Kiss Me, Stupid (Beija-me, Idiota)
1966 – The Fortune Cookie (Uma Loura por Um Milhão)
1970 – The Private Life of Sherlock Holmes (A Vida Íntima de Sherlock Holmes)
1972 – Avanti! (Avanti… Amantes a Italiana)
1974 – The Front Page (A Primeira Página)
1978 – Fedora (As Cinzas de Ângela)
1981 – Buddy Buddy (Amigos, Amigos, Negócios a Parte)


BAUHAUS – REVOLUÇÃO NA ARQUITETURA

dezembro 16, 2009

Por séculos consecutivos, a arquitetura era um privilégio de uma clientela de classe social privilegiada, voltada efetivamente para a decoração das grandes igrejas, palácios de nobres poderosos e mansões de uma burguesia ascendente. A beleza arquitetônica das cidades resumia-se nas suas obras públicas de cunho religioso, com monumentais mosteiros e adornadas igrejas. A população urbana era distribuída por insignificantes prédios, sem conforto, beleza ou mesmo saneamento básico. O desleixo urbano foi responsável por várias epidemias, entre elas a conhecida peste negra, que dizimou quase toda a população européia medieval. Ao contrário do que se pensa, surtos de pestilências ultrapassaram a Idade Média, matando até os tempos modernos.
A industrialização acelerada das cidades trouxe novos materiais como o ferro fundido e o aço, que poderiam ser usados na arquitetura. Movimentos arquitetônicos de cunho modernistas e precursores de uma nova vanguarda, explodiram pela Alemanha no início do século XX. A sua atuação seria interrompida pela Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, uma Alemanha falida e humilhada dava passagem para a volta da vanguarda arquitetônica, voltada para a necessidade urgente da expansão industrial. Em 1919 surgiu a Bauhaus, escola arquitetônica criada por Walter Gropius. Fundada em Weimar, pátria de Nietzsche e Goethe, esta escola proclamava a unidade das várias disciplinas artísticas, incorporando-as à arquitetura em um amplo objetivo. Os homens da Bauhaus defendiam a ligação entre o desenho industrial e à produção da indústria, razão que os levou a desenvolver a escola em grandes centros urbanos, onde a industrialização era latente.
Pelos Bauhaus passaram grandes mestres: Paul Klee, Laszlo Moholy-Nagy, Marcel Breuer, Vassily Kandinsky, Oscar Schlemmer, Mies van der Rohe, Gerhard Marcks, Josef Albers e outros. O movimento tornou-se referência internacional, atraindo artistas de todo o mundo para a confusa Alemanha do pós-guerra e pré-nazista. O Bauhaus traziam não só a renovação artística, como também uma ideológica inquietação social e política.
Contestados pelos conservadores alemães, que achavam a arquitetura Bauhaus muito aquém do nacionalismo alemão surgido com a ascensão nazista, os integrantes do movimento sofreram ferozes críticas e perseguição. Associados aos comunistas e ao construtivismo russo, os Bauhaus passaram a ser abafados pelos partidários do nazismo. Com a subida de Hitler ao poder, a Bauhaus morreria voluntariamente em 1933, em Berlim, a última cidade onde se instalara. Seu legado ultrapassou as fronteiras alemãs, atingindo e modernizando a arquitetura mundial. O maior centro arquitetônico Bauhaus encontra-se em Tel Aviv, Israel. Nove décadas depois da fundação, a Bauhaus voltaria à Alemanha com o fim da guerra e do nazismo. Continua a ser uma das mais influentes escolas de arquitetura do mundo, apesar de não ter aquela essência de vanguarda que abalou e o modificou os alicerces da arquitetura no início do século XX. A Bauhaus de Weimar continua a exercer influência em arquitetos de todo o planeta.

As Indústrias e as Novas Tendências da Arquitetura

No fim do século XIX desencadeou-se a Revolução Industrial, com ela um grande fluxo de pessoas abandonou os campos, invadindo as cidades. Surgia a necessidade de uma nova paisagem urbana, voltada não somente para a elite, mas para uma pulsante população. Os arquitetos passaram a ter à disposição novos materiais para serem usados nas construções, como o ferro fundido e o aço. As fachadas de pedras estavam condenadas.
A indústria da época passou a criar novas possibilidades, passando a produzir aos milhares, as diversas partes dos edifícios, antes confeccionados manualmente. As mudanças encerravam uma fase da arquitetura, voltada para uma beleza concebida em uma harmonia de poucos prédios, jamais de uma explosão demográfica urbana.
A consciência de que a arquitetura tradicional não se adaptava mais à realidade urbana criada pela Revolução Industrial, só foi percebida por alguns arquitetos no fim do século XIX. Um dos pioneiros dessa percepção, Otto Wagner, professor de arquitetura em Viena, Áustria, já conclamava, em 1896, que nada que não fosse prático não poderia ser belo, a arquitetura deveria ter harmonia com a época, não com a tradição secular. O aço, o alumínio, o ferro, o celulóide, a linóleo e o cimento passaram a ser considerados pelos arquitetos vanguardistas como os materiais que iriam construir as novas cidades.
Um dos herdeiros das novas idéias sobre arquitetura moderna foi o alemão Walter Gropius, nascido em Berlim, em 1883. Gropius fez parte da associação Deutscher Werkbund, fundada em 1907 por Hermann Muthesius. A associação de Muthesius era defensora da idéia da razão e da simplicidade na construção e na arte, estabelecendo ligações entre artesãos, artistas e a indústria.
Aceitando os princípios de Muthesius, Walter Gropius construiu, em 1911, a fábrica de Fagus, em Alfeld na der Leine, considerada a obra-prima da arquitetura metálica do século XX. O edifício serviu como ponto de partida da renovação da arquitetura moderna. Em 1914, a Deutscher Werkbund realizou a primeira manifestação coletiva, promovendo uma grande exposição em Colônia. O evento foi marcado pela participação massiva de arquitetos não acadêmicos. O trabalho do grupo seria interrompido pela deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), passando por um período de silêncio vanguardista.

A Criação da Bauhaus na República de Weimar

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha foi severamente punida pelos países vencedores, vendo-se obrigada a pagar vultuosas indenizações. O país passaria por um período financeiro difícil, sendo obrigado a expandir a indústria para que superasse as deficiências da economia. O período de reconstrução alemã possibilitou possibilitou o surgimento de indústrias, o florir de arrebatadas tendências ideológicas, e a efervescência cultural que geraria vários movimentos de vanguarda. No período pós-guerra, a Alemanha inaugurava a sua primeira República, conhecida como República de Weimar.
Em 1919, Walter Gropius assumiu a direção da Escola de Arte de Weimar, inaugurando-a com o nome de Staatliches Bauhaus (casa estatal de construção). A escola tinha como objetivo principal aproximar o mundo da arte ao mundo da produção industrial. Concentrava-se nos projetos da estrutura das construções e não em seus ornamentos, defendendo a funcionalidade e utilidade da arquitetura.
Os Bauhaus tinham no seu discurso, claras tendências e referências ao grupo holandês de De Stijl, que assinalaram o tempo de Weimar; e, o construtivismo russo, característica da época em que a escola permaneceu em Dessau. A Bauhaus aglutinou artistas de todas as aéreas, praticando em suas salas desde a arquitetura, pintura e escultura, ao teatro, a dança e a fotografia. A Bauhaus tornou-se o ponto de encontro de todas as artes e idéias inovadoras da época.Atraiu artistas e adeptos em todo o mundo.
Uma das características da Bauhaus era manter-se aberta para todos os movimentos de vanguarda, tendo aglutinado expoentes do cubismo, do construtivismo e da arte abstrata. Foram mestres da escola alguns dos maiores artistas do século XX, entre eles, além de Walter Gropius, Laszlo Moholy-Nagy, Vassily Kandinsky, Paul Klee, Lyonel Feininger, Josef Albers, Marcel Breuer, Oskar Schlemmer, Marianne Brandt, Johannes Itten, Gerhard Marks, Georg Muche, Gunda Stölzl, Omar Akbar, Hinnerk Scheper, Joost Schmidt, Lothar Schreyer, Dietmar Starke e Magdalena Droste.

A Influência da Bauhaus

Exercendo uma influência e prestígio na arte de projetar, a Bauhaus combatia arrebatadamente a arquitetura tradicional, considerada pela escola como inadequada ao mundo moderno. Tornou-se referência em todo o planeta como um novo estilo que a arquitetura deveria seguir.
Com professores de elevado prestígio em seus quadros, a Bauhaus atraiu um grande número de alunos, sendo duzentos e cinqüenta já no início. Uma das peculiaridades do curso era o seu currículo, que privilegiava não só o ensino teórico, como o ensino prático. No primeiro semestre eram estudadas as propriedades dos materiais usados. Nos três anos seguintes estudavam as técnicas e as formas, simultaneamente.
O primeiro balanço público dos resultados da escola foi apresentado em 1923, com uma apresentação memorável de eventos que traziam projeções cinematográficas, concertos, balés e conferências. Na época foi publicado um álbum com reproduções das obras de alguns mestres e discípulos da Bauhaus. Durante o evento, foi projetada e construída nos estúdios do instituto, uma casa totalmente mobiliada, chamada de Hausam Horn.
A melhora da situação econômica da Alemanha, proporcionou o crescimento da indústria. Empresas encomendavam cada vez mais projetos a Bauhaus. Era a consolidação de uma estreita ligação entre o design e a produção industrial, ponto chave da filosofia da escola. Em 1925, as cadeiras de tubo de aço de Marcel Breuer foram industrializadas. Luminárias, desenhos de móveis, vitrais, copos, tecidos concebidos pelos Bauhaus foram apresentados ao mundo pelas indústrias, sendo até hoje usados como ornamentos e utensílios domésticos.

O Nazismo e o Fim da Bauhaus

Apesar do imenso prestígio que alcançou dentro da Alemanha e no resto do mundo, a Bauhaus passou a ser perseguida pelos alemães mais tradicionais, entre eles os nazistas, que estavam em franca ascensão. Os mais radicais acusavam os membros da escola de desprezarem a herança histórica nacional. Para os tradicionalistas, a arquitetura modernista da Bauhaus não era adequada para a grandiosidade da Alemanha que o regime nazista ansiava.
Atacados pelos defensores dos nazistas, diante das fragilidades da proteção das autoridades de Weimar, a escola viu-se obrigada a transferir-se para Dessau. Ali, Walter Gropius construiria, em 1925, uma nova sede para a instituição.
É no período da escola em Dessau, que a colaboração com as indústrias seria amplamente intensificada. A maioria dos protótipos executados na Alemanha, saiam diretamente das oficinas de Dessau para as indústrias. Muitos dos artistas bauhausianos passaram a dedicar-se ao desenho industrial, enquanto que alguns dos seus discípulos ocupavam postos importantes nas grandes empresas.
Em 1928, apesar das pressões sobre os seus membros pelos tradicionalistas, a Bauhaus já era uma instituição inequivocamente estabelecida. Naquele ano, Walter Gropius passou a direção da escola a Hannes Meyer, inaugurando um novo período, o segundo. Os ventos políticos na Alemanha começavam a soprar contrários à efervescência vanguardista. A pressão dos grupos nazistas levou o novo diretor da Bauhaus a demitir-se em 1930. Ludwig Mies van der Rohe foi quem o substituiu, dando início ao terceiro período da história da Bauhaus.
Mies van der Rohe seria o último diretor da Bauhaus. Mudaria novamente a sede, em 1932, de Dessau, considerado um lugar de maioria de esquerda, para Berlim. A chegada a Berlim culminou com a ascensão nazista ao poder. Em 1933, Hitler assumiu a chancelaria alemã. O líder nazista sentia-se incomodado pelo modernismo em gestação na Alemanha. O führer tinha outras inclinações estilísticas, herdeiras de uma tradição neoclássica. Queria monumentos grandiosos para um império, que ele previa, teria a duração de mil anos. Dotados de uma visão crítica e racional, os bauhausianos não aceitavam a ideologia nazista. Também os nazistas não aceitavam os Bauhaus, associados ao partido comunista, e às suas obras, longe do ideal clássico por eles ansiado. Com extinção da República de Weimar, também a Bauhaus chegava ao fim, sendo encerrada em Berlim, em 1933. Seus edifícios tornaram-se centros de formação para os oficiais do partido nazista.
Com o fechamento da escola, a maior parte dos membros da Bauhaus emigrou para os Estados Unidos. Em 1937, Laszlo Moholy-Nagy fundaria, em solo norte-americano a Bauhaus de Chicago. Em seus catorze anos (1919-1933), a Bauhaus criou o que ainda hoje é considerado o mais moderno na estética industrial.

A Cidade Branca de Tel Aviv, Maior Acervo da Arquitetura Bauhaus

A influência da Bauhaus pode ser vista não só no design industrial moderno, como em lugares específicos do planeta. Após a reunificação alemã, a cidade de Dessau passou a atrair milhares de visitantes, em busca da história da Bauhaus e, tornou-se um pólo de reflexão sobre o espaço urbano. Muitos dos prédios da escola foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o de Dessau o que mais se preservou erguido. O prédio foi praticamente reconstruído. A recuperação dos prédios é uma das prioridades da administração de Dessau.
A maior herdeira da escola Bauhaus é a cidade de Tel Aviv, em Israel. Na década de 1930, fugindo da perseguição nazista, diversos arquitetos judeus alemães instalaram-se na Palestina, então um protetorado britânico. Traziam na bagagem a herança do racionalismo arquitetônico Bauhaus, perfeitamente encaixada na construção da jovem cidade de Tel Aviv. Foi erguido um conjunto com mais de quatro mil prédios racionalistas. Por causa da cor empregada na maioria dos edifícios, o branco, Tel Aviv, a cidade dos Bauhaus, passou a ser chamada de “Cidade Branca”. Em 2003, a Unesco declarou os edifícios da Cidade Branca de Tel Aviv como Patrimônio Mundial da Humanidade. A cidade traz na sua arquitetura, a maior herança Bauhaus, visível e de acesso a quem a visita.
Após a explosão das tendências e predominâncias da filosofia da escola Bauhaus, a arquitetura jamais foi a mesma. Estava enterrada de vez a beleza grandiosa das grandes construções, dando passagem para a racionalidade prática da arquitetura urbana moderna.


CREPÚSCULO DOS DEUSES

dezembro 5, 2009

Um dos maiores clássicos do cinema universal. “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard), de Billy Wilder, é uma mordaz história que retrata o próprio cinema e o espelho enfumaçado das suas estrelas. Revela a tragédia que se abateu sobre a carreira de grandes astros de Hollywood quando da sonorização do cinema, em 1928. O cinema mudo lançou estrelas como Mary Pickford, Charles Chaplin, Greta Garbo, Rudolph Valentino, John Gilbert, entre muitos. Com a chegada do som, muitos atores revelaram ao público uma voz desagradável, ou falta de habilidade para trabalhar diante dos microfones. Grandes carreiras foram encerradas quando estavam no auge, sendo legadas ao esquecimento.
O filme é a história de Norma Desmond, grande estrela do cinema mudo, que se viu esquecida por Hollywood, enlouquecendo no seu abandono. Ela vive refugiada em sua mansão na Sunset Boulevard, a rua dos astros de Hollywood, em um mundo surreal, sonhando com a volta às telas, desesperando-se com a expectativa de que um diretor famoso virá buscá-la.
Instável, rica, arrogante, possessiva, manipuladora, Norma Desmond tem a sua loucura alimentada pelo fiel mordomo Max, que lhe escreve e envia cartas, assinando-as como fãs. O mundo sombrio da esquecida dama é modificado com a chegada imprevista do roteirista Joe Gillis, um profissional fracassado que foge dos credores. Norma contrata-o para trabalhar em um roteiro medíocre, que ela pensa, será o responsável pela sua volta.
As personagens são interligadas em uma história cáustica, movida pela ambição de ambos, ela que quer voltar ao estrelato, ele que só deseja usufruir das boas condições financeiras. Atam-se em uma armadilha destrutiva, que oscila entre o ódio, o desprezo, a atração, a ambição, sentimentos nem sempre compartilhados por ambos. Billy Wilder vai desnudando o mundo de glamour de Hollywood, a crueldade da indústria com os seus ídolos, a degradação da alma humana.
Se Norma perde o senso da realidade, sabe do poder do seu dinheiro, como controlar e dirigir a vida de um homem oportunista; Joe não tem a consciência desprovida dos seus atos, esconde-se na sua ambição, e quando tenta acertar, crescer e lapidar a alma, não consegue sair do labirinto cáustico do mundo insano de Norma. Seus destinos estão interligados para sempre. A morte é a saída, a loucura também.
No rosto de Gloria Swanson, encontramos uma interpretação com nuances exagerados, olhos arregalados, movimentos típicos do cinema mudo, o que faz do filme uma sarcástica crítica aos que não sobreviveram à tecnologia. “Crepúsculo dos Deuses” é uma das maiores amplitudes do cinema dentro da alma humana, da sua decadência moral e do encontro cruel com as suas verdades. Norma Desmond e Joel Gillis, loucura e ambição, mesclam-se em uma encenação fatal.

Gloria Swanson e Norma Desmond, Estrelas do Cinema Mudo

O filme de Billy Wilder foge totalmente da narrativa clássica, iniciando a trama já com a tragédia confirmada. Policiais chegam em uma mansão da Sunset Boulevard para investigarem a denúncia de alguns tiros desferidos. No local encontram um cadáver a boiar na piscina. A partir de então, a trama começa a ser narrada pelo próprio morto, Joe Gillis (William Holden). Este início do filme é uma segunda versão, a original era uma cena no necrotério de Los Angeles, em que seis cadáveres relatavam, uns aos outros, as circunstâncias em que morreram. Um deles, Joe Gillis, começava a narrar a própria morte, dando seqüência ao filme. Em exibições de teste, a platéia deu risadas da cena, o que levou Billy Wilder a voltar a filmar outro início, o da antológica seqüência do corpo de Joe Gillis boiando na piscina.
Em off, o morto narra a sua história, retrocedendo ao fatídico dia que se encontrou com Norma Desmond (Gloria Swanson). Joe Gillis era um roteirista desempregado e sem sucesso. Seu fracasso profissional refletia em uma vida financeira difícil. Sem poder pagar as prestações do carro, ele foge dos credores, escondendo o veículo em uma garagem aparentemente abandonada na Sunset Boulevard. O incidente resultará no encontro do roteirista com Norma Desmond, Ela é uma mulher rica, que vive na sua mansão decadente, volvida em um mundo imaginário, ao qual se refugia para fugir da sua realidade, ela é uma grande estrela do cinema mudo, que com a sua sonorização, foi esquecida, precocemente levada ao ostracismo profissional.
Norma é uma mulher de meia idade, dominadora, possessiva, depressiva, tomada por sucessivas crises de desequilíbrio. Completamente esquecida pelo público e pelos produtores de Hollywood, ela vive a ilusão de ainda ser uma grande estrela, mentira sustentada pelo fiel mordomo Max von Mayerling(Erich von Stroheim), que lhe escreve secretamente, cartas de fãs que clamam por ela.
Na sua arrogância de grande dama do cinema, ela quer ser dirigida pelo mítico Cecil B. DeMille. No seu refúgio imaginário, trancada por décadas na mansão, Norma Desmond perdeu a noção de que o tempo passou. Com mais de cinqüenta anos, trabalha em um roteiro sobre Salomé, jovem personagem bíblica que ela quer interpretar, marcando, assim, a sua volta às telas. Para melhorar o roteiro que escreve, Norma Desmond contrata o jovem Joe Gillis. A partir de então, os dois estarão interligados para sempre, protagonizando uma história tensa e sombria.
Gloria Swanson parece viver na tela a sua própria história. Assim como a personagem, ela foi uma grande estrela do cinema mudo, sendo esquecida quando da mudança de tecnologia. A história de Billy Wilder retrata com fidelidade a perversa e cruel realidade de grandes astros que tiveram as suas carreiras encerradas quando atingiam o ápice. Para maior efeito, resgatou uma das grandes estrelas da época de ouro do cinema mudo. Curiosamente, Gloria Swanson foi a quarta opção do diretor, que oferecera o papel para Mae West, Mary Pickford e Pola Nigri, sendo recusado por todas. Gloria Swanson agarrou a personagem com a ferocidade das estrelas, transformando-a em uma atuação definitiva e única, que se confundiu com o restante da sua carreira, marcada para sempre pela força de Norma Desmond.

O Sóbrio e Sarcástico Joe Gillis de William Holden

Joe Gillis percebe, desde o início, o desequilibro de Norma. Inteligente, sagaz e oportunista, ele não acredita no roteiro da atriz, acha-o medíocre, sabe que ela já passou da idade para o papel. Mesmo assim, desempregado, aceita o convite para melhorar o roteiro. Vê no trabalho não uma realização, uma verdade profissional, mas a oportunidade de ganhar dinheiro e lucrar com os desvarios e excentricidades de Norma. O encontro entre os dois, já de início é demarcado por cínicos, inteligentes e brilhantes diálogos: “Você é Norma Desmond. Você trabalhava em filmes mudos. Você era grande!”, diz ele, ao que ela, orgulhosa e impenetrável no seu pedestal, responde: “Eu sou grande. Os filmes é que ficaram menores.
Para realizar o trabalho, Joe Gillis vai viver para as acomodações de um apartamento nos fundos da mansão de Norma. Ali permanece até que as chuvas criam um vazamento, obrigando-o a mudar-se para dentro da mansão, ocupando o quarto que pertencera aos três maridos de Norma. Sem demonstrar rejeição, o roteirista percebe o interesse latente da atriz por ele. Norma envolve-o com a sua obsessão eterna, ladeada de sentimentos confusos e passionais. Compra roupas caras para Joe, dominando por completo a sua vida. Na noite de ano novo, um elegante Joe Gillis desce as escadas da mansão, vestido com uma fina casaca que Norma mandara confeccionar a um figurinista, à espera de uma grande festa. Fica surpreso ao ver que só ele e Norma estarão presentes. Se a situação parecia confortável ao roteirista, ele começa a perceber que já não é livre como antes, sente-se cada vez mais prisioneiro daquela mulher, sem se sentir emocionalmente envolvido com ela. Constata que o desequilíbrio de Norma é maior do que imaginava.
A história magistralmente dirigida por Billy Wilder traz momentos em que a ficção mistura-se com a do próprio cinema, e vemos um desfile de atores da época dos filmes mudos, como Buster Keaton, ou ainda o diretor Cecil B. DeMille, ambos a interpretar eles mesmos.
O filme prende as platéias, mesmo com uma trama despida de qualquer vestígio da paixão, ou de uma forte história de amor. É uma elegia a duas ambições, a de Norma Desmond em voltar aos degraus da fama, e a de Joe Gillis, um homem que adormece a consciência em troca de uma vida confortável, ao lado de uma mulher pela qual não tem paixão, ou mesmo compaixão. Ele é movido por uma sobriedade sarcástica, sem arroubos. William Holden cria um Joe Gillis aos moldes de Humphrey Bogart. Sua beleza de bom moço não dá passagem, diluindo-se em um cinismo latente. O ator também não foi a primeira opção de Billy Wilder. Montgomery Clift tinha assinado contrato para fazer o papel, mas duas semanas antes de começar as filmagens, decidiu rescindi-lo. A segunda opção foi Fred MacMurray, que se negou a fazer o papel de um gigolô. William Holden sofreu, a princípio, grande rejeição por parte de Billy Wilder. Depois da sua interpretação magistral, tornar-se-ia um dos preferidos do diretor, voltando a trabalhar com ele em vários filmes.
A beleza jovial e sobriedade latente da interpretação de William Holden dão o contraste perfeito com a beleza decadente e desequilibro à flor da pele da Norma Desmond de Gloria Swanson.

Degradação, Morte e Loucura

Joe Gillis deixou-se levar pelas facilidades financeiras oferecidas por Norma Desmond. Não percebeu a sua decadência moral e o aprisionamento da alma, a fragmentação lenta do seu caráter. Mas ele é um homem inteligente, com uma consciência que por mais que se mantenha muda, insiste em soltar um grito no vácuo, na escuridão de um homem.
A idéia da prisão em que vive o jovem começa a ficar latente quando ele envolve-se com a roteirista Betty Schaefer (Nancy Olson). Inicia com a jovem uma relação profissional, trabalhando em conjunto em um roteiro. Joe Gillis começa a sentir-se um profissional outra vez. Betty passa a ser um alicerce de reconstrução do caráter moral e profissional do sarcástico Joe. Betty, apesar de estar namorando um amigo de Joe, Artie Green (Jack Webb), deixa-se envolver por ele.
A paixão inesperada é mais latente em Betty do que em Joe. Ele encontra na companheira o incentivo para que possa criar um grande roteiro, reerguendo-se das cinzas que lançara a sua vida. Decide renunciar ao relacionamento obsessivo e doentio que tem com Norma, recuperando a liberdade. Mas Norma tenta suicídio, cortando os pulsos. O pouco caráter que Joe ainda nutre, faz com que se sinta culpado e fique ao lado de Norma. Momentos de dilacerantes discussões, de ciúme claustrofóbico, dão a densidade dilatante do filme.
Mas Betty não desiste de salvar a alma e o talento escondidos de Joe. Confronta com Max, que intercepta as suas mensagens e telefonemas dirigidos a Joe. Uma segunda vertente é aberta na trama. Betty e Max são os verdadeiros alicerces de Joe e Norma, respectivamente. Lutam pelos dois, de forma que os fazem sobreviventes deles próprios. Betty consegue penetrar na muralha de Max, chegando a Joe. Ao confrontar o jovem escritor, consegue apenas que ele rompa com ela. Joe diz que não deixará a vida de luxo oferecida por Norma. Destruída, Betty parte, deixando a vida do rapaz para sempre.
Mas Joe Gillis surpreende. Sua consciência já não se cala, arranca de dentro dele todos os gritos das suas verdades. Ao chegar à mansão, ele faz as malas. Não ficaria com Betty, tão pouco com Norma. Ficaria com a sua liberdade, tentaria recuperar o homem que um dia fora, apagando o que se tornara. Decide voltar para Ohio e recuperar o seu antigo emprego de jornalista. Já não tem fascínio pela crueldade e brilho de Hollywood. O retrato de Norma Desmond fazia com que repelisse qualquer verdade ou ilusão dentro daquele universo de vaidades.
Já pronto para partir, Joe Gillis vê-se frente a frente com Norma Desmond. Ela ameaça matar-se caso ele parta. Entram no último e definitivo confronto. Cruelmente, ele mostra a verdade a Norma Desmond, que se mate, pois ninguém sentirá a sua falta, seus fãs já não se lembram dela. Pela primeira vez, Norma ouve a realidade que não quis enxergar durante todo o filme, tantas vezes camuflada pelo amor de Max.
Joe parte, desce as escadas, em busca da saída da mansão. Quando passa pela piscina, é atingido mortalmente por três tiros desferidos por Norma Desmond. Vive-se o ápice já anunciado nas cenas iniciais. Já sabemos que o jovem escritor pagaria a sua ambição com a vida. O corpo de Joe cai dentro da piscina. O filme volta ao início, quando os policiais chegam ao local do crime.
O corpo de Joe Gillis é retirado da piscina. Se a sua ambição lhe custara a vida, a de Norma Desmond roubara-lhe de vez a lucidez. A mansão é invadida pelos policiais, acompanhados por fotógrafos e jornalistas em busca da notícia. Max percebe o destino da protegida. Ainda uma última vez, ameniza a realidade trágica do seu ídolo. Avisa a Norma que as câmeras e os fotógrafos a esperam. Mergulhada por completo na obsessão de voltar ao mundo da fama, uma enlouquecida Norma Desmond retoca a maquiagem. Melancolicamente ela desce a escada de mármore. Acreditando que as câmeras dos fotógrafos sejam às de uma produção de Cecil B. DeMille, que está filmando Salomé. Norma Desmond dirige-se a elas com expressões faciais exageradas, olhos arregalados, com uma expressão trágica e patética, reproduzindo na essência a dramaticidade característica dos filmes mudos. Inesperadamente ela diz : “Sr. DeMille, estou pronta para o meu close-up”. Norma Desmond seguiria para uma prisão ou para um manicômio, acreditando que entrava nas filmagens de uma película. De forma surrealista, ludicamente cruel, terminava um dos maiores clássicos do cinema. Billy Wilder enterrava de vez o que restara do cinema mudo.

Ficha Técnica:

Crepúsculo dos Deuses

Direção: Billy Wilder
Ano: 1950
País: Estados Unidos
Gênero: Drama e Filme Noir
Duração: 110 minutos / preto e branco
Título Original: Sunset Boulevard
Roteiro: Billy Wilder, Charles Brackett e D. M. Marshman Jr.
Produção: Charles Brackett
Música: Franz Waxman e Jay Livingston
Música Não Original: Johann Sebastian Bach, Richard Strauss e Gerardo Matos Rodriguez
Direção de Fotografia: John F. Seitz
Direção de Arte: Hans Dreier e John Meehan
Decoração de Set: Sam Comer e Ray Moyer
Figurino: Edith Head
Maquiagem: Wally Westmore, Nellie Manley, Karl Silvera, Frank Thayer e Vera Tomei
Edição: Arthur P. Schmidt
Efeitos Especiais: Gordon Jennings
Efeitos Visuais: Farciot Edouart
Som: John Cope e Harry Lindgren
Estúdio: Paramount Pictures
Distribuição: Paramount Pictures
Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Fred Clark, Lloyd Gough, Jack Webb, Franklyn Farnun, Larry J. Blake, Charles Dayton, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Anna Q. Nilsson, H. B. Warner, Ray Evans, Jay Livingston, Buster Keaton, Fred Aldrich, Joel Allen, Gertrude Astor, Ken Christy, Ruth Clifford, Joan Cortay, Archie R. Dalzell, Eddie Dew, Peter Drynan, Julia Faye, Al Ferguson, Gerry Ganzer, Kenneth Gibson, Joe Gray, Sanford E. Greenwald
Sinopse: Um crime é cometido. A partir dele, uma voz em off começa a narrar os acontecimentos que levaram ao trágico desfecho. Joe Gillis (William Holden), é um roteirista fracassado, que para fugir aos credores, refugia-se em uma decadente mansão da Sunset Boulevard, pertencente à Norma Desmond (Gloria Swanson), uma estrela do cinema mudo. A atriz contrata-o para melhorar o roteiro de Salomé que ela escreve, esperando que com ele volte às telas e à fama. Mesmo diante da mediocridade do roteiro, ele aceita o trabalho e a proteção financeira da atriz. Juntos travam uma relação sombria, que os levará a uma iminente tragédia.

Billy Wilder

Considerado um dos maiores gênios do cinema, Samuel Wilder, conhecido como Billy Wilder, nasceu em Sucha Beskidzka, atual Polônia, em 22 de junho de 1906. Filho de uma família de judeus, Billy Wilder tinha intenções de se tornar um advogado, mas abandonou a carreira quando se mudou para Viena, tornando-se jornalista.
Foi em Berlim, na Alemanha, quando trabalhava para um tablóide, que Billy Wilder iniciou a carreira no cinema, estreando-se como roteirista, em 1929. Com a ascensão do nazismo, em 1933, o jovem roteirista viu-se obrigado a deixar a Alemanha, emigrando para a França, e depois para os Estados Unidos. A barbárie nazista atingiu a sua família, tendo a mãe e os avós mortos em Auschwitz.
Nos Estados Unidos, Billy Wilder teve que aprender o idioma inglês em um curto tempo. No início contou com a ajuda de Peter Lorre para ingressar na seleta indústria de Hollywood. Escreveu roteiros em parceria com Charles Brackett que se tornaram clássicos do cinema americano, como “Ninotchka”, de 1939. A partir de 1942, Brackett começou a produzir filmes dirigidos por Wilder. Da união dos dois, surgiram grandes produções que se tornaram míticas, como “Farrapo Humano”, em 1945, que ganhou o Oscar de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro, e “Crepúsculos dos Deuses”, em 1950, que teve várias indicações para o Oscar, ganhando o de melhor roteiro, melhor direção de arte e melhor trilha sonora.
A partir de 1951, Billy Wilder produziu os próprios filmes. Sua filmografia é de uma genialidade impar, transitando entre grandes comédias como “O Pecado Mora ao Lado” (1955) e “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), ao filme noir, como o imprescindível “Crepúsculo dos Deuses”. É considerado um dos maiores diretores de todos os tempos, dono de uma obra com pouca oscilação, contundente e surpreendente, marcada pela ousadia de como os temas eram propostos. Impossível apontar um único filme do diretor como sendo a sua obra-prima. Billy Wilder tem várias obras-primas.
Billy Wilder teve uma vida longa, morrendo aos 95 anos, em 27 de março de 2002, em Beverly Hills, Los Angeles, vítima de uma pneumonia, após enfrentar uma batalha contra um câncer. Deixou um legado inconfundível dentro da sétima arte, responsável pela grandiosidade de várias carreiras de ídolos de Hollywood.

Filmografia de Billy Wilder:

1934 – Mauvaise Graine
1942 – The Major and the Minor (A Incrível Susana)
1943 – Five Graves to Cairo (Cinco Covas no Egito)
1944 – Double Indemnity (Pacto de Sangue)
1945 – Death Mills
1945 – The Lost Weekend (Farrapo Humano)
1948 – The Emperor Waltz (Valsa do Imperador)
1948 – A Foreign Affair (A Mundana)
1950 – Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses)
1951 – Ace in the Hole (A Montanha dos Sete Abutres)
1953 – Stalag 17 (Inferno nº 17)
1954 – Sabrina (Sabrina)
1955 – The Seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado)
1957 – The Spirit of St. Louis (Águia Solitária)
1957 – Love in the Afternoon (Um Amor na Tarde)
1957 – Witness for the Prosecution (Testemunha de Acusação)
1959 – Some Like it Hot (Quanto Mais Quente Melhor)
1960 – The Apartment (Se Meu Apartamento Falasse)
1961 – One, Two, Three (Cupido Não Tem Bandeira)
1963 – Irma la Douce (Irma la Douce)
1964 – Kiss Me, Stupid (Beija-me, Idiota)
1966 – The Fortune Cookie (Uma Loura por Um Milhão)
1970 – The Private Life of Sherlock Holmes (A Vida Íntima de Sherlock Holmes)
1972 – Avanti! (Avanti… Amantes a Italiana)
1974 – The Front Page (A Primeira Página)
1978 – Fedora (As Cinzas de Ângela)
1981 – Buddy Buddy (Amigos, Amigos, Negócios a Parte)


OS FOTÓGRAFOS DO IMPÉRIO DO BRASIL

novembro 10, 2009

 No século XIX a arte da fotografia floria, arrastando novos artistas de um universo antes dominado pela pintura. A realidade crua da imagem fotografada tirava o glamour da imagem pintada. As pessoas retratadas saíram dos quadros da parede para os álbuns portáteis. A inspiração do artista já não era mesclada pelo ludismo imaginário, mas por um incontestável retrato jornalístico.
No Brasil Império, Dom Pedro II apaixonou-se pela fotografia. Ele próprio construiu um acervo belíssimo de imagens das suas viagens e do país que governava. Durante o segundo império, grandes fotógrafos pioneiros construíram as primeiras imagens do Brasil, registrando mais realistamente o retrato de uma jovem nação. Geniais, esses artistas, em sua maioria europeus, venciam os obstáculos e as limitações técnicas da época, deixando uma obra grandiosa. Entre eles destacam-se os franceses Auguste Stahl e Jean Victor Frond; o alemão Revert Henry Klumb; o suíço George Leuzinger; e, o franco-brasileiro Marc Ferrez.
Rever os retratos desses fotógrafos grandiosos, é redescobrir um Brasil que já não existe, uma paisagem física e humana que o tempo varreu, deixando-nos órfãos de uma identidade civil de uma força aterradora.
Auguste Stahl deixou-nos imagens do Rio de Janeiro na época que era capital do império, e a sua obra-prima no Brasil, a Cachoeira de Paulo Afonso, varrida do mapa pela imposição do progresso. Marc Ferrez, herdeiro de todos os outros, destacou-se na fotografia por cerca de cinqüenta anos. Sua obra é imprescindível, retratando não só paisagens que deram origem a grandes cartões postais, como também documentou construções de ferrovias; a reconstrução do centro da cidade do Rio de Janeiro, a partir dos primeiros anos do século XX; fotografias da família imperial, ou de celebridades como Machado de Assis; além de várias paisagens humanas, mostrando a população ambulante da jovem nação, constituída por brancos, negros, índios e mestiços.
Este artigo faz uma viagem breve ao Brasil de Marc Ferrez e Auguste Stahl, através de imagens únicas, definitivas, de um país que mudou a sua paisagem, mas nunca perdeu a identidade aqui registrada através das objetivas e da sensibilidade dos grandes artistas.

Auguste Stahl e a Principal Imagem dos Primórdios da Fotografia

Theophile Auguste Stahl nasceu em 23 de maio de 1824. O local de nascimento do fotógrafo criou algumas controversas históricas, tendo sido atribuído a Bergamo, na Itália, ou ainda na Alemanha. Estudos mais recentes dão-lhe como nacionalidade a francesa. Filho dos franceses Jean Frederic Stahl e Marie Elise Stamm, teria nascido na Alsácia e passado a infância em Bergamo.
A atuação como fotógrafo no Brasil começou em 1854, quando abriu o seu primeiro estabelecimento no Recife, Pernambuco. Stahl chegara àquela cidade em 31 de dezembro de 1853. No Brasil, estabeleceria um trabalho fotográfico pioneiro que duraria quinze anos, de 1854 a 1869.
Em 22 de novembro de 1854, o imperador Dom Pedro II e a imperatriz Dona Teresa Cristina, visitaram pela primeira vez o Recife. Stahl fez o registro da chegada da família imperial na cidade pernambucana, num registro visualmente jornalístico, algo inédito para a época. Autorizado a fotografar o casal imperial, o seu trabalho empolgou o imperador, sendo agraciado com o título de “Fotógrafo de Sua Majestade o Imperador do Brasil”. Desde então, passou a deter o monopólio da imagem dos monarcas na província de Pernambuco.
Durante o tempo que ficou em Pernambuco, Dom Pedro II confidenciou ao fotógrafo o desejo de ter uma vista da imensa queda d’água chamada de Cachoeira de Paulo Afonso. O imperador visitara o local recentemente e ficara encantado com a sua beleza.
Foi assim que, em 1860, Auguste Stahl rumou para a Cachoeira de Paulo Afonso, para registrar a sua vista. O resultado seria a sua obra-prima. O registro é considerado a principal imagem dos primórdios da fotografia sobre papel no Brasil. Paulo Afonso era à época a mais famosa cachoeira do país. A beleza do trabalho mostra uma imagem grandiosa e ambiciosa, tendo sido feita com a junção de dois negativos em vidro, obtendo assim, uma dimensão esplendorosa de 27 cm x 54 cm, feito inédito para a época. No registro, vê-se a figura de um escravo a arriscar a vida no meio de uma pedra, proposta de Stahl, que nos dá a dimensão de grandiosidade da queda d’água. O contraste entre luz e sombra, remete a um cenário dramático, de beleza singular, que na sua monumentalidade deixa um certo alerta ao perigo. Os tons sépias contrastam a paisagem natural com a paisagem humana. Registro espetacular de um patrimônio natural do Brasil, que foi extinto pelo progresso. A cachoeira foi coberta pela represa que leva o mesmo nome, localizada entre as divisas dos estados de Pernambuco, Sergipe, Bahia e Alagoas. A fotografia foi redescoberta em meados da década de 1990, fazendo parte do acervo da Biblioteca Nacional. A imagem seria copiada, em 1869, pelo fotógrafo Auguste Riedel, com sutis alterações, sendo por ele apropriada.
Auguste Stahl mudou-se, em 1862, para a capital do império. Durante o tempo que esteve no Brasil, interessou-se profundamente pelo paisagismo tropical. Retratou as cidades brasileiras por onde passou, influenciando com o seu trabalho, todos os grandes fotógrafos que viriam a partir dele. Casado com Marie-Julie Bing, teve dois filhos nascidos no Brasil, Olga-Marie Stahl e Valdemar Stahl.
Em 1870, Auguste Stahl viu-se acometido por uma terrível doença, a sífilis, o que o fez regressar à França. Acredita-se que sendo obrigado a deixar bruscamente o Brasil, o fotógrafo teria legado seu estoque de tiragens originais e negativos de vidro para o jovem Marc Ferrez, que teria editado posteriormente algumas imagens de Stahl com o seu nome.
Nos dias atuais, menos de 150 fotografias suas de paisagens do Rio de Janeiro e do Recife são conhecidas. Auguste Stahl viria a morrer em um hospital da Alsácia, em 30 de outubro de 1877. Suas imagens constituem um acervo precioso do Brasil imperial e oitocentista, numa obra pioneira e sem precedentes.

Marc Ferrez e os Primeiros Anos

Marc Ferrez é considerado o maior fotógrafo brasileiro de todos os tempos. Nascido no Rio de Janeiro, em 7 de dezembro de 1843, era filho dos franceses Zéphyrin Ferrez, escultor e gravurista, que veio para o Brasil em 1816 com a Missão Artística Francesa; e de Alexandrine Caroline Chevalier. Marc Ferrez herdou o nome do tio paterno, também integrante da missão. Sexto e último filho do casal, o fotógrafo viu-se órfão aos oito anos de idade, em 1851. Naquele ano, após a morte dos pais, partiu em julho para a França, vivendo em Paris com o escultor e gravador Alphée Dubois.
Marc Ferrez só retornaria ao Brasil em 1859. Na capital do império, passou a trabalhar na Casa Leuzinger, de George Lauzinger, famosa casa editorial, papelaria e estabelecimento fotográfico, localizada na Rua do Ouvidor, centro do Rio de Janeiro. Em 1860, Marc Ferrez aprendeu técnicas fotográficas com o alemão Franz Keller-Leuzinger, fotógrafo responsável pela seção de fotografia da Casa Leuzinger.
Em 1865, aos 21 anos, abriu a própria firma, a Marc Ferrez & Cia, um estúdio fotográfico bem-sucedido, com sede na Rua São José, e que o iria pôr entre os principais profissionais da sua cidade e do próprio Império. Em 1868, já um fotógrafo famoso, recebeu menção honrosa do Almanaque Laemment.
Em 1873, uma tragédia abater-se-ia sobre o trabalho do fotógrafo, um incêndio de grandes proporções consumuria e destruiria o seu atelier, que lhe servia também de residência. Na catástrofe foram perdidos o seu acervo, chapas e equipamentos fotográficos. No ano seguinte, em 1874, ele viajaria para a França com o objetivo de readquirir novo material fotográfico e restabelecer a profissão no Rio de Janeiro.

Marc Ferrez Durante o Segundo Império

De volta ao Brasil, em 1875, Marc Ferrez foi convidado para integrar como fotógrafo à Comissão Geográfica e Geológica do Império do Brasil, comandada pelo geógrafo canadense Charles Frederick Hartt. A expedição percorreria os estados da Bahia, Pernambuco e Alagoas, e partes da Amazônia. Marc Ferrez fotografaria, quinze anos após Auguste Stahl o ter feito, a Cachoeira de Paulo Afonso. No sul da Bahia, registraria com maestria os índios Botocudos. A imagem reflete a dureza no olhar da maioria dos índios, longe de perceber que posavam para a posteridade da sua própria etnia. Olhares que se oferecem à manipulação da objetiva, sem perder a essência primitiva do homem, mais do que universal, substancialmente brasileiro.
Durante o Império, Marc Ferrez participou de várias exposições tanto no Brasil, como no exterior, obtendo alguns prêmios. Fotografou várias paisagens do Brasil imperial, do Rio de Janeiro como capital da corte. Documentou em imagens, várias obras essenciais para o desenvolvimento daquela cidade. Sob as lentes de Marc Ferrez, a capital carioca deslumbrava na sua beleza natural, bem distante dos prédios que um dia tomariam a sua paisagem. Desta época, é o registro do fotógrafo que revelam um Rio de Janeiro pulsante pelo progresso que lhe batia às portas. As paisagens da cidade feitas pelo fotógrafo, transmitem uma tranqüilidade efêmera, associada à natureza privilegiada da sua construção física. São imagens que até os dias atuais, inspiram fotógrafos de um Rio de Janeiro futurista.
Considerado herdeiro legítimo de Auguste Stahl, Marc Ferrez tornou-se impar em sua obra. Conquistou o Império e sobreviveu com prestígio, ao seu fim. Em 1880 recebeu o título de “Photografo da Marinha Imperial” e da Comissão Geográfica e Geológica do Império.
Nos últimos anos da Monarquia, registrou as obras de construção da Estrada de Ferro do Corcovado. Viajou para Minas Gerais e São Paulo, registrando as obras de ampliação da ferrovia The Minas and Rio Railway Company. Registrou as obras da ferrovia Paranaguá-Curitiba. As principais obras do Império passaram pelas lentes de Marc Ferrez. Sua competência e dedicação ao que fazia seduziram o imperador, que o agraciou, em 1885, com o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa.

O Desfile Humano nas Imagens de Marc Ferrez

Já na época da República, em 1890, o fotógrafo associou-se a Henri Gustave Lombaets, importante encadernador da Academia Imperial de Belas Artes. Juntos, fundaram a Lombaets, Marc Ferrez & Cia. Da sociedade resultou a publicação de postais e o jornal “A Estação”. Mas a associação durou pouco, sendo desfeita em 1892.
Em 1899, a Casa Ferrez continuou a apostar na publicação de postais. Já o século XIX findava e Marc Ferrez trouxe, nessa época, um Brasil das ruas, uma paisagem humana que retratava a formação de um povo. Os ofícios urbanos estampavam na sensibilidade das suas objetivas. Por ela desfilaram o verdureiro, o cesteiro, o quitandeiro, o garrafeiro, o vassoureiro, o jornaleiro, o amolador de facas, o funileiro… Profissões, muitas das quais, já extintas, e que não se teria noção do que significaram, caso não tivesse tais registros.
O Brasil mudara, a escravidão tinha sido abolida, a República proclamada. Se na época do Império vender nas ruas significava uma tarefa não dignificante, exercida pelos escravos de ganho, que vendiam doces, miudezas, e depois dividiam os lucros com o seu dono; no Brasil que despontava com o alvorecer do século XX transbordava as ruas de imigrantes, vendendo ou oferecendo serviços. Na fotografia que Marc Ferrez registrou a “Vendedora de Miudezas”, podemos constatar as mudanças. Uma mulher branca, de olhar altivo, posa para Ferrez. Há nela nuances de quem sabe que está tendo a imagem registrada. Seu olhar desafia a objetiva, numa dignidade etérea, sem perder a sua função secular. Se a paisagem trazia um Ferrez sofisticado, o registro humano não lhe fica a dever. A vendedora de miudezas traz as surpresas da sua cesta – o que ela venderia?, singelamente amparada por uma providencial sombrinha.
Procurando exercitar uma imagem viril, os dois rapazes de “Jornaleiros” transitam entre a austeridade de vender nas ruas da cidade, e uma maturidade precoce, com a perda da infância sem o direito de uma adolescência. Os dois trazem os jornais de então nas mãos, “O Paiz” e “A Notícia“. Numa época em que os jornais eram vendidos no grito, a presença desses profissionais ambulantes garantia a notícia a ecoar das páginas imprensas pelas ruas da cidade. Curiosamente, esses jornaleiros não sabiam, em sua maioria, ler ou escrever. De chapéus e casacos, eles portam a elegância da época, estendida para os mais humildes, naturalmente cavalheiros de um tempo.
O Mascate” mostra o homem claramente imigrante, uma nova realidade que mudaria o Brasil não só física, mas culturalmente. Marc Ferrez registrou as escravas de serviço, que deixavam as senzalas para praticarem o que a elite chamava de vergonhosa profissão de ambulantes, sustentando com aquele trabalho os seus amos. Elas vendiam doces que faziam, legumes que cultivavam, peixe que pescavam. O mascate trabalhava para si mesmo. Vendia tecidos, tapeçarias, eram andarilhos não só pelas capitais, mas por todo o interior de uma imensa nação. Se as escravas retornavam para os seus amos no fim da jornada, os mascates desbravavam estradas, redescobriam um país.
Assim, o desfile humano das imagens de Marc Ferrez, tornou-se o desfile do próprio Brasil, velho na sua história, mas novo como nação independente. Negros, brancos, escravos e ex-escravos, imigrantes, índios, todos eles passaram por Marc Ferrez, fazendo dele um contador de história através das imagens que se nos são apresentadas, e que tanto nos fascinam.
Marc Ferrez ainda registraria a renovação da arquitetura urbana da cidade do Rio de Janeiro, como as obras da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Foi um dos pioneiros do cinema no Brasil, obtendo, em 1905, a autorização da firma francesa Pathé Frères, para ser fornecedor exclusivo dos cinematógrafos ambulantes. Em novembro de 1907 inaugurou o Cine Pathé.
Marc Ferrez traz uma das obras fotográficas mais abrangentes do século XIX e início do século XX. Fotografou o Brasil por quase cinco décadas consecutivas, mantendo sempre um trabalho magnífico, quer com a Monarquia ou com a República. No fim da vida viveu algum tempo na França, de lá retornando já muito doente, em 1920. Marc Ferrez morreria em 12 de janeiro de 1923, na cidade do Rio de Janeiro, cenário que ele tão bem retratou, imortalizando o glamour que ela tinha quando foi capital do Império e da República do Brasil.