GUERNICA – A INDIGNAÇÃO DE PABLO PICASSO

outubro 31, 2009

A tragédia que se abateu sobre a aldeia basca de Guernica, em 1937, no auge da Guerra Civil Espanhola, indignou o mundo. Atingidos por bombas e rajadas de metralhadoras, os moradores do pequeno lugarejo viram dizimados quase que metade da população. A destruição da aldeia fazia parte de um treinamento de guerra executado pela Luftwaffe alemã, e servia para intimidar os inimigos do general Franco, cujas tropas estavam em guerra com a esquerda do país.
Pelas ruas de Guernica, em meio aos escombros, milhares de mortos jaziam insepultos, e centenas de feridos contemplavam o horror. A repercussão do ataque a Guernica correu o planeta. Foi tão negativa, que Franco em vez de usar o fato para intimidar os guerrilheiros rebeldes, culpou-os, tentando imputar-lhes a autoria do bombardeio. Ante tão imensa tragédia, ninguém quis assumir as responsabilidades.
Jornais e revistas da época registraram o banho de sangue. Mas nenhum registro foi tão contundente e definitivo quanto o de Pablo Picasso, em sua obra “Guernica”, um painel de 350 cm por 782 cm. Pintado a óleo, com cores em preto e branco e cinza, foi feita por ocasião da Exposição Internacional de Paris, em 1937. Na pintura, Pablo Picasso revela toda a indignação e repulsa pelo sucedido a Guernica e aos seus habitantes.
Retrato pungente, com figuras ao estilo dos frisos e das tumbas dos templos gregos, dimensionado pelo enquadramento triangular das alegorias. O resultado gera nos observadores, uma sensação de mal-estar, diante do horror cubista. É um grito do sangue derramado. Ao ser exposta, a obra suscitou o menosprezo das pessoas, que a tinham como repulsiva e pouco compreensível.
Com o tempo, “Guernica” tornou-se símbolo de protesto contra a violência e a barbárie das guerras. É uma manifestação da cultura contra a violência, difundida em todo o mundo. O painel foi levado para Nova York, onde lá permaneceu, proibido de retornar à Espanha, por ordem do próprio Picasso, até que o franquismo fosse extinto e a democracia restaurada. Com o fim da ditadura espanhola, em 1975, a obra retornaria ao país em 1981, sendo tida como o último exilado. Em 1992, foi definitivamente para o Museu Reina Sofia, em Madrid.
Pungente, sua beleza estética diluí-se diante do horror que retrata, “Guernica” é a própria repulsa da arte às atrocidades dos homens e dos seus regimes opressivos. É o retrato de uma civilização que se fez armada e poderosa, mas que ruiu diante das suas ideologias totalitaristas. “Guernica” é a arte contra a guerra.

O Bombardeio de Guernica

A Guerra Civil Espanhola tornou-se símbolo de uma luta ideológica da esquerda e da direita ibéricas, que suscitou o apoio de pessoas de todo o mundo. Legiões de estrangeiros engrossaram as fileiras dos guerrilheiros que combatiam contra a ditadura de Francisco Franco.
Em julho de 1936, o governo nazista de Adolf Hitler decidiu apoiar o caudilho espanhol. O acordo com os nacionalistas espanhóis concedia grande autonomia às forças nazistas. Quando a Luftwaffe alemã chegou à área do conflito, estava ansiosa para aplicar manobras militares envolvendo bombardeios de tática de terra arrasada, com levas de esquadrilhas que conduziriam bombas diferentes, de fragmentação, incendiárias; e assim, poder descobrir os efeitos.
No início de 1937, foi escolhido o local a ser bombardeado pelos nazistas. A operação tinha como finalidades, testar a capacidade bélica da Alemanha nazista em caso de uma guerra futura e, intimidar os inimigos de Francisco Franco. Seria Guernica, pequeno vilarejo situado entre Bilbao e San Sebastián, ao norte da Espanha, nos Países Bascos. O lugar possuía cerca de sete mil habitantes, refugiando muitos republicanos que para ali fugiram durante a guerra.
No dia 26 de abril de 1937, sob o comando do tenente coronel Wolfran von Richthofen, a unidade aérea alemã “Legião Condor” iniciou um bombardeio sobre Guernica. Era uma segunda-feira, dia de feira livre na aldeia. Ainda havia bastante movimento na praça, no fim da tarde, quando os sinos começaram a badalar. Às 16h45 foi despejada a primeira leva de Heinkels-11 sobre o lugarejo. Por quase três horas consecutivas, uma população horrorizada viu o inferno vindo do céu, com bombas, rajadas de metralhadoras contra os que fugiam para os arredores dos escombros formados, deixando um grande rastro de sangue e cerca de 1.654 mortos e 889 feridos. A aldeia levou um dia para apagar o incêndio.
A tragédia de Guernica entrou para a história como o primeiro cenário para ensaio de guerra, antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Os alemães viram-se satisfeitos com o resultado do treinamento militar. Franco usou os acontecimentos para culpar os exércitos de esquerda. O mundo mostrou-se estarrecido diante daquela atrocidade. A população do vilarejo perdeu cerca de 40% da sua população. A morte, a destruição, o solo banhado por sangue, foi o resultado concreto diante daquele dia infernal.

Guernica, de Pablo Picasso

Pablo Picasso, um dos maiores pintores do século XX, passara pela Primeira Guerra Mundial sem que se deixasse inquietar por ela. Quando a guerra civil foi deflagrada em seu país, deixou a neutralidade costumeira e solidarizou-se com os republicanos.
A tragédia de Guernica chegou ao pintor, em maio de 1937, quando os jornais publicaram fotografias do bombardeio à aldeia. Picasso sentiu-se profundamente tocado pelo derramamento de sangue do povo basco. Da tragédia, surgiu a inspiração para pintar a mais terrível e genial das suas obras.
Fechado em seu atelier em Paris, o artista criou 45 estudos preliminares, resultando em um painel de 3,50 m x 7,82 m, pintado a óleo, nas cores preta, cinza e branca; ao qual chamou de “Guernica”, feito para ser posto em frente ao pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris de 1937.
Exposta pela primeira em 4 de junho de 1937, menos de dois meses após o bombardeio, a obra era um tenaz registro daquele momento tétrico da história espanhola. O painel trazia uma carga emotiva que inquietava as pessoas, com imagens sombrias, rompendo com qualquer efusão lírica. Na exposição de Paris, o público não percebeu o sentido de retrato tão cáustico, virando as costas ao painel.
“Guernica” despeja as emoções, tornando-as avassaladoras, como se as imagens fossem explosões de colagens cubistas, em um artifício ilusionista. No alto, o painel é dominado pela presença da luz de um olho em forma de lâmpada. As figuras provocam imagens fragmentadas, elucidadas pela violência proposta, numa agonia latente. Rigorosamente, Picasso parece dividir a tela em quatro retângulos, com um triângulo cujo vértice em seu eixo vertical, divide-a em duas partes iguais.
No primeiro retângulo, a angústia e desespero de uma mãe a chorar a morte do filho, como uma trágica Pietá moderna, ladeada por um touro ameaçador com cabeça humana. O touro é uma presença marcante no universo de Pablo Picasso.
No segundo retângulo, o imenso olho luminoso, com uma lâmpada no centro, rasga a dramaticidade exposta, sobre a figura de um cavalo ferido e em disparada. A figura do cavalo centraliza o triângulo já mencionado.
No terceiro retângulo, mais luz vem da lâmpada que uma mulher traz na mão, como se fosse uma alegoria da Estátua da Liberdade. No quarto retângulo, o desespero latente de um homem diante do horror, a levantar os braços ao céu.
Touro e cavalo, animais símbolos da mitologia espanhola, simbolizam a brutalidade e as forças do mal (touro), numa cruel repressão ao povo (cavalo). No chão, um cadáver empunha a espada partida, símbolo da resistência do povo espanhol.
No início rejeitada pelo público, “Guernica” tornou-se com o tempo, a obra que simboliza a repulsa às guerras. Pablo Picasso, em solidariedade com os mortos na tragédia e com o povo espanhol, que lutou contra a ditadura de Franco, ao tornar a sua obra famosa, proibiu que ela fosse exposta em solo ibérico, até que a democracia voltasse ao país. A obra ficou exposta em Nova York, até que, em 1981, voltou à Espanha, já redemocratizada. Desde 1992 encontra-se na exposição permanente do Museu Reina Sofia, em Madrid.
Reza a lenda que, em 1940, quando a França estava sob a ocupação nazista, um oficial alemão, diante de uma fotografia reproduzindo o painel, em uma exposição, em Paris, perguntou a Picasso se tinha sido ele quem fizera tão horrível obra, ele respondeu: “Não, foram vocês!

Pablo Picasso

Um dos mais geniais mestres da arte do século XX e de todos os tempos, Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso, nasceu em Málaga, na Espanha, em 25 de outubro de 1881.
O pai, um pintor medíocre, teria sido uma influência para que o talento de Picasso fosse despertado. Aos treze anos, já atingia a perícia do pai.
Após passar por Barcelona, chegou a Madrid, em 1897, onde se instalou em um atelier e inscreveu-se na conceituada Real Academia de Belas-Artes de São Fernando. Sua estadia em Madrid seria interrompida quando o artista adoeceu, em julho, com escarlatina. Para convalescer, retornou à Barcelona, onde vivia a família.
Em 1900, levado pelo sonho de conhecer Paris, ele partiu para a capital francesa. Seria ali que Picasso iria ascender para a fama, tornando-se um dos maiores artistas do século que despontava.
As obras de Picasso não se resumem somente à pintura, constam esculturas e cerâmicas. Ao lado de Georges Braque, é considerado o fundador do Cubismo. Pablo Picasso viveria grandes amores e intensamente. Morreu aos 91 anos, em Mougins, riviera francesa, em 8 de abril de 1973. Produziu suas obras até o último instante, não se deixando perder a inspiração pela velhice.

Algumas Obras de Pablo Picasso

1899 – Auto-Retrato
1901 – Absinto (Rapariga no Café)
1901 – A Morte de Casagemas
1901 – Evocação – O funeral de Casagemas
1901 – A Maternidade
1903 – Velho Guitarrista Cego
1903 – Miseráveis Diante do Mar
1903 – A Vida
1904 – Mulher Passando a Ferro
1904 – Retrato de Suzanne Bloch
1905 – Auto-Retrato com Capa
1905 – Rapaz com Cachimbo
1905/1906 – Fernanda com um Lenço Preço
1906 – Vasilhas
1907 – Mulher com Leque
1907 – Jovem Nu (Jovem Rapaz com Braços Levantados)
1907 – Lês Demoiselles d’Avingnon
1908 – Banho
1908 – Três Mulheres
1908 – Composição com Crânio
1909 – Garrafa, Jarra e Frutas
1914 – Vaso sobre a Mesa
1931 – Mulher Loira
1932 – La Lecture (Woman Reading)
1933 – Minotauro, Bebedor e Mulheres
1937 – Guernica
1941 – Dora Maar au Chat
1944 – O Tomateiro
1960 – Mulher Sentada num Cadeirão
1965 – Lagosta e Gato
1969 – Arlequim com Batom
1971 – Busto de Mulher


A LEI DO DESEJO

outubro 30, 2009

Um dos filmes mais instigantes e transgressores da obra de Pedro Almodóvar, “A Lei do Desejo” (La Ley Del Deseo), é uma ode à paixão e ao sexo, levados ao extremo. Provocante, marginal, underground, o filme encerra a fase mais criativa e cáustica do diretor espanhol. A partir de então, Almodóvar conquistaria fama mundial, lapidaria a sua obra, perdendo a linguagem crua que permeava com humor corrosivo as suas personagens.
O filme traz uma galeria de personagens complexos, labirínticos nas suas identidades e segredos. Todos eles são movidos pela verve do sexo, atirando-se ao precipício latente do desejo. Tina (Carmen Maura), mulher doce e passional na sua essência, é no reflexo do seu espelho um homem sofrido, que quando criança foi sexualmente molestado pelo pai. Para viver esta paixão incestuosa, submeteu-se a uma cirurgia para mudar de sexo, tornando-se um transexual. Pablo (Eusebio Poncela), irmão de Tina, é um bem-sucedido diretor de teatro e cinema. No seu vazio, usa da cocaína para fugir às verdades dos sentimentos, nutre uma paixão pelo belo Juan (Miguel Molina), mas não é correspondido em seu esplendor. Finalmente Antonio (Antonio Banderas), um jovem impulsivo à procura da sua identidade, luta contra a sua homossexualidade, mas se deixa levar pela paixão, logo transformada em obsessão, por Pablo. E num contexto passional, repleto de ciladas e armadilhas sentimentais, que se forma o triângulo fatal entre as três personagens, envolvidas nos impulsos irresistíveis do sexo e da paixão.
Nunca a temática homossexual, comum na obra de Almodóvar, foi tão explicitamente exposta por ele. Nunca o amor foi tão arrancado a unha em sua verve dilacerante como aqui. Os sentimentos labirínticos são extraídos à flor da pele, conduzindo a platéia a um retumbante final, deixando-a sem fôlego. Nunca Antonio Banderas foi tão maliciosamente inocente, passional, eloqüente e sincero como ator como aqui, mantendo-se anos luz da imagem do machão latino que desenvolveria no cinema norte-americano. Nunca a tragédia do amor derrubou tanto os preconceitos como em “A Lei do Desejo”.
O filme não é considerado o melhor de Pedro Almodóvar, mas é um dos mais cultuado por seus admiradores e pelos críticos. Corajosamente ele encerrava a fase underground da sua carreira, deixando o universo da Madri marginal, para conquistar o mundo como um grande cineasta. Última grande parceria com Carmen Maura, que se diluiria em “Mulheres á Beira de Um Ataque de Nervos” (1988), só voltando em “Volver” (2006). “A Lei do Desejo” é, ao longo dos anos, um retrato histórico do cinema de Pedro Almodóvar, e, das carreiras de Antonio Banderas e Carmen Maura. É o diretor na sua mais pura essência criativa.

O Desfile de Estranhos Personagens

O início do filme é já um afronto que prepara a platéia para o que viria. Na primeira cena, um belo rapaz aparece de costas, nu, tocando o seu corpo conforme ordena uma voz. Constrangido, mas pronto para cumprir o seu papel, o rapaz toca-se em gestos obscenos, quase pornográficos. Encerra-se a filmagem e o modelo nu, conta o seu dinheiro. Do outro lado das câmeras, inicia-se, finalmente “A Lei do Desejo”.
As personagens são apresentadas de forma crua, em ambientes dúbios e marginais de Madri. O cineasta Pablo Quintero (Eusebio Poncela) transita pelos bares noturnos, trocando olhares com belos rapazes, movendo-se à cocaína. À sombra de Pablo, surge Antonio Benitez (Antonio Banderas), jovem bonito e impetuoso, que mesmo negando a sua vertente homossexual, masturba-se por banheiros sujos a pensar em ser possuído por um homem.
Do outro lado da cidade, caminha Tina (Carmen Maura) e uma criança, Ada (Manuela Velasco). Um estranho relacionamento de mãe e filha une as duas. Em uma igreja, Tina, ao entoar uma área, revela inesperadamente ao padre, que era o menino que cantava nos corais anos atrás. Conta-lhe a sua mais dilacerante verdade, quando transitava para a adolescência, foi possuída pelo pai. A relação incestuosa de ambos fez com que o casamento dos pais chegasse ao fim. Para viver aquele estranho amor, Tina foi levada pelo pai para o Marrocos, onde foi submetida a uma cirurgia para a troca de sexo. Sim, Tina é um transexual. Ada, a menina, fora adotada por ela.
As personagens contaminam os espectadores com as suas verdades, ditas com um humor cáustico, lancinante, em um cenário barroco. Pablo, Tina e Ada trocam momentos de ternura e amor, formando a família possível dentro do universo de cada um. Exótica, diferente, é o retrato da nova família que os tempos gerou, onde pai e mãe, nem sempre correspondem ao que decretara a natureza, mas os sentimentos.
Tina é solitária, entrega-se à arte, interpretando como atriz o monólogo “A Voz Humana”, de Jean Cocteau. Apega-se a Ada, cuidando da menina desde que a mãe viajara. Curiosamente Carmen Maura interpreta um transexual, e a mãe de Ada é interpretada por Bibi Andersen, um transexual com presença constante nos filmes de Pedro Almodóvar. A pequena Ada nutre uma paixão platônica por Pablo. Bons momentos do filme são vividos por Tina e Ada, como o da performance no palco, em um momento sublime, sendo feita sob a música “Ne me Quitte Pas”, de Jacques Brel, cantada pela voz aveludada da cantora Maysa. Nos créditos do filme, a brasileira aparece ainda com o nome de Maysa Matarazzo.
Pablo, Tina e Antonio, três personagens que se irão entrelaçar em breve, em um encontro explosivo, sensual, inquietante e fatal, como jamais assistiria outra vez o cinema espanhol.

O Amor Obsessivo de Antonio

Pablo é um homem que passeia pelos sentimentos de forma leve, sem neles se perder. Caminha quase que alienado ao que se passa ao seu redor. Jamais soube ou suspeitou do envolvimento de Tina com o pai. Sua máquina de escrever é a sua verdade, dela extrai os textos que tece a sua obra.
Famoso como cineasta, Pablo freqüenta bares noturnos undergrounds, como qualquer homem homossexual de Madri o faz. Ciente do assédio que sofre, é promíscuo e caçador. Intimamente, Pablo é apaixonado pelo jovem e belo Juan (Miguel Molina). Mas Juan está no auge da sua juventude e descobertas, não amando o cineasta com o mesmo ardor. Desvinculando-se de Pablo, o jovem parte para o interior, deixando-o sob as garras da solidão de Madri.
Pablo pensa em Juan, erra pela solidão dos bares da cidade. Será na boca da noite que encontrará Antonio, um jovem envolvente e rebelde. Nutrindo uma atração por Pablo, o rapaz cerca-o decidido. Logo são envolvidos pela atração e sedução mútuas. Mesmo apaixonado por Juan, Pablo aceita o assédio de Antonio. Será ele quem iniciará o jovem na vida sexual entre dois homens. Pedro Almodóvar descreve o encontro em uma cena crua, onde Antonio deixa-se possuir por Pablo sob a dor da penetração. A cena é transgressora, surpreendeu e escandalizou a platéia da década de 1980. Mais tarde, foi motivo de desentendimento entre Antonio Banderas e Almodóvar; por causa dela, o ator tentou impedir que o filme fosse exibido nos Estados Unidos, onde construíra uma imagem de macho latino nas películas de Hollywood. O diretor sentiu-se ultrajado com a tentativa de veto.
Iniciado na vida sexual, apaixonado, extasiado, Antonio era ainda inocente nos amores delicados movidos pela noite. Se para Pablo fora uma agradável noite de sexo, para Antonio fora a entrega, a paixão, o amor incondicional. Mesmo diante da recusa de Pablo, Antonio faz-se presente na sua vida. Faz do amante a sua existência. Torna-se um homem terno, disposto a fazer todas as vontades do amado, cobrindo-o de mimos. Antonio passa a nutrir uma paixão violenta e obsessiva por Pablo, mostrando-se ciumento e impulsivo.
Mas a verdade de Pablo é somente uma, Antonio é uma aventura, nada mais. Juan era o escolhido por ele para caminhar a sua vida. Quando Antonio descobre que o coração do amado está ocupado, preenchido pela inconstância de Juan, ele é acometido pela sombra negra do ciúme.
Antonio parte de Madri, rumando ao encontro de Juan. No interior, ele seduz aquele que lhe parecia o maior rival. Antonio quer saber tudo sobre os sentimentos de Pablo, inclusive como ele se sentia ao possuir Juan. Antonio é o próprio Pablo, vestindo inclusive uma camisa igual a do amado. Movido pelo ciúme, Antonio atrai Juan para uma cilada fatal. Num ato de fúria, empurra o rival no precipício, lançando-o em um vôo mortal. Antes de cair, Juan agarra-se a Antonio, arrancando-lhe o bolso da camisa. Aquela seria a pista que levaria a polícia a chegar a Pablo, que se tornaria o principal suspeito.

A Paixão Vivida ao Extremo

Pablo tinha ido ao encontro de Juan, quando soube da sua morte. Até então, ele não levara Antonio a sério. Começa a suspeitar que o jovem amante era capaz de tudo por seu amor, inclusive matar. Transtornado, ele sofre um acidente quando dirigia o automóvel.
Pablo permanece algum tempo no hospital. Enquanto convalesce, é visitado por Tina. A irmã revela que está apaixonada, que encontrara o homem da sua vida. Pablo não suspeita que o homem misterioso é Antonio. Excluído da vida do amante, o jovem decide fechar o círculo, seduzindo Tina. Em um momento exuberante, Carmen Maura conduz uma apaixonada Tina. Sua interpretação foge da caricatura e do estereótipo que se desenvolve em torno de personagens transexuais. A atriz é perfeita, vivendo um dos maiores desafios da sua carreira. Uma cena antológica do filme é quando Tina caminha com Ada pelas ruas de Madrid, numa noite quente de verão. Ao passar por um jardineiro que molha a rua, vira-se para ele e pede: “Rega-me! Rega-me!
Quando Pablo deixa o hospital, a verdade vem à tona. Era Antonio o amor de Tina. Desesperado, ele entra em pânico, pois só consegue ver no rapaz o assassino, longe do amante que fora. Antonio vê-se cada vez mais sem saída. Em breve seria perseguido e preso pela morte de Juan. Num gesto desesperado, ele usa Tina como refém, forçando um encontro com Pablo.
O filme atinge o seu clímax quando Antonio, armado e decidido, consegue ficar sozinho com Pablo. Do lado de fora do prédio, a polícia e a imprensa fecha o cerco. Acossado, Antonio põe a arma atrás da calça jeans, abraça-se a Pablo e começa a dançar com ele. Revela-se mortalmente apaixonado. Tudo fizera para ter aquele momento de amor com Pablo, e mais o faria, se preciso fosse. Não importava o mundo lá fora. Naquele momento Antonio entregava-se ao seu verdadeiro universo. Quebrara todas as regras, infringira todas as leis, para viver apenas a lei maior do desejo.
Pablo comove-se com a paixão de Antonio. Tardiamente descobre a força do amor daquele jovem impetuoso. Juntos descortinam as ciladas dos sentimentos. Entregam-se como dois amantes ternos e apaixonados. Nos braços de Pablo, Antonio conseguira o seu momento de felicidade e plenitude. Já não precisava de mais nada. Deixa o amante na cama e volta para a sala. Pablo desperta do torpor pelo barulho do disparo de um tiro. Corre até a sala e encontra Antonio no chão, coberto de sangue, morto. Ele desespera-se. Perdera Juan, perdera Antonio, ambos tragados pela lei do desejo. Pablo chora a morte do mais estranho e intenso amante que já tivera. Num gesto de fúria, pega a máquina de escrever e a atira pela janela. Diante daquele ato, a polícia decide invadir o apartamento. Apoteoticamente, Pedro Almodóvar encerrava o filme e a primeira fase do seu cinema.

Ficha Técnica:

A Lei do Desejo

Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 1986
País: Espanha
Gênero: Comédia, Drama, Romance
Duração: 102 minutos / cor
Título Original: La Ley Del Deseo
Roteiro: Pedro Almodóvar
Produção: Miguel Ángel Perez Campos e Agustín Almodóvar
Música: Bernardo Bonezzi, Pedro Almodóvar, Fred Bongusto, Fany McNamara e Maysa Matarazzo (Ne me Quitte Pas)
Direção de Fotografia: Angel Luís Fernández
Direção de Arte: Javier Fernández
Decoração de Set: Ramón Moya
Figurino: José Maria de Cossio
Maquiagem: Jorge Hernández, Juan Pedro Hernández e Teresa Matías
Edição: José Salcedo
Efeitos Especiais: Reyes Abades
Som: Jim Willis
Estúdio: El Deseo S.A.
Distribuição: Paramount Home Entertainement
Elenco: Eusebio Poncela, Carmen Maura, Antonio Banderas, Miguel Molina, Fernando Guillén, Manuela Velasco, Nacho Martinez, Bibi Andersen, Helga Liné, Germán Cobos, Fernando Guillén Cuervo, Marta Fernández Muro, Lupe Barrado, Alfonso Vallejo, Muruchi Leon, José Manuel Bello, Augustin Almodóvar, Rossy de Palma, José Ramón Pardo, Juan A. Granja, Angie Gray, Hector Saurint, José Ramón Fernández, Pepe Patatín, Victoria Abril, Pedro Almodóvar
Sinopse: Pablo (Eusebio Poncela), diretor de cinema homossexual, é apaixonado por Juan (Miguel Molina), que não o ama. Na noite madrilena conhece Antonio (Antonio Banderas), que fará de tudo para ter o seu amor, inclusive matar os que se lhe fizerem frente. Tina (Carmen Maura), é irmã de Pablo; nascera homem, mas seduzida pelo pai, fez uma operação para mudar de sexo. Os dois irmãos envolvem-se em um triângulo trágico, onde a lei do desejo conduz os sentimentos em uma história original, intensa e instigante.

Pedro Almodóvar

Considerado um dos maiores cineastas contemporâneos, Pedro Almodóvar Caballero nasceu em 24 de setembro de 1951, em Calzada de Calatrava, na Espanha. Filho de família humilde, rumou para Madri logo cedo, exercendo várias profissões, entre elas a de funcionário da companhia telefônica da Espanha.
Em Madri, Pedro Almodóvar circulava pelos ambientes undergrounds da cidade, onde colheria material suficiente para desenvolver e explorar futuramente em seus filmes. Homossexual assumido, enveredou pelos meandros da vida artística, atuando como ator e como cantor de uma banda de rock, na qual se apresentava travestido.
Mas foi como diretor de cinema que Almodóvar se iria tornar um nome consagrado em todo o mundo. Seus filmes, inicialmente, traziam uma linguagem crua, um humor cáustico e corrosivo, repletos de personagens transgressoras. Na primeira fase da sua carreira, iniciada com “Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón”, revela um universo que desconstroi o caráter das personagens, em situações exóticas e surpreendentes. A atriz Carmen Maura é a grande musa desta fase, que revelaria também, o ator Antonio Banderas.
Em 1987, os filmes de Pedro Almodóvar ultrapassaram as fronteiras da Espanha, chegando a Portugal, onde ganhou com “Matador” o prêmio maior do festival Fantasporto. A partir de então sua obra passou a ser vista internacionalmente. O grande sucesso internacional viria em 1988, com “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos”, indicado para o Oscar, inaugurando uma nova fase da sua filmografia.
Pedro Almodóvar é um diretor polêmico, amado e cultuado em todo o mundo. O seu filme “Tudo Sobre a Minha Mãe” (1999), finalmente arrebataria o Oscar. Grandes atores e atrizes sonham em ser dirigidos por ele. Mas o diretor costuma eleger os seus favoritos, tendo três musas distintas em fases diferentes: a já citada Carmen Maura, Victoria Abril e Penélope Cruz. Sua obra é sempre uma agradável surpresa. Suas personagens trazem uma bomba pronta a ser detonada no centro dos costumes.

Filmografia de Pedro Almodóvar:

Longa Metragem

1980 – Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón (Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo)
1982 – Laberinto de Pasiones (Labirinto de Paixão)
1983 – Entre Tinieblas (Negros Hábitos)
1984 – Qué He Hecho Yo Para Merecer Esto? (Que Fiz Eu Para Merecer Isto?)
1986 – Matador (Matador)
1987 – La Ley Del Deseo (A Lei do Desejo)
1988 – Mujeres al Borde de Un Ataque de Nervios (Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos)
1990 – Átame! (Ata-me!)
1991 – Tacones Lejanos (Saltos Altos)
1993 – Kika (Kika)
1995 – La Flor de Mi Secreto (A Flor do Meu Segredo)
1997 – Carne Trémula (Carne Trêmula)
1999 – Todo Sobre Mi Madre (Tudo Sobre a Minha Mãe)
2002 – Hable Con Ella (Fale com Ela)
2004 – La Mala Educación (Má Educação)
2006 – Volver (Volver)
2009 – Los Abrazos Rotos

Curta Metragem

1974 – Film Político
1974 – Dos Putas, O Historia de Amor Que Termina en Boda
1975 – La Caída de Sódoma
1975 – Homenaje
1975 – El Sueño, o la Estrella
1975 – Blancor
1976 – Tráiler de “Who’s Afraid of Virginia Woolf?”
1976 – Sea Caritativo
1976 – Muerte en la Carretera
1977 – Sexo Va, Sexo Viene
1978 – Folle… Folle… Fólleme Tim!

Média Metragem

1978 – Salomé
1985 – Trailer Para Amantes de Lo Prohibido (TV)

Participações Como Ator

1978 – Tiempos de Constitución
1980 – Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas Del Montón (Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo)
1982 – Laberinto de Pasiones (Labirinto de Paixão)
1983 – Entre Tinieblas (Negros Hábitos)
1984 – Qué He Hecho Yo Para Merecer Esto? (Que Fiz Eu Para Merecer Isto?)
1986 – Matador (Matador)
1987 – La Ley Del Deseo (A Lei do Desejo)
1991 – Truth or Dare / In Bed With Madonna (Na Cama Com Madonna)


PSICOSE

agosto 25, 2009
O cinema contemporâneo gerou vários clássicos ao longo dos anos, sendo que a maioria deles girava em torno de uma bela história de amor ou da vida de heróis da história, reais ou imaginários. “Psicose” (Psycho), de Alfred Hitchcock, foge aos padrões do cinema épico, das grandes histórias de amor, sendo um filme de suspense, denso, intrigante, que gera um mal estar apreensivo em quem o assiste. Mesmo com os ingredientes que subvertem os padrões dos grandes filmes, “Psicose” conquistou as platéias, arrebatou fãs no mundo inteiro, sendo unanimidade de crítica e de público, tornando-se um dos mais cultuados filmes de todos os tempos.
Os elementos de suspense tecem uma trama psicológica eletrizante, que prende e surpreende a platéia. Nunca a parte negra da alma humana foi tão claramente explorada, onde a imagem traz todos os elementos que constroem as mentes das personagens, repletas de nuances da moral corrompida e sem volta.
O filme foi baseado numa novela de Robert Bloch, um autor de livros populares e sem valor literário. Alfred Hitchcock comprou anonimamente os direitos autorais do livro, pagando entre nove e onze mil dólares, conforme a versão. Quando o mestre do suspense apresentou o projeto de adaptação da história de Robert Bloch, encontrou a resistência dos produtores da Paramount, que se recusaram a investir em uma literatura considerada vulgar. Diante da recusa, Hitchcock decidiu ele próprio produzir o filme. Depois de adquirir os direitos, ele comprou todas as cópias disponíveis no mercado, evitando que fosse lido pelas pessoas, o que contribuiu para que o suspense e o desfecho do filme não fossem revelados.
Psicose” foi contestado por grandes produtores não só por provir de um folhetim, mas inclusive pelo título, que era considerado bizarro e com poucos atrativos para atrair grandes públicos. Hitchcock seguiu a sua intuição e genialidade, produzindo uma obra-prima do cinema mundial. Cenas antológicas, como o assassínio da personagem de Janet Leigh debaixo do chuveiro, ainda hoje mexem com a sensibilidade de quem o assiste.
Psicose” é composto essencialmente por sua fabulosa galeria de imagens, que imprimem as verdades e os perigos em volta das personagens. A sensação é de que o perigo iminente vai saltar às costas das personagens a qualquer momento, trazendo um juízo final para os seus pecados. Ninguém fica imune à história que se apresenta entre as sombras da mente.
Estreado nos cinemas norte-americanos em 1960, “Psicose” continua a ser um dos filmes mais assistidos no mundo. Várias seqüências foram feitas a partir dos anos oitenta. No fim da década de noventa, uma nova versão chegou às telas. Mas nenhuma conseguiu arranhar ou superar o original. “Psicose” é daquelas obras-primas intocáveis, definitivas, uma jóia que dá brilho ao verdadeiro cinema.

O Desfalque de Marion Crane

A novela de Robert Bloch revelava-se fraca, trazia uma boa história, mas mal contada. Coube a Alfred Hitchcock, através da imagem, dar a dimensão exata de uma história surpreendente. A verdadeira alma de cada personagem foi revelada diante da câmera do mestre do suspense.
Ao assumir a produção do filme, Hitchcock contou com um orçamento de oitocentos mil dólares. Diante das limitações orçamentárias, o diretor britânico não contratou grandes estrelas. Utilizou uma equipe de atores com a qual já trabalhava em sua série de televisão, apresentada pelos canais norte-americanos.
Várias atrizes foram cotadas para fazer o papel de Marion Crane, entre elas Lana Turner, Piper Laurie, Eva Marie Saint, Hope Lange e Martha Hyer. Todas elas louras e magras, uma imagem constante nas heroínas do velho mestre. Mas a escolha final recaiu sobre a bela Janet Leigh, que encontraria em Marion Crane, a sua personagem definitiva no cinema.
Marion Crane (Janet Leigh) vive uma vida normal, é secretária de uma imobiliária em Phoenix, no Arizona. Mulher bonita, profissional exemplar, ela vive um romance com o jovem Sam Loomis (John Gavin). Com o amante ela vive momentos ternos e apaixonados. Uma das cenas mais bonitas do filme é o momento de amor entre o jovem e belo casal. Apesar de não revelar a nudez dos atores, o momento é de um erotismo implícito, considerado ousado para 1960. Hitchcock tinha dito a Janet Leigh que tocasse no rosto de John Gavin como se saísse de um ato sexual. Tranqüilizou a atriz, dizendo que já tinha preparado o ator para a cena. Quando a bela tocou o seu companheiro de cena, uma ereção involuntária do ator constrangeu e divertiu a equipe. Mais tarde, Janet Leigh soube que John Gavin não tinha sido avisado do gesto mais íntimo da cena.
Mas nem tudo era claro na mente da bela Marion Crane. Momentos sombrios de ingenuidade ambiciosa contrastavam com uma inteligência privilegiada. Muito em breve, o lado obscuro da jovem irá urdir um grande golpe. A oportunidade de liberar a sua consciência da moral estabelecida, acontece quando, certo dia, testemunha um grande negócio do patrão, que recebe quarenta mil dólares em dinheiro. Naquela tarde, uma sexta-feira escaldante, Marion não resiste, decide desfalcar o dinheiro do patrão, sonhando poder desfrutá-lo com o amante, Sam Loomis.
A mente de Marion Crane age rapidamente depois de roubar o dinheiro. Pede licença ao patrão para sair mais cedo. Ela deixa a imobiliária levando o pacote com os quarenta mil dólares. Sabia que o desfalque só iria ser descoberto na segunda-feira. Teria o fim de semana para fugir. Decide partir para a cidade de Fairvale, na Califórnia, onde se encontra Sam. A bela mulher segue no seu carro, ao encontro do amado.

Morte no Chuveiro

A estrada que Marion Crane segue parece infindável, perdida nos desatinos do destino. Após dirigir o dia inteiro, a jovem sente-se exausta. É movida pelo objetivo de não ser apanhada, pela vantagem de dois dias do seu crime e da descoberta dele. Seguiria ainda alguns quilômetros, quando ao cansaço junta-se uma chuva torrencial. Sem visibilidade na estrada, ela procura um lugar para parar. É subitamente atraída por um letreiro que dizia “Motel Bates”. Parecia o local ideal para que pudesse descansar e esperar a chuva passar. A bela foragida dirige-se para o motel.
As imagens do Motel Bates trazem um ambiente sombrio. O estabelecimento ficara isolado após um desvio feito na Auto Estrada, quase desaparecendo. Tudo parece decadente, revelando uma atmosfera de mistério e perigo velado. Marion é recebida por Norman Bates (Anthony Perkins), um jovem simpático, mas de um olhar sombrio e estranho. Ela registra-se com o nome falso de Marie Samuels. De repente o encontro com Bates parece um ato de redenção diante da moral do mundo. Gentilmente, o rapaz conversa com a hóspede. Fala sucintamente da vida, das suas armadilhas. Mostra-se um jovem tímido, dominado pela mãe, uma mulher velha e doente, de quem cuida.
Naquele momento já o remorso acomete a alma da fugitiva. De repente já não fazia sentido os quarenta mil dólares, a fuga, o desfalque. A conversa com Norman Bates é ambígua na determinação do destino de Marion Crane, através dela, decide voltar no dia seguinte e devolver o dinheiro. O que ela não sabe é que mergulhara numa estrada sem volta, e a vida já não lhe dará tempo para consertar os erros. Da janela do seu quarto, ela houve a voz de uma mulher velha, que parecia discutir severamente com o filho.
Marion hospeda-se no apartamento número 1. As imagens dão uma sensação claustrofóbica de que se está a ser observado. Esta sensação é confirmada quando Norman Bates remove um quadro da parede, através dele observa a bela mulher a despir-se, dirigindo-se para o banheiro.
O banho de chuveiro de Marion Crane entraria para a história do cinema, produzindo uma das mais antológicas cenas da sétima arte. De costas para a porta, ela deixa a água escorrer sobre o corpo, não percebendo quando alguém entra. De repente volta-se para a cortina de plástico do banheiro, que se abre bruscamente por uma sombra gigante, trazendo uma faca na mão, erguida no ar. Marion Crane lança um grito de pânico. Ao som de uma trilha sonora que se tornaria clássica, feita por Bernard Herrmann, assistimos a jovem a ser brutalmente esfaqueada. Aos poucos a vida abandona a mulher, que se deixa ir caindo na banheira, até que tomba completamente, sem vida.
A cena do chuveiro é a mais complexa de “Psicose”, tão importante que foi o motivo do filme ter sido rodado em preto e branco, pois Hitchcock temia que a cena ficasse muito chocante se feita colorida, perdendo-se na quantidade exacerbada do sangue que se jorrou.
Janet Leigh não estava nua na cena, trazia uma roupa colante à pele. Para dar maior veracidade, foi contratada uma dublê, que fez as cenas de nudez necessárias para que ficassem mais realistas.
Para que os jatos de água fossem captados pela câmera com maior intensidade, foi utilizado um chuveiro de dois metros de diâmetro, filmado de baixo para cima. Como era a preto e branco, foi utilizada calda de chocolate para simular o sangue, e, o barulho das facadas vinha de um melão sendo esfaqueado.
Mas o clima que transformaria esta cena em uma das mais famosas do cinema, só foi adquirido graças à música de Bernard Herrmann, elemento essencial de tensão e suspense durante o assassínio de Marion Crane. A cena da sua morte no chuveiro utilizou setenta diferentes posições de câmeras, levando sete dias para ser filmada. Desde então, um simples banho de chuveiro jamais foi o mesmo no imaginário das pessoas.
O corpo de Marion Crane é enrolado pelo assassino na cortina de plástico do banheiro, sendo carregado para o porta-malas do carro. Assim, a vítima é jogada com o seu carro dentro de um pântano. Resta a quem assiste ao filme uma pergunta, quem matou a infeliz mulher? Norman Bates? Ou a sua possessiva mãe?

Outra Morte no Motel Bates

Após a morte de Marion Crane, entra em cena uma outra protagonista, Lila Crane (Vera Miles), irmã da jovem assassinada. Será ela quem procurará pela morta. Lila suspeita que Sam Loomis é o responsável pelo desaparecimento misterioso da irmã. Uma semana depois, ela procura o rapaz em Fairvale. Juntos, eles irão desvendar a morte de Marion.
Outra personagem chave é introduzida na trama, Milton Arbogast (Martin Balsam), contratado pelo patrão de Marion, que ao dar pelo golpe, tenta, através dos seus serviços de detetive, recuperar o dinheiro roubado. Ao perceber que as pessoas mais próximas à fugitiva estão preocupadas com o seu desaparecimento, Arbogast passa a investigar os motéis que tinham no caminho que ela teria usado. Após uma investigação minuciosa, ele chega ao Motel Bates.
Norman Bates nega que tenha recebido hóspedes na ocasião do desaparecimento de Marion . Arbogast descobre que ele mentiu, ao verificar o registro de hóspedes. Deduz que ela se registrou com o nome falso de Marie Samuels. Até aquele momento, Sam Loomis era o principal suspeito do desaparecimento de Marion. De uma cabine telefônica, o detetive avisa Lila que Sam é inocente.
Obstinado a descobrir a verdade, Arbogast volta ao Motel Bates. Cenas eletrizantes mostram os seus passos a subir as escadas que dão para o segundo andar da misteriosa e sombria casa onde Norman Bates vive com a mãe. Mas o detetive é descoberto, sendo atacado e morto pela mesma pessoa misteriosa que assassinara alguns dias antes Marion Crane.

A Mãe de Norman Bates

O silêncio repentino de Milton Arbogast incomoda Lila Crane e Sam Loomis. Decidido a desvendar o desaparecimento da amada, Sam vai até o Motel Bates, à procura de uma pista, inclusive de Arbogast. Volta frustrado, pois não encontrou ninguém, a não ser uma senhora idosa e doente, à janela do segundo andar da casa.
Cansados de percorrerem pistas sem saídas, Sam e Lila decidem procurar o xerife do lugar, Al Chambers (John Mclntire). O xerife, ao ouvir os forasteiros, telefona para Norman Bates, querendo informações sobre o detetive Arbogast. Norman afirma que o detetive esteve no motel, a fazer algumas perguntas, mas se retirou em seguida, não voltando mais.
O mistério vai seguindo um novelo psicologicamente labiríntico. Norman Bates diz à mãe que ela terá que mudar para o porão. Nunca é mostrado o rosto da senhora Bates. Algumas vezes se lhe ouve a voz. Nesta encruzilhada do filme, o rapaz tímido e submisso à mãe é praticamente inocentado pelo espectador, e a mãe declarada a culpada. Quase que se deduz que o pobre rapaz protege uma mãe assassina.
Chambers diz a Lila e a Sam que não encontrou ninguém no motel, além de Norman Bates. Insatisfeitos com as investigações, os jovens decidem voltar ao motel, pois têm a certeza de que lá irão encontrar as pistas que Arbogast havia descoberto e, misteriosamente desaparecido logo a seguir.
Sam e Lilá alugam um quarto no Motel Bates, registram-se como marido e mulher. Enquanto Norman Bates é distraído por Sam, Lila investiga o motel. No quarto número 1 descobre vestígios da presença da irmã. Lila segue para os compartimentos da casa, já com a certeza de que Marion ali esteve.
Ao perceber o ardil do casal, Norman Bates reage com violência, agredindo Sam, deixando-o no chão. Desesperado, ele corre na direção da casa misteriosa, procurando por Lila Crane nas dependências onde estava. Ao pressentir a aproximação do rapaz, a jovem esconde-se, sem saber que está preste a desvendar o maior segredo do filme. Lila parece ouvir a voz de uma senhora. Certa de que encontrará a senhora Bates, ela vai até o porão. Ao entrar, percebe uma senhora sentada em uma poltrona, virada de costas. Quando se aproxima, a cadeira gira e revela não uma velha senhora, mas um corpo mumificado. Era a mãe de Norman Bates.
Lila solta um grito de terror ao ver tão repugnante cadáver. A luz pendurada no teto do porão balança. Surge um vulto, com o braço levantado, trazendo uma faca, pronta para ser cravada no corpo da jovem intrusa. Está vestido de mulher, mas não era uma mulher. Era Norman Bates, encarnando a personalidade da mãe. Já pronto para assassinar Lila, Bates é impedido por Sam, que lhe segura por trás. Enlouquecido, Norman Bates entra em convulsão, caindo no chão. O seu segredo está desvendado, e com ele, todo o mistério do filme.

A Imagem e a Mente

A tragédia e loucura de Norman Bates é explicada por um psiquiatra na corte do condado. A psicanálise fascinava Alfred Hitchcock, aqui o recurso psicológico dá credibilidade à história, tornando-a complexa, distante da linearidade do livro de Robert Bloch.
Na voz do psiquiatra é feita a revelação da vida de Norman Bates. O jovem estranho, angustiado e solitário, tinha tido um amor incestuoso e possessivo pela mãe. Quando ela arrumou um amante, Norman não suportou, cego pelo ciúme e pela cólera ao ver os dois juntos na cama, ele os envenenou. Sua mente doentia fechou-se em um mundo estranho, onde ele fantasiava ser a própria mãe, vivendo e vestindo-se como ela. No inconsciente da sua mente, ele matava todas as mulheres por quem tinha interesse, como se fosse a mãe a matá-las por ciúmes. Ao voltar do momento do crime, era tomado pelo remorso e pela culpa diante do horror cometido pela “mãe”. Após cada assassínio, ele conversava com a mãe, travando fervorosas discussões. Assim, Norman Bates não matou Marion Crane e Milton Arbogast. Foi a mãe que ele criara na mente quem o fizera.
A última cena do filme mostra o carro de Marion Crane sendo retirado de dentro do pântano. Na mala está o corpo da jovem e quase quarenta milhões de dólares.
Encerra-se um dos mais complexos e brilhantes filmes de todos os tempos. Norman Bates perseguiu para sempre a carreira de Anthony Perkins, tendo ele voltado nos anos oitenta, a interpretar a personagem em filmes de seqüência, pouco expressivos e sem valor estético e artístico como o original. Anthony Perkins jamais despiu o espectro de Norman Bates, sendo a ele associado durante toda a sua carreira.
Janet Leigh não aparece em todo o filme, mas a cena da morte de Marion Crane foi a maior da sua carreira. Foi indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante e ao Globo de Ouro, na mesma categoria.
Alfred Hitchcock, que aparece no filme usando um chapéu de cowboy, faturou prestígio e cinqüenta milhões de dólares nas bilheterias. “Psicose” foi eleito pelo American Film Institute (AFI), como o 18º melhor filme de todos os tempos. É tido como o maior e mais estético do gênero de suspense. É cultuado em todo o mundo por milhares de pessoas. Uma obra prima do cinema!

Ficha Técnica:

Psicose

Direção: Alfred Hitchcock
Ano: 1960
País: Estados Unidos
Gênero: Suspense
Duração: 107 minutos / preto e branco
Título Original: Psycho
Roteiro: Joseph Stefano, baseado no livro de Robert Bloch
Produção: Alfred Hitchcock
Música: Bernard Herrmann
Direção de Fotografia: John L. Russell
Direção de Arte: Robert Clatworthy e Joseph Hurley
Figurino: Rita Riggs e Helen Colvig
Edição: George Tomasini
Efeitos Especiais: Clarence Champagne
Estúdio: Shamley Productions
Distribuição: Paramount Pictures
Elenco: Anthony Perkins, Janet Leigh, John Gavin, Vera Miles, Martin Balsam, John Mclntire, Simon Oakland, Vaughn Taylor, Frank Albertson, Lurene Tuttle, Patrícia Hitchcock, John Anderson, Alfred Hitchcock
Sinopse: Secretária (Janet Leigh) rouba 40 mil dólares para se casar. Durante a fuga, pára em um velho motel, onde é amavelmente atendida pelo dono (Anthony Perkins), mas escuta a voz da mãe do rapaz, dizendo, que não deseja a presença de uma estranha. Mas o que ouve é na verdade algo tão bizarro, que ela não poderia imaginar que não viveria para ver o dia seguinte.

Alfred Hitchcock

Considerado um dos maiores e dos mais geniais diretores de cinema de todos os tempos, Alfred Joseph Hitchcock nasceu em Londres, na Inglaterra, em 13 de agosto de 1899.
Nascido em uma família humilde, o pai, William Hitchcock, vendia frutas e verduras. Ele e os dois irmãos receberam uma rígida educação católica. Os dogmas do catolicismo foram várias vezes questionados psicologicamente em alguns dos seus filmes. Devido à morte do pai, quando tinha 14 anos, foi obrigado a deixar o colégio jesuíta que freqüentava, indo trabalhar como fabricante de cabos na companhia Henley, onde desenvolveu trabalhos de publicidade e design gráfico.
A carreira de Alfred Hitchcock no cinema começou em 1920, quando começou a trabalhar na Famous Players-Lasky, da Paramount Pictures, onde fazia os quadros que apareciam os diálogos do cinema mudo. Ali aprendeu a criar roteiros e a editar filmes. Já em 1922, realizava o seu primeiro filme, “Number 13”, que não chegou a ser concluído. No ano seguinte, foi para Berlim, onde trabalhou na UFA (Universum Film AG), até 1925. Foi neste estúdio que ele realizou o primeiro filme completo, “The Pleasure Garden”, em 1925.
O primeiro grande sucesso viria com “The Lodger: A Story of the London Fog” (O Pensionista), filme de 1927, que se baseava nos crimes de Jack, o Estripador. Era o começo da sua imersão no mundo do suspense. Foi neste filme que fez a primeira aparição em cena, fato que se tornaria uma característica da sua obra.
Viria das mãos de Hitchcock o primeiro filme sonoro britânico, “Blackmail”, em 1929. No ano anterior, tinha nascido a sua primeira filha, Patrícia, fruto do seu casamento com Alma Reville, sua assistente de direção.
Alfred Hitchcock foi ganhando prestígio no cinema britânico, realizando vários filmes de sucesso. Sua obra chamou a atenção de David O. Selznick, que o chamou para trabalhar em Hollywood. Começava a fase norte-americana da carreira de um cineasta grandioso, que seria amado e cultuado no mundo inteiro. O seu filme de estréia nos Estados Unidos foi “Rebecca”, em 1940, já conseguindo nomeação para o Oscar de melhor filme. Assim, vieram sucessivos grandes filmes, que imortalizariam o cineasta. Em 1955, naturalizou-se norte-americano.
Mestre do suspense, o universo cinematográfico de Alfred Hitchcock suscita análises infindáveis e entretenimento de qualidade, fazendo parte do cinema verdadeiro, que mesmo popular, jamais perdeu a veia da arte. O mestre receberia, em 1980, das mãos da rainha Elizabeth II, a KBE da Ordem do Império Britânico, tornando-se Sir Alfred Hitchcock. Quatro meses após ter recebido a condecoração, em 29 de abril, morreria de insuficiência renal, em Los Angeles.

Filmografia de Alfred Hitchcock:

Longa Metragem

1922 – Number 13
1923 – Always Tell Your Wife
1925 – The Pleasure Garden (O Jardim dos Prazeres)
1926 – The Mountain Eagle
1927 – The Lodger: A Story of the London Fog (O Pensionista)
1927 – Downhill
1927 – The Ring (O Ringue)
1928 – Easy Virtue
1928 – The Farmer’s Wife (A Mulher do Fazendeiro)
1928 – Champagne (Champagne)
1929 – The Manxman (O Ilhéu)
1929 – Blackmail (Chantagem e Confissão)
1930 – Elstree Calling
1930 – An Elastic Affair
1930 – Juno and the Paycock
1930 – Murder! (Assassinato)
1931 – The Skin Game
1931 – Mary
1932 – Rich an Strange (Ricos e Estranhos)
1932 – Number Seventeen (O Mistério no Nº 17)
1933 – Waltzes From Vienna (Valsas de Viena)
1934 – The Man Who Knew Too Much (O Homem Que Sabia Demais)
1935 – The 39 Steps (Os 39 Degraus)
1936 – Secret Agent (Agente Secreto)
1936 – Sabotage (O Marido Era o Culpado)
1937 – Young and Innocent (Jovem e Inocente)
1938 – The Lady Vanishes (A Dama Oculta)
1939 – Jamaica Inn (A Estalagem Maldita)
1940 – Rebecca (Rebecca, a Mulher Inesquecível)
1940 – Foreign Correspondent (Correspondente Estrangeiro)
1941 – Mr, & Mrs. Smith (Sr. e Sra. Smith)
1941 – Suspcion (Suspeita)
1942 – Saboteur (Sabotagem)
1943 – Shadow of a Doubt (A Sombra de uma Dúvida)
1944 – Lifeboat (Um Barco e Nove Destinos)
1945 – Spellbound (Spellbound – Quando Fala o Coração)
1946 – Notorius (Codinome Notorius)
1947 – The Paradine Case (Agonia do Amor)
1948 – Rope (Festim Diabólico)
1949 – Under Capricorn (Sob o Signo de Capricórnio)
1950 – Stage Fright (Pavor nos Bastidores)
1951 – Strangers on a Train (Pacto Sinistro)
1953 – I Confess (A Tortura do Silêncio)
1954 – Dial M for Muder (Disque M Para Matar)
1954 – Rear Window (Janela Indiscreta)
1955 – To Catch a Thief (Ladrão de Casaca)
1955 – The Trouble With Harry (O Terceiro Tiro)
1956 – The Nab Who Knew Too Much (O Homem Que Sabia Demais)
1956 – The Wrong Man (O Homem Errado)
1958 – Vertigo (Um Corpo Que Cai)
1959 – North by Northwest (Intriga Internacional)
1960 – Psycho (Psicose)
1963 – The Birds (Os Pássaros)
1964 – Marnie (Marnie, Confissões de Uma Ladra)
1966 – Tom Curtain (Cortina Rasgada)
1969 – Topaz (Topázio)
1972 – Frenzy (Frenesi)
1976 – Family Plot (Trama Macabra)

Curta Metragem

1929 – Sound Test for Blackmail
1944 – Aventure Malgache
1944 – Bon Voyage
1944 – The Fighting Generation (não creditado)1945 – Watchtower Over Tomorrow (não creditados)


FONTANA DI TREVI – A MAIS GRANDIOSA DAS FONTES

julho 30, 2009

Considerada a mais bela fonte do mundo, a Fontana di Trevi, literalmente traduzida como Fonte dos Trevos, é um dos mais sedutores monumentos de Roma. Sua beleza dimensional feita de água e pedra foi construída sobre o esplendor do barroco italiano. A beleza estética faz desta obra de arte um símbolo das esculturas que adquiriram uma mítica lendária, com linhas tênues entre o fulgor e o monumento, causando uma empatia romântica com todos os cidadãos do mundo, fazendo dele um triunfo do barroco.
A fonte, localizada na freguesia de Trevi, no Bairro do Quirinal, no centro histórico de Roma, desenha a fantasia das suas águas e estátuas aninhadas no centro de um palácio, possuindo vinte metros de largura e cerca de vinte e seis metros de altura. Verdadeira maravilha do mundo, seu esplendor começa quando nos aproximamos ao redor, ouvimos o som crescente das águas, e de repente, estamos diante de uma visão edênica da criação humana, contemplando uma das mais deslumbrantes vistas do planeta. O espaço da fonte abre-se aos olhos do visitante, com a força da água a emanar das pedras, como se adquirisse vida e arrebatasse-nos para um cenário preso na beleza da arte do homem.
Diante da fonte, a primavera é eterna, Netuno rompe a paisagem e a pedra na qual foi esculpido, tornando viva a arquitetura. Vento, luz, sombras, pedra, água, juntam-se como se fosse formado um imenso mar, num cenário intenso e de uma dramaticidade singular.
A Fontana di Trevi, com a sua paisagem espetacular e grandiosidade barroca, dá um toque romântico a Roma, às vezes perdido na concepção dos monumentos históricos intensos, como o Coliseu. É o ponto preferido dos casais apaixonados ou que se apaixonam na Cidade Eterna. É o ponto final da cidade, que se transforma no retorno. Reza a lenda que estrangeiros, forasteiros, turistas, quando visitam Roma, devem jogar uma moeda na fonte para que possam retornar. O ritual é repetido por todos, que assim, garantem a esperança de um dia poder rever Roma, e, principalmente, poder rever a fonte mais bela e romântica do mundo.

Origens da Fonte

A história da Fontana di Trevi remonta à época da Roma antiga. Era uma fonte que estava situada no cruzamento de três ruas, onde se formava um trivium (trevo), o que levou o sítio a ser chamado de Trebium.
O local da fonte marcava o ponto terminal do aqueduto Acqua Vergine, um dos mais antigos abastecedores de água de Roma, que tinha sido encomendado pelo imperador Otávio Augusto a Marcus Agrippa, sendo as suas águas usadas para fornecer água para os banhos termais. As águas que circulam na fonte têm dois nomes, Águas Virgens e Trevi.
Reza a lenda que, no século 19 a.C., alguns soldados sedentos procuravam por água, encontraram pelo caminho uma jovem romana virgem, que se apiedando deles, conduziu-os a uma fonte límpida, de água pura, localizada a cerca de vinte e dois quilômetros da Roma antiga. Através da lenda, surgiu o nome de Águas Virgens. Trevi teria derivado do nome que originalmente era chamado o local, Trebium. No monumento atual da fonte, a cena da lenda da jovem virgem e dos soldados está representada em escultura.
Nos primórdios da história da fonte, as suas águas foram levadas através de um pequeno aqueduto romano, diretamente ao local de banho de Marcus Vipsanius Agrippa, um dos maiores estadistas e generais do Império Romano, a quem se deve a construção do Panteão de Roma e dos seus principais aquedutos. Na Roma antiga, graças aos aquedutos, belas fontes foram erguidas por toda a cidade, contribuindo para a arquitetura clássica e imponente da capital do maior império do mundo.

De Leon Battista Alberti a Bernini, a Composição das Bases da Fonte

A água de Trevi serviu Roma por mais de 400 anos, sendo interrompido o seu abastecimento na época da invasão dos godos, que destruíram os aquedutos da cidade. Após as Guerras Góticas, os habitantes de Roma abasteciam-se da água suja do Tibre, rio que recebia os esgotos humanos, e da água de poços poluídos espalhados pela cidade. Esta condição decorreu durante toda a Idade Média, causando muitos males de saúde a quem usava a água insalubre.
Quando a Renascença assolou os reinos italianos, o esplendor das fontes antigas voltou a fazer parte da arquitetura romana. Em 1453, quando a Idade Média era definitivamente encerrada, o papa Nicolau V determinou que se consertasse o antigo aqueduto de Acqua Vergine. O arquiteto Leon Battista Alberti foi o autor do projeto de reconstrução do aqueduto, dando ao seu final, um receptáculo simples para receber a água, que seria totalmente destruído quando da construção barroca da Fontana di Trevi.
O papa Urbano VIII, em 1629, chegou à conclusão que a simplicidade da velha fonte não condizia com arquitetura romana da sua época, pois não trazia qualquer grandiosidade. Urbano VIII encomendou um projeto a Bernini para a construção de uma nova fonte de Trevi. O célebre artista fez vários desenhos. Neles projetou a reposição da fonte para o outro lado da praça, para que ficasse defronte ao Palácio do Quirinal, o que faria com que o papa pudesse observá-la da sua janela. Com a morte de Urbano VIII, o projeto de Bernini foi abandonado, o que não impediu que a fonte a ser construída futuramente, viesse a trazer muitos detalhes da idéia original do artista.

A Concepção Final da Fontana di Trevi

Após ser reconstruído, o aqueduto Acqua Vergine continuou a funcionar, mas as obras de restauração da freguesia de Trevi, que dariam origem à fonte atual, levariam três séculos para que se concluísse.
Com a morte de Urbano VIII, somente no século XVIII, Clemente XII, então papa, decidiu restaurar Trevi. Para que se realizasse a construção de uma nova fonte, em 1730, Clemente XII organizou uma competição entre artistas e arquitetos. Nicola Salvi, arquiteto romano, foi derrotado na competição, mas foi quem, efetivamente, realizou o projeto da nova Fontana di Trevi, trabalhando nele por quase vinte anos.
Nicola Salvi começou a execução do projeto em 1732. Morreria em 1751, quando ainda trazia o trabalho pela metade, ocultando-o atrás de um gigantesco biombo. Para concluir a obra, foi chamado um jovem artista, Giuseppe Pannini, que fez mudanças significativas no projeto de Nicola Salvi. Do original ele conservou os nichos de cima, que à esquerda traz Marcus Agrippa a dar ordens para que se construa o aqueduto, e à direita, a virgem, chamada de Trívia, a mostrar aos soldados a água de uma fonte subterrânea; abaixo destes relevos, substituiu as estátuas de Agrippa à esquerda, por uma figura feminina, a Abundância, que traz uma cornucópia; e à direita, substituiu a estátua de Trívia pela figura feminina da Saúde ou Salubridade. Finalmente, no nicho central da fonte, foi introduzida a estátua de Netuno com o seu séquito. A obra foi concluída em 1762, logo após a morte do papa Clemente XII.
A atual Fontana di Trevi tem o seu projeto atribuído a Nicola Salvi, sob forte influência dos desenhos de Bernini, e da realização final de Giuseppe Pannini.
A resultado final traz uma obra monumental, com vinte e seis metros de altura, vinte metros de largura, que tem como fundo o palácio Poli, que se harmoniza perfeitamente com a composição da fonte. As estátuas contrastam com a dramaticidade do uso da luz e da sombra. No nicho central está a estátua de um imponente Netuno, escultura de Pietro Bracci, sobre uma carruagem em forma de concha, puxado por dois cavalos marinhos, sendo o da esquerda o cavalo agitado, o da direita o cavalo manso; os animais são conduzidos por dois tritões. Ladeando Netuno, estão mais acima, as alegorias femininas da Abundância, à esquerda, e da Salubridade, à direita, estátuas de Filippo Della Valle. Acima das estátuas alegóricas, os relevos de Agrippa a ordenar a construção dos aquedutos de Roma, à esquerda; e da virgem Trívia a mostrar a fonte de águas aos soldados sedentos, à direita; estes relevos faziam parte da concepção original dos desenhos de Bernini. O todo da obra joga com o espaço e a pedra, dando um aspecto de movimento às estátuas centrais, que ao som constantes das águas que caem, dão a sensação de um imenso mar a encher a piscina.

Lendas de Trevi

A beleza barroca e exuberante da fonte, originou várias lendas ao seu redor, dando assim, um conceito romântico à atmosfera que se desenha à obra. Lendas que envolvem desde a concepção, aos efeitos que o monumento deixa nas pessoas que o visitam.
Uma das lendas mais tradicionais é a escultura de um grande vaso esculpido sobre o muro que circunda a fonte, na esquina com a rua Stamperia. Reza à tradição, que Nicola Salvi, o arquiteto que projetou a fonte, teria posto a escultura propositalmente, devido às rixas com um barbeiro que tinha a sua loja nos arredores da obra, na atual rua Stamperia. Durante os anos que decorreram as obras, Nicola Salvi era sempre confrontado com o tal barbeiro, que tecia comentários negativos à fonte que se desenhava aos poucos, desestabilizando o arquiteto. Para que tão indesejável vizinho não mais o aborrecesse, Salvi pôs à frente da barbearia este vaso, de forma que não pudesse ver os trabalhos.
Lenda ou não, o imenso vaso continua lá. Devido à sua forma, que lembra o ás de copas das cartas de baralho, os romanos batizaram a escultura com o sugestivo nome de Asso di Coppe (Ás de Copas).
Outra lenda diz respeito aos eternos e apaixonados namorados. Do lado direito da fonte, perto da escultura do às de copas, está a conhecida Fontanina Degli Innamoratti (Pequena Fonte dos Apaixonados), que com os seus jorros mágicos, asseguram aos casais apaixonados que juntos beberem da sua água, a fidelidade eterna um com o outro.
Outra lenda romântica afirma que, quando o amado tiver que partir, para a guerra, para servir ao exército, ou por simples viagem de negócios, terá garantido o seu amor eterno, mesmo ausente e distante, se juntos beberem um copo de água da fonte, sendo que este deve ser quebrado logo a seguir. A água mágica da Fontana di Trevi fará com que o homem que partiu jamais se esqueça da amada.
Mas a lenda mais pertinente e tradicional, é aquela que diz, se um estrangeiro ou um forasteiro for a Roma, e apaixonar-se pela cidade ou pela a sua gente, deve antes de partir, ir à Fontana di Trevi, virar-se de costas para ela e jogar uma moeda em suas águas. A volta à Cidade Eterna estará garantida. A lenda é eterna.

Nas Águas da Fonte, a Promesa da Volta a Roma

Roma é tradicionalmente conhecida pela beleza das suas fontes. Três belas fontes barrocas ornamentam a Piazza Navona: a Fontana Dei Quattro Fiume (Fonte dos Quatro Rios), a Fontana Del Moro (Fonte do Mouro), e a Fontana Del Nettuno (Fonte de Netuno), só para citarmos algumas. Mas nenhuma delas tem a tradição mítica da Fontana di Trevi. Nenhuma possui o seu glamour esplendoroso, o seu romantismo oculto e latente.
Em 1960, a fonte foi imortalizada para o mundo pelo cineasta Federico Fellini, no filme “La Dolce Vita” (A Doce Vida). Numa das cenas mais míticas do cinema mundial, a bela Anita Ekberg salta para dentro da fonte, banhando-se de roupa nas suas águas mágicas, aos olhos de um atento e deslumbrado Marcello Mastroianni. Depois do banho sedutor e sensual da atriz, a Fontana di Trevi jamais passou despercebida aos olhares do mundo.
Em 1998 a fonte foi preparada para o ano do jubileu de Roma, que aconteceria em 2000. Foi restaurada, tendo as esculturas lavadas e polidas, recebendo bombas que provinham a circulação da água e a sua oxigenação. A fonte estava pronta para entrar no novo século, no novo milênio, com o mesmo fascínio de sempre.
Quando às segundas-feiras, uma equipe de funcionários da câmara de Roma abre os ralos da fonte, esvaziando as suas águas, limpado a sujeira acumulada, recolhendo em sacos toneladas de moedas de todo o mundo, que serão destinadas aos cofres municipais, normalmente usado na ajuda da conservação do monumento; estes funcionários não estão apenas limpando a fonte, mas o sonho de vários turistas que, quando jogaram as suas moedas na água, levaram consigo a esperança tenaz de um dia voltar a Roma.


CASABLANCA

julho 14, 2009

Casablanca”(Casablanca, Estados Unidos, 1942) é um daqueles filmes que foi gerado em cima de grandes coincidências felizes, tornando-se um dos melhores de todos os tempos. Desenhado em cima de um caos absoluto, o roteiro foi escrito em plena locação, na noite anterior em que as cenas seriam gravadas, confundindo os atores, que não sabiam o resultado final daquela confusão da história que se contava; ainda assim “Casablanca” teria um resultado surpreendente, que conquistaria as platéias do mundo inteiro, tornando-se obrigatório aos apaixonados ou não pelo cinema.
Ladeado de histórias e lendas, “Casablanca” foi gravado em plena Segunda Guerra Mundial, em um momento que os Estados Unidos acabara de entrar na guerra e os nazistas pareciam que iria vencê-la. A sua propaganda de guerra é discreta, mas sugere uma esperança tenaz diante daqueles tempos obscuros, onde o homem é sobrevivente graças às alianças que faz, mas em um mundo que tem o domínio repressivo sobre a liberdade e a vida como prêmios, há sempre um patriotismo velado, que emerge quando o caráter é confrontado.
O amor é o principal veículo para que se descubra o caráter. Ele vem com a sombra da guerra como pano de fundo. É resultado dela. Nunca um casal mostrou-se tão belo, apaixonante e carismático na grande tela, como em “Casablanca”. Ingrid Bergman, no esplendor da sua juventude e beleza, revelou-se com um olhar quente, que suga o espectador na emoção daquele amor movido pela guerra. Humphrey Bogart assume um cinismo inteligente, de uma falsa frieza, que vai dilatando-se diante da beleza e da paixão que sente pela personagem da atriz sueca. A química entre ambos é total, levando a platéia às lágrimas quando um Bogart apaixonado abre mão do seu amor para que ela siga ao lado do marido, dizendo “Nós sempre teremos Paris”. O homem frio torna-se o próprio vulcão da grandeza da alma, abrindo mão do seu único contacto com os sentimentos e com o amor, para que a amada alcance um bem maior, muito além da felicidade imaginada a dois.
Casablanca” tem um roteiro que prende o espectador, tem mistério, amor e guerra como ingredientes básicos. Mas tem, principalmente, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. São os dois que conduzem as emoções e as lágrimas da platéia. A beleza daquele casal, emotiva e física, jamais seria repetida no cinema. A cidade marroquina, o Rick’s Cafe, o pianista Sam, a música “As Time Goes By”, os nazistas, a resistência, a guerra, tudo flui para alçar o esplendor de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, que conquistarão para sempre aqueles que os viram juntos. “Casablanca” é o lugar onde Ingrid Bergman e Humphrey Bogart um dia se encontraram e se perderam. É o espetáculo vivo da verdadeira acepção do que é o cinema. “Casablanca” é cinema puro!

O Caos dos Bastidores

Em 2000 “Casablanca” foi eleito o segundo melhor filme da história do cinema pelo conceituado American Film Institut, perdendo apenas para “Cidadão Kane”. Ao contrário do primeiro lugar, feito por um dos mais geniais cineastas, Orson Welles, “Casablanca” foi concebido como mais um filme dentre os inúmeros que a Warner Bros lançava à época. Feito em estúdio, sem maiores ambições artísticas; e, dirigido por Michael Curtiz, um diretor de origem húngara, especialista em sucessos de aventuras, dono de uma filmografia mediana, sem grandes genialidades. Contrariando todas as expectativas, “Casablanca” tornou-se um clássico do cinema, transformando-se em um dos maiores triunfos de Hollywood.
As filmagens de “Casablanca” são cercadas de estranhas histórias de bastidores, muitas se confundem com a verdade e a mitificação do clássico, gerando uma sucessão de grandes coincidências favoráveis que o transformaram em um dos maiores (se não o maior) romances já levados às telas em toda a história do cinema. Lendas ou verdades, fazem dos bastidores das gravações do filme, uma grandiosidade à parte, que não consegue explicar como, em meio ao caos, surgiu uma história tão sublime.
O primeiro cineasta convidado para dirigir o drama, William Wyler, na época no auge do seu prestígio, declinou ao convite. A bela Hedy Lamarr foi escalada para o papel Ilsa Lund, mas recusou diante das condições oferecidas pelo estúdio, que não tinha um roteiro escrito. Também George Raft declinou ao convite de fazer Richard Blaine. Reza a lenda que o êxito do filme “King’s Row” (1941), de Sam Wood, protagonizado por Ronald Reagan e Ann Sheridan, levou aos empresários da Warner Bros a pensar no casal de atores como protagonistas, tendo Dennis Morgan no papel do herói da resistência tcheca, Victor Laszlo.
Elenco e direção só foram definidos quando a Warner Bros pensou em Michael Curtiz como diretor. Curtiz, um exilado do leste europeu, vinha de grandes sucessos realizados para aquele estúdio, como “Capitão Blood” (1935), “Anjos da Cara Suja” (1938), “Quatro Filhas” (1938), “As Aventuras de Robin Hood” (1938) e “O Lobo do Mar” (1941). Era um realizador mediano, especialista em grandes aventuras que deram o estrelato ao ator Errol Flynn.
Definida a direção, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman foram escalados para protagonistas do filme, transformando-se no mais apaixonado e apaixonante casal do cinema. Paul Henreid relutou em aceitar o papel de Victor Laszlo, temendo comprometer a imagem por considerá-lo um papel pequeno, mas venceu os medos e assumiu um dos melhores papéis da sua carreira.
Os irmãos Julius e Philip Epstein foram chamados para adaptarem livremente, a peça “Everybody Goes to Rick”, de Murray Burnett e Joan Alison. Curiosamente, escreviam os diálogos nos bastidores das filmagens, entregando, durante a noite, as falas que seriam ditas pelos atores no dia seguinte. Segundo boatos de bastidores, a situação aflorava a irritação de Humphrey Bogart, que não sabia o caminho que a sua personagem seguiria no outro dia, o que lhe conferiu o azedume perene na interpretação de Rick Blaine. Mas o estilo mordaz usado pela dupla de roteiristas não agradava aos produtores, que chamaram Howard Koch para escrever o longo flash back que rasga o meio do filme, revivendo os dias felizes de Rick Blaine e Ilsa em Paris. O roteirista redigiu esta parte da trama sem nunca ter lido o que os irmãos Epstein estavam escrevendo, o mesmo acontecendo com os dois irmãos em relação a Koch. Esta intervenção aumentou ainda mais a confusão entre os atores, que se perderam da história, sem saber que rumo tomava o que estavam a filmar.
Mesmo diante do caos das gravações, o filme adquiriu um enredo intocável, de inexplicável coerência criativa. Somando os dois roteiros – dos irmãos Epstein e de Howard Koch – surgiu uma narrativa impressionantemente fluída, quase beirando à perfeição, dando origem ao maior de todos os romances do cinema.

O Reencontro de Rick e Ilsa

Durante a Segunda Guerra Mundial, a cidade de Casablanca, no norte da África, torna-se, diante de uma França ocupada pelos nazistas, um lugar de espionagem e de esperança para os refugiados da guerra, fugitivos do Terceiro Reich, que dali, sonhavam em conseguir documentos para que pudessem assim, chegar a Lisboa, último lugar da Europa longe dos tentáculos de Hitler. De Lisboa, um navio era a última esperança de fuga para a América, longe da guerra.
É nesta atmosfera que se inicia o filme. O americano Rick Blaine (Humphrey Bogart), um homem amargo e cínico, é proprietário do maior bar de Casablanca, o Rick’s Cafe. Rick é um sobrevivente do mundo. Não se envolve ou se deixa comover pelos conflitos gerados pela guerra. Tem uma relação difícil e polida com o chefe de polícia local, o capitão Louis Renault (Claude Rains). Rick deixa que o seu café seja usado para ajudar fugitivos a obterem salva-condutos para Lisboa, fazendo-o não por questões humanitárias, mas mediante lucros com os frequentadores do seu bar.
Rick é um homem que não acredita em amizade verdadeira, não fala no amor e na paixão, parecendo inatingível aos sentimentos, seu cinismo demarca a troça que faz de todos que lhe ladeiam. Homem frio, jamais bebe no trabalho. Mesmo diante do cinismo latente, a personagem traz os mais inteligentes diálogos já escritos para o cinema. Um exemplo é o diálogo travado entre Rick e Ugarte (Peter Lorre), um grande trapaceiro da região:
Você me despreza, não? – Pergunta-lhe Ugarte.
Desprezaria, se pensasse em você. – Responde Rick.
A frase define o caráter cínico, amargo e com um travo de melancolia de Rick Blaine. O motivo de toda a amargura do americano só surge cerca de trinta minutos após o início do filme. Nesses primeiros minutos, várias histórias são cruzadas, esmiuçando o clima que se ergue em Casablanca. Trinta minutos depois, Ilsa Lund (Ingrid Bergman), entra no bar, e o pianista negro Sam (Dooley Wilson) pára de tocar. Ela reconhece o pianista. Nunca o olhar de Ingrid Bergman foi tão penetrante, de uma cumplicidade quente e singela, desarmado ao mundo, tão úmido e brilhante, quando ela pede, pela primeira vez, para ele tocar “As Time Goes By”. Ao ouvir a música, Rick irrita-se, é uma canção por ele proibida. O seu asco sucumbe diante do sinal secreto de Sam, que lhe mostra Ilsa. A platéia vê tudo no olhar de Rick e de Ilsa, que iniciam um reencontro que emocionaria e levaria milhões de pessoas em todo mundo às lágrimas. Tudo se nos é revelado nos olhares de Rick e Ilsa, sem sabermos nada, sem cruzarmos uma única palavra. A cena e os atores revelam um amor penetrante e infinito.

A Canção Imortalizada, Que Foi Utilizada no Filme por Erro

O reencontro de Rick e Ilsa aparentemente casual, vem tecido de uma longa intriga política e de bastidores de guerra. Antes de rever Ilsa, Rick foi avisado pelo capitão Renault de que o major Heinrich Strasser (Conrad Veidt), membro da Gestapo, viria ao bar como um importante convidado, na tentativa de prender Ugarte, considerado responsável pela morte de dois alemães e por vender salva-condutos para fugitivos de guerra, além de fiscalizar a iminente chegada de um certo Victor Laszlo (Paul Henreid), líder da resistência tcheca que fugira de um campo de concentração. O oficial nazista apostava que Victor Laszlo viria ao café, acompanhado da esposa, na tentativa de comprar de Ugarte um visto de saída de Casablanca. Durante à tarde, Ugarte é preso pelos nazistas e executado logo a seguir. Antes da prisão, Ugarte deixa os salva-condutos aos cuidados de Rick.
É desta intriga política que Ilsa ressurge do passado de Rick. Ela tinha sido no passado, o grande amor da vida do dono do bar. Viveram um romance em Paris, tórrido e inesquecível, que marcara para sempre as suas vidas. Mas veio a guerra, os alemães marcharam sobre Paris, levando embora os encantos, a beleza e a liberdade da cidade. Diante da invasão nazista, Rick fora obrigado a deixar Paris, pensando em levar Ilsa consigo. Mas ela não o acompanhou, deixando-o seguir sozinho. Abandonado, sentindo-se rejeitado, Rick Blaine seguiu para Casablanca, tornando-se um homem frio e amargurado, vivendo das lembranças do amor de Ilsa, transbordado em um cinismo latente, defensivo e aparentemente definitivo.
Quando Ilsa foi ao bar de Rick, não imaginava que ele era o mesmo Richard de Paris. Ela era a esposa de Victor Laszlo. Vinha em busca da preciosa carta de permissão para que deixasse, ao lado do marido, Casablanca, rumo a Lisboa. Ao deparar-se com Sam, ela reconhece-o, não resiste e pede para que toque a velha canção de amor de outros tempos. Ao ouvir a música, antes de ver Ilsa, Humphrey Bogart empresta à personagem o olhar mais frio, cerrado e seco que se tem notícia, numa existência que transborda a mais tenaz das amarguras. É ao som de uma das mais banais e famosas canções de um certo Herman Hupfeld, “As Time Goes By”, que toda a glória do filme é revelada à platéia, estabelecendo-se todo o conflito que se sucedeu entre os dois anos do imenso amor de Paris e o reencontro em Casablanca. Um flash back fluente revive todo o amor e os fantasmas de Rick e Ilsa, perdidos para sempre nas ruas de Paris.
Curiosamente, “As Time Goes By”, que se tornou uma canção lendária com “Casablanca”, não foi composta para o filme. Diante do caos das gravações, quando Ingrid Bergman fez a cena, a trilha sonora de Max Steiner para o filme ainda não estava pronta. A atriz, que gostava da música, teve que improvisar. Steiner achava “As Time Goes By”, que tinha sido lançada sem sucesso anos antes, banal e sem impacto, de um valor musical menor. Só na montagem do filme é que Michael Curtiz e Max Steiner perceberam que a atriz tinha dito o nome da canção. Sob exigência de Steiner, Curtiz pediu que Ingrid Bergman voltasse às gravações para refazer os diálogos com Dooley Wilson. A atriz retornou aos estúdios, mas havia cortado os cabelos para fazer a personagem de um outro filme, e a cena não pôde ser refeita. Mais uma coincidência de um erro que deu certo e fez de “As Time Goes By” uma canção imortalizada, sem que se consiga imaginar “Casablanca” sem os seus versos e melodia, aqui a dar uma magia única ao romance temporariamente recuperado de Ilsa e Rick.

O Amor Reascende em Casablanca

Antes do reencontro com Ilsa, Rick tinha recebido no seu bar o poderoso major Strasser. O chefe da gestapo confidenciara ao dono do estabelecimento que o seu principal objetivo em Casablanca era prender líderes e membros da resistência, principalmente o fugitivo Victor Laszlo. Rick mantém-se impassível, neutro, para ele pouco importava os nazistas ou os heróis da resistência. Era apenas um sobrevivente, um homem de negócios.
Ao saber que Ilsa Lund é a mulher de Victor Laszlo, Rick Blaine tem consciência dos perigos que o rival corre em Casablanca, sendo a sua prisão e possível fuzilamento uma questão de tempo. O Reencontro dos antigos amantes é marcado pelo ressentimento, pelo ódio da traição e cicatrizes da separação. Mas Ilsa sabe que com a prisão de Ugarte, só Rick Blaine pode ajudá-la. Pede a ajuda do antigo amante, não para si, mas para o marido, que não viverá muito tempo se continuar em território marroquino.
No meio da explosão entre jogos de culpas e cicatrizes, uma Ingrid Bergman sensível, com lágrimas nos olhos a evidenciar-lhe a culpa e o abandono do grande amor, deixa sem fôlego não só um frio e seco Humphrey Bogart, como toda a platéia. Aos prantos, ela reafirma o seu amor por Rick, que nunca o esquecera. Confessa porque o tinha abandonado em Paris. Quando vivera um romance com Rick, ela era casada com Laszlo, que estava preso em um campo de concentração nazista, one ela o julgara morto. Soube que o marido estava vivo no dia que iria deixar Paris ao lado de Rick, por isto não podia sair da Europa e seguir o amado pelo mundo. Se o fizesse, jamais teria paz com a sua consciência.
Tudo que Ilsa quer é salvar o marido. Fazendo-o, ela libertar-se-ia do peso da culpa, podendo seguir Rick para qualquer parte do mundo. Ambos reacendem a paixão. Beijam-se, mostrando-se apaixonados e decididos, vão ficar juntos, após a fuga de Victor Laszlo.

A Marselhesa Vence o Hino Nazista

Mas o mundo vai além da paixão entre Rick e Ilsa. Uma guerra sangrenta é travada nos campos de batalha e nos bastidores políticos. O destino de ambos está seriamente entrelaçado com a guerra e com os seus envolvidos. Victor Laszlo e a mulher são levados ao escritório do capitão Renault, onde são ameaçados pelo major Strasser, que os intimida, na tentativa de que entreguem os nomes de todos os líderes da resistência, só assim sairão com vida de Casablanca. Mas Victor Laszlo responde às ameaças com a sua natural devoção aos ideais de liberdade:
Se não delatei meus companheiros quando me encontrava preso em um campo de concentração, onde vocês usavam métodos mais persuasivos, não será aqui que vou fazê-lo.
O caráter ideológico e político do filme são desenhados pela luta tenaz de Victor Laszlo. Um dos momentos míticos e criativos de “Casablanca” acontece quando Laszlo interrompe um diálogo intrínseco com Rick, ao ouvir que o oficial nazista encarregado de prendê-lo cantava o introspectivo e sombrio “Die Wacht am Rheim”; e incita os freqüentadores do bar a cantar o hino da França. A beleza romântica e explosiva da “Marselhesa” interrompe o ritmo marcial do hino nazista, trazendo uma emocionante seqüência que culmina com o triunfo do patriotismo sobre a traição, do desafio sobre o silêncio, e da coragem exaltada sobre o medo disseminado. A partir de então não se pode mais ter personagens neutros, há uma guerra sendo travada, não se pode ignorá-la, e as imagens da cena devoram os diálogos, não há palavras, mas a redenção para todas as opressões políticas e sentimentais. O silêncio dos diálogos evidencia a força do hino, que naquele ano de 1942, era um grito quase que arrancado das entranhas. Se nos campos de guerra o terror nazista parecia vencer a resistência, neste momento apoteótico do filme, há uma breve vitória dos oprimidos, refletida no esplendor do hino da França.

Despedida em Casablanca

Nas seqüências finais do filme, Rick Blane decide fugir com Ilsa para Lisboa. Irá usar os salva-condutos de Ugarte, que os possibilitarão deixar Casablanca. Negocia a venda do Rick’s Cafe, e envolve o capitão Renault em uma tramóia de fuga que, aparentemente, prepara uma armadilha para Victor Laszlo.
Ilsa, Rick e Laszlo estão prontos para seguirem para o aeroporto de Casablanca. Ela pensa que só o marido seguirá viagem, e que ao vê-lo a caminho da liberdade, poderá finalmente viver o seu amor com Rick. O que ela não sabe é que Rick só possui duas cartas de trânsito. Um suspense final leva o filme a um novo ápice. O que acontecerá a Laszlo? Quem partirá de Casablanca?
Quando Rick dá as cartas de trânsito para Laszlo preencher, o capitão Renault surge com a ordem de prisão. Ilsa põe-se ao lado do marido, disposta a morrer por ele. Rick percebe que o destino da amada estava ligado para sempre ao de Laszlo, e que os dois devem partir juntos. Inesperadamente, Rick aponta uma arma disfarçada para Renault, impedindo que o líder da resistência fosse preso, forçando o capitão a telefonar para o aeroporto e avisar que dois passageiros irão embarcar para Lisboa. Mas o esperto capitão Renault telefona para o chefe da Gestapo, major Strasser, avisando-o da fuga.
A tensão aumenta. No hangar do aeroporto, um avião está preparado para partir em dez minutos. Rick, Ilsa, Laszlo e Renault chegam ao local de embarque em um carro do governo. Rick ordena que Renault preencha as duas cartas de trânsito em nome do Senhor e da Senhora Victor Laszlo. Só então Ilsa apercebe-se da armadilha do destino. Atônita, ela insiste para que os dois continuem juntos, que não se separem outra vez. Mas um Rick magnânimo sabe que a luta de Victor Laszlo é maior do que a sua paixão por Ilsa. Que o mundo em guerra, precisava muito mais da ideologia dos heróis salvadores do que do amor incondicional dos amantes. A razão dentro daquele mundo de guerra exigia e explicava o sublime sacrifício do amor dos amantes de Paris.
Para Rick, haveria as lembranças de uma felicidade efêmera. “Sempre teremos Paris”, justifica-o à amada. Abre-se a imensidão do adeus que fará chorar o mais frio do espectador. Ambos sabem que terão Paris apenas na memória, jamais uma outra vez. Terão Casablanca apenas na persistência das lembranças do amor perdido. O adeus seria definitivo. Jamais se voltariam a tocar, nunca mais se iriam beijar. Paris e Casablanca permaneceriam por todo o tempo, quando tinham a certeza de que “as time goes by”. Ao lado do marido, Ilsa aceita o sacrifício do amado, partindo, lançando-lhe um último olhar de adeus. Quanto mais se distanciava do amado, aproximando-se do avião, uma lágrima inundava-lhe a beleza instransponível e solitária do rosto. Casablanca fica deserta. Jamais iríamos ver Ilsa-Bergman e Rick-Bogart juntos outra vez.
Rick fica sozinho, com a ameaça do capitão Renault, que lhe garante, irá prendê-lo tão logo o avião parta. Rick Blaine não se importa. Fizera o maior sacrifício da sua vida. Era um novo homem. Ou talvez o antigo, o revolucionário da juventude. A frieza cortante dava passagem para um homem idealista e de ambições humanas mais perenes.
Em um último fôlego, surge o major Strasser, ameaçando telefonar ao hangar para que o avião seja interceptado. Mas Rick saca da arma, ordena-lhe que desista. O chefe nazista consegue sacar de uma arma, ao tentar atirar em Rick, é atingido mortalmente por ele. Há um breve momento de silêncio e tensão. No horizonte, o avião que leva Ilsa e Laszlo distancia-se, rumo a Lisboa.
Imprevisivelmente, o capitão Renault desiste de prender Rick, diz que não há testemunhas, sugere que Rick desaparecera de Casablanca por alguns tempos. O capitão deixa o patriotismo vencer à traição, tão comum na sua França ocupada. Rick e Renault caminham debaixo de um intenso nevoeiro, enquanto o avião desaparece no horizonte.
Encerra-se um dos filmes que, omitindo o caos dos bastidores, tornou-se quase que perfeito. Nos desacertos, foram gerados momentos antológicos do cinema. Nos acertos, reuniu um elenco esplendoroso, com as indicações de Humphrey Bogart e Claude Rains para o Oscar de melhores atores, principal e coadjuvante respectivamente. Triunfante, receberia três Oscars, o de melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro. Foi um dos filmes que mais atingiu o coração da platéia que o veio assistir, tornando-se um gigante definitivo cinema mundial.

Ficha Técnica:

Casablanca

Direção: Michael Curtiz
Ano: 1942
País: Estados Unidos
Gênero: Drama
Duração: 103 minutos / preto e branco
Título Original: Casablanca
Roteiro: Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch, baseado na peça “Everybody Comes to Rick’s” de Murray Burnett e Joan Alison
Direção de Diálogos: Hugh MacHullan
Produção: Hal B. Wallis
Produção Executiva: Jack L. Warner
Música: Max Steiner, M. K. Jerome, Jack Scholl e Herman Hupfeld (As Time Goes By)
Arranjos de Orquestra: Hugo Friedhofer
Direção Musical: Leo F. Forbstein
Direção de Fotografia: Arthur Edeson
Direção de Arte: Carl Jules Weyl
Decoração de Set: George James Hopkins
Figurino: Orry-Kelly
Maquiagem: Perc Westmore
Edição: Owen Marks
Efeitos Especiais: Lawrence Butller e Willard Van Enger
Montagem: Don Siegel e James Leicester
Som: Francis J. Scheid
Consultor Técnico: Robert Aisner
Estúdio: Warner Bros.
Distribuição: Warner Bros. / Metro-Goldwyn-Mayer
Elenco: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains, Conrad Veidt, Sydney Greenstreet, Peter Lorre, S. Z. Sakall, Madeleine LeBeau, Dooley Wilson, Joy Page, John Qualen, Leonid Kinskey, Curt Bois
Sinopse: Durante a Segunda Guerra Mundial, Casablanca, cidade do Marrocos, então protetorado francês, torna-se rota obrigatória de quem estava a fugir das atrocidades dos nazistas. Será em Casablanca que Rick Blane (Humphrey Bogart), dono do maior bar local, irá reencontrar Ilsa Lund (Ingrid Bergman), anos depois de terem se apaixonado e se perdido em Paris. Nos meandros da guerra, uma história comovente de paixão e sacrifício desenha uma trama empolgante e definitiva. Inesquecível.

Michael Curtiz

Mihály Kertész ficou conhecido no mundo pelo seu nome americanizado, Michael Curtiz. Nasceu em Budapeste, no Império Austro-Húngaro (hoje Hungria), em 24 de dezembro de 1886. Oriundo de uma família judaica, tinha o nome de Manó Kertész Kaminer, substituído pelo pseudônimo de Mihály Kertész quando iniciou a carreira de ator e diretor no Teatro Nacional Húngaro, em 1912.
Segundo o próprio Michael Curtiz, teria fugido da casa dos pais para que se pudesse juntar ao circo. Também costumava gabar-se de ter feito parte da seleção de esgrima nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. De concreto, sabe-se que estudou na Universidade de Markoszy e na Academia Real de Teatro e Arte.
Em 1913, Michael Curtiz seguiu para a Dinamarca, onde passou seis meses no estúdio Nordisk, a aperfeiçoar-se como diretor de cinema. A carreira foi interrompida por algum tempo quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, obrigando-o a fazer parte da artilharia do exército Austro-Húngaro. Retornaria à direção dos filmes em 1915. Por esta época casou-se com a atriz Lucy Doraine, com quem viveu até 1923.
Por conta da nacionalização da indústria cinematográfica do seu país, Curtiz deixou a Hungria em 1919, fixando-se em Viena, onde fez cerca de 21 filmes para o estúdio Sascha-Film. Em 1924 teve o filme “Die Sklavenkönigin”, lançado nos Estados Unidos com o título de “Moon of Israel” (Lua de Israel), atraindo a atenção de Jack Warner, que o contratou para o seu estúdio, a Warner Bros. Assim, em 1928, Curtiz realizou para aquele estúdio “Noah’s Ark” (Arca de Noé).
Nos Estados Unidos, adotou o nome de Michael Curtiz, iniciando uma carreira de grandes sucessos em Hollywood. Por cerca de trinta anos, teve o nome nos créditos de mais de cem filmes. Durante a Segunda Guerra Mundial, Curtiz teve parte da família enviada para o campo de concentração de Auschwitz. Nesta época realizou grandes sucessos como “O Lobo do Mar” (1941), o mítico “Casablanca” (1942) e “Alma em Suplício” (1945).
Michael Curtiz recebeu quatro indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para Oscar de melhor diretor: “Anjos da Cara Suja” (1938), “Quatro Filhas” (1939), “A Canção da Vitória” (1943) e “Casablanca”, que lhe deu a estatueta em 1944.
A relação de Curtiz com os estúdios de Hollywood deteriorou-se com o passar dos anos, terminando em uma grande batalha nos tribunais. A partir de 1953, continuou a dirigir como independente. Seu último filme foi “Os Comancheros” (1961), com John Wayne, lançado menos de um ano antes da sua morte. Michael Curtiz morreu vítima de um câncer em 10 de abril de 1962, em Hollywood.

Filmografia de Michael Curtiz:

1912 – Ma És Holnap
1912 – Az Utolsó Bohém
1913 – Rablélek
1913 – Házasodik Az Uram
1914 – Bánk Bán
1914 – Az Éjszaka Rabjai
1914 – Az Aranyásó
1914 – A Tolonc
1914 – A Kölcsönkért Csecsemök
1914 – A Hercegnö Pongyolaban
1915 – Akit Ketten Szeretnek
1916 – Makkhetes
1916 – Farkas
1916 – Doktor Úr
1916 – Az Ezüst Kecske
1916 – A Magyar Föld Ereje
1916 – A Karthausi
1916 – A Fekete Szivárvány
1917 – Zoárd Mester
1917 – Tavasz a Télben
1917 – Tatárjárás
1917 – Halálcsengö
1917 – Egy Krajcár Története
1917 – Az Utolsó Hajnal
1917 – Az Ezredes
1917 – A Vörös Sámson
1917 – A Szentjóbi Erdö Titka
1917 – A Senki Fia
1917 – Árendás Zsidó
1917 – A Kuruzsló
1917 – A Föld Embere
1917 – A Béke Útja
1918 – Varázskeringö
1918 – Lulu
1918 – Lu, A Kokott
1918 – Júdas
1918 – Az Ördög
1918 – A Vig Özvegy
1918 – A Skorpió I
1918 – Alraune
1918 – A Csúnya Fiú
1918 – 99
1918 – A Napraforgós Hölgy
1919 – Liliom
1919 – Jön Az Öcsém
1919 – Die Dame Mit Dem Schwarzen Handschuh
1920 – Boccaccio
1920 – Der Stern von Damaskus
1920 – Die Gottesgeisel
1921 – Miss Tutti Frutti
1921 – Herzogin Satanella
1921 – Frau Dorothys Bekenntnis
1921 – Labyrinth des Grauens
1922 – Sodom und Gomorrha
1923 – Der Junge Medardus
1923 – Die Lawine
1923 – Namenlos
1924 – General Babka
1924 – Ein Spiel Ums Leben
1924 – Harun al Raschid
1924 – Die Sklavenkönigin
1925 – Das Spielzeug von Paris
1926 – Fiaker Nr. 13
1926 – Der Goldene Schmetterling
1926 – The Third Degree
1927 – A Million Bid
1927 – The Desired Woman
1927 – Good Time Charley
1928 – Tenderloin
1928 – Noah’s Ark (A Arca de Noé)
1929 – Glad Rag Doll
1929 – Madonna of Avenue A
1929 – The Gamblers
1929 – Hearts in Exile
1930 – Mammy (Minha Mãe)
1930 – Under a Texas Moon
1930 – The Matrimonial Bed
1930 – Bright Lights
1930 – River’s End
1930 – A Soldier’s Plaything
1931 – Dämon des Meeres
1931 – God’s Gift to Women
1931 – The Mad Genius (O Gênio do Mal)
1932 – The Woman From Monte Carlo
1932 – Alias The Doctor
1932 – The Strange Love of Molly Louvain
1932 – Doctor X (Doctor X)
1932 – The Cabin in the Cotton
1932 – 20.000 Years in Sing Sing (20.000 Anos em Sing Sing)
1933 – Mystery of the Wax Museum (Os Crimes do Museu)
1933 – The Keyhole
1933 – Private Detective 62
1933 – The Mayor of Hell (não creditado)
1933 – Goodbye Again (Mais Uma Vez Adeus)
1933 – The Kennel Murder Case (O Caso de Hilda Lake)
1933 – Female
1933 – From Headquarters (não creditado)
1934 – Mandalay (Capricho Branco)
1934 – Jimmy the Gent (Bancando o Cavalheiro)
1934 – The Key
1934 – British Agent
1935 – Black Fury (Inferno Negro)
1935 – The Case of the Curious Bride
1935 – Go Into You Dance (não creditado)
1935 – Front Page Woman (Miss Repórter)
1935 – Little Big Shot
1935 – Captain Blood (Capitão Blood)
1936 – The Walking Dead (O Morto Ambulante)
1936 – Anthony Adverse (não creditado)
1936 – The Charge of the Light Brigade (A Carga da Brigada Ligeira)
1937 – Black Legion (não creditado)
1937 – Stolen Holiday
1937 – Marked Woman (Mulher Marcada) (não creditado)
1937 – Moutain Justice (Justiça Humana)
1937 – Kid Galahad (Talhado Para Campeão)
1937 – The Perfect Specimen
1938 – Gold is Where You Find It
1938 – The Adventures of Robin Hood (As Aventuras de Robin Hood)
1938 – Four’s a Crowd (Amando Sem Saber)
1938 – Four Daughters (Quatro Filhas)
1938 – Angels With Dirty Face (Anjos de Cara Suja)
1939 – Blackwell’s Island (não creditado)
1939 – Dodge City (Uma Cidade Que Surge)
1939 – Sons of Liberty
1939 – Daughters Courageous
1939 – The Private Lives of Elizabeth and Essex (Meu Reino Por um Amor)
1939 – Four Wives
1940 – Virginia City (Caravana de Ouro)
1940 – The Sea Hawk (O Gavião do Mar)
1940 – Santa Fe Trail (A Estrada de Santa Fé)
1941 – The Sea Wolf (O Lobo do Mar)
1941 – Dive Bomber (Demônios do Céu)
1942 – Captains of the Clouds (Corsários das Nuvens)
1942 – Yankee Doodle Dandy (A Canção da Vitória)
1942 – Casablanca (Casablanca)
1943 – Mission to Moscow (Missão em Moscou)
1943 – This is the Army (Forja de Heróis)
1944 – Passage to Marseille (Passagem para Marselha)
1944 – Janie
1945 – Roughly Speaking
1945 – Mildred Pierce (Alma em Suplício)
1946 – Night and Day (A Canção Inesquecível)
1947 – Life With Father (Nossa Vida com Papai)
1947 – The Unsuspected (Sem Sombra de Suspeita)
1948 – Romance on the High Seas (Romance em Alto Mar)
1949 – My Dream is Yours (Meus Sonhos Te Pertencem)
1949 – Flamingo Road (Caminha da Redenção)
1949 – The Lady Takes a Sailor (Até Parece Mentira)
1950 – Young Man With a Horn (Êxito Fugaz)
1950 – Bright Leaf (Cinzas ao Vento)
1950 – The Breaking Point (Redenção Sangrenta)
1951 – Force of Arms (Quando Passar a Tormenta)
1951 – Jim Thorpe – All-American (O Homem de Bronze)
1951 – I’ll See You in My Dreams (Sonharei Com Você)
1952 – The Story of Will Rogers (A História de Will Rogers)
1952 – The Jazz Singer (O Cantor de Jazz)
1953 – Trouble Along the Way (Atalhos do Destino)
1954 – The Boy From Oklahoma (Aço de Boa Têmpera)
1954 – The Egyptian (O Egípcio)
1954 – White Christmas (Natal Branco)
1955 – We’re No Angels (Veneno de Cobra)
1956 – The Scarlet Hour
1956 – The Vagabond King (O Rei Vagabundo)
1956 – The Best Things in Life are Free (O Encanto de Viver)
1957 – The Helen Morgan Story (Com Lágrimas na Voz)
1958 – The Proud Rebel (O Rebelde Orgulhoso)
1958 – King Creole (Balada Sangrenta)
1959 – The Hangman
1959 – The Man in the Net (A Mulher que Comprou a Morte)
1960 – A Breath of Scandal (O Escândalo da Princesa)
1960 – The Adventures of Huckleberry Finn (As Aventuras de Huckleberry Finn)
1961 – Francis of Assisi (São Francisco de Assis
1961 – The Comancheros (Os Comancheros)


MULHERES DO BRASIL – SOB O OLHAR DE ANTONIO GUERREIRO

junho 28, 2009
A presença da mulher na história do Brasil é constituída de grandes vultos e personalidades que, se fôssemos descrever cada uma delas, teríamos uma longa enciclopédia de biografias instigantes e apaixonantes. Da índia Paraguaçu, que conquistou o coração de Caramuru e à corte francesa, sendo lá batizada como Catarina Álvares, no século XVI, a Xica da Silva, bela negra que de escrava tornou-se a rainha do Tijuco; de Chiquinha Gonzaga a Leila Diniz, personagens que mudaram o conceito de ser mulher à época em que viveram; o Brasil é essencialmente um país feito pela delicadeza bravia das suas mulheres. Nação plural, com uma população formada por várias raças, sem um estereótipo definido, em que a beleza da mulher brasileira é um capítulo à parte na história do país.
Para descrever tão sublime beleza, nenhuma lente foi mais sincera, poética e apoteótica como as do fotógrafo Antonio Guerreiro. Dono de uma sensibilidade estética impar, Guerreiro foi o maior fotógrafo de grandes personalidades brasileiras que despontou nos últimos quarenta anos. Do fim da década de 1960 ao início da de1990, não houve celebridade que não tenha passado por sua objetiva. Surgido na época do desbunde, fazia parte da geração que pregava o amor livre ao cheiro da cocaína, falava de política ao sabor do ácido e sobrevivia à opressão de uma ditadura militar através de uma arte considerada marginal, mas intensa em seu existencialismo apartidário.
No meio da desconstrução estética do desbunde, Antonio Guerreiro andava na contramão, pois as fotografias que fazia dos seus modelos eram a própria perfeição do belo. Longe das imagens do underground do meio que freqüentava, a sua arte representava o glamour e a voluptuosidade dos corpos que retratava, a beleza obsessiva que tal qual um Michelangelo contemporâneo, jamais deixou de buscar. Enquanto os fuzis militares embaçavam o cenário nacional, paradoxalmente a fotografia de Guerreiro traduzia uma beleza infinitamente alegre, mesmo travada em uma atmosfera alienante. As musas de Antonio Guerreiro eram um ópio no sangue dos que eram torturados nos calabouços, era a atenuação de um país silenciado. O retrato de uma geração que ou já morreu ou envelheceu, que não mais existe com o esplendor por ele registrado.
Mulheres do Brasil, por Antonio Guerreiro, retratam um tempo perdido. Aos 61 anos, o fotógrafo vive mais de um passado glorioso do que de um presente artisticamente empobrecido pela arte digital. Este artigo traz algumas divas que constituem um acervo precioso da cultura deste país. Brancas, negras, louras, morenas, todas fotografadas por Antonio Guerreiro, em imagens definitivas, que resistem à morte e às rugas do tempo, todas mulheres imprescindíveis na construção cultural do Brasil.

Ângela Diniz, a Pantera de Minas

Considerada uma das mulheres mais bonitas dos anos setenta, Ângela Diniz era conhecida como “A Pantera de Minas”. Foi daquelas mulheres cridas para uma vida de rainha, com direito a baile de debutante aos 15 anos, para ser apresentada oficialmente à alta sociedade.
Mineira de Belo Horizonte, Ângela Diniz virou uma lenda nos meios sociais da sua época, atraindo para si os holofotes e as paixões desenfreadas tanto dos homens, quanto das mulheres. Era uma mulher que desprezava a sociedade em que vivia, fazendo da sua liberdade uma afronta aos costumes. Do seu casamento com o engenheiro Milton Villas Boas teve três filhos. Mas o seu destino teria o fulgor das aventuras e da tragédia, assim, ela abandonou marido e filhos e foi viver a intensidade do seu glamour no Rio de Janeiro.
Envolvida em um triângulo com o milionário Tuca Mendes e um rapaz de 18 anos, que era caseiro da sua casa, teve a tragédia bater à sua porta pela primeira vez; o caseiro foi assassinado em um crime obscuro, provavelmente movido pelo ciúme; Ângela Diniz assumiu a culpa, talvez para proteger o amante.
E assim foi a vida da “Pantera de Minas”, regada por escândalos envolvendo sexo e drogas, tendo sido presa por porte de maconha; foi constrangida quando espancada em público por um namorado, além de outros escândalos menores.
Em 1976 Ângela Diniz envolveu-se com o bon vivant Doca Street. Na véspera do reveillon daquele ano, os dois foram para a Praia dos Ossos, em Búzios, no litoral do Rio de Janeiro. Viveram uma paixão explosiva, com muito sexo, cocaína, champangne e ciúmes. O resultado, quatro tiros desferidos por Doca Street, desfigurando um dos rostos mais belos do Brasil e matando uma das mulheres mais controversas da alta sociedade. Doca Street foi a dois julgamentos, sendo condenado apenas no último. Com a condenação, morria no Brasil o conceito de que era válido matar a mulher em defesa da honra masculina. Infelizmente a violência contra a mulher prevalece até os dias atuais.
Sob as lentes de Antonio Guerreiro, percebe-se a beleza trágica e inconquistável de Ângela Diniz. O fotógrafo dissimula do seu rosto a malícia fugaz, esculpindo-lhe uma beleza bíblica a contrastar com a verdade profana da Pantera de Minas.

Sandra Bréa, Símbolo Sexual de uma Época

Atriz, cantora, dançarina, Sandra Bréa foi uma artista completa, poucas como ela reuniram tantos predicados, tantos dotes artísticos. Dona de uma beleza clássica, talvez tenha sido a mulher mais fotografada nua na década de setenta, o que lhe rendeu o título de símbolo sexual, fazendo-a uma das mais desejada de um Brasil reprimido pela liberdade de pensamentos e pela moral e pelos bons costumes impostos pela ditadura.
Após protagonizar algumas novelas da TV Globo, entre elas a histórica “O Bem Amado”, de Dias Gomes, a atriz encontrou o auge da sua carreira no programa musical “Sandra e Miele”, em 1976, ao lado de Luiz Carlos Miele. O programa tornou-se mítico, e um dos mais bem concebidos daquela década.
Casada durante alguns anos com Antonio Guerreiro, foi fotografada por ele em todo o seu esplendor, revelando-se como uma estátua nua para todo o Brasil. Assim como as mulheres transgressoras do seu tempo, a atriz sofreu os revezes dos preconceitos, mas jamais se deixou intimidar por eles, pagando com sangue e vida o direito de ser mulher independente e livre.
Nos anos noventa, Sandra Bréa foi contaminada pelo vírus da Aids, sendo a primeira mulher no Brasil a assumir a doença publicamente. Desde então foi isolada, encerrando a carreira e o glamour. A estrela apagou-se em 2000, vítima de um câncer no pulmão, fugindo ao estigma que tanto temia, o de morrer em conseqüência da Aids. Nos últimos anos de vida, teve o belo físico transformado pelo tratamento que fazia com os retrovirais para combater a doença. O legado que nos deixou não foi apenas a coragem de transgredir, mas o de um talento digno de uma grande brasileira.
Nesta fotografia, “Woman in Red”, deparamos com um facho de luz no expoente de um dos olhares que mais se cruzou com as lentes de Antonio Guerreiro, formando uma cumplicidade eterna, presa no tempo e na memória.

Betty Faria, Talento e Beleza

O seu nome confunde-se com o da teledramaturgia do país. Foi levada para a televisão pelas mãos da amiga Leila Diniz, que a apresentou a Daniel Filho. Nunca mais saiu, construindo para o Brasil, uma bem sucedida carreira, intercalada com o teatro e com o cinema.
Betty Faria viveu durante anos, personagens secundárias, às vezes antagonistas da heroína da trama. Foi elevada à estrela global em 1975, sob a direção do então marido, Daniel Filho. Na televisão interpretou personagens inesquecíveis como a Lucinha da primeira versão de “Pecado Capital” (1975), de Janete Clair, e a fogosa protagonista de “Tieta” (1989).
A atriz também brilhou no cinema nacional, em clássicos como “A Estrela Sobe”, “O Cortiço”, “Bye Bye Brasil”, “Romance da Empregada” e “Lili Carabina, a Estrela do Crime”.
Na sua beleza morena e sensualidade à flor da pele, Betty Faria conquistou ao longo da carreira, uma galeria diversificada de fãs, entre eles o escritor Jorge Amado, que praticamente exigiu a atriz para protagonizar a novela “Tieta”, baseada em sua obra literária. Foi a primeira viúva Porcina de “Roque Santeiro”, em 1975, que censurada pela ditadura militar, jamais foi ao ar. Em 1985, quando a telenovela foi finalmente liberada, a atriz recusou o papel.
No inicio da carreira foi casada com o ator Cláudio Marzo, de quem teve uma filha, a atriz Alexandra Marzo. Depois se casou com o diretor Daniel Filho, gerando com ele um filho, João. Esta é Betty Faria, feita de acertos e erros, de talento e beleza, altos e baixos em uma carreira tão longa e empolgante.
Antonio Guerreiro soube explorar bem a beleza morena da atriz, envolvendo-a em brilhos que contrastam com a pele branca e com a vasta cabeleira negra. Guerreiro enfeitou-lhe de adereços e glamour, como se preparasse a mulher que saltaria de dentro de um luxo concebido. Um registro que foge ao tempo e entra para a galeria das grandes personagens culturais do nosso país.

Tonia Carrero, Uma das Maiores Belezas do Brasil

Tonia Carrero é uma das mulheres mais bonitas que nasceu em solo brasileiro. Mesmo com as marcas que lhe esculpiu o tempo, ela jamais perdeu a essência do belo e dos traços de deusa grega.
Mais belo ainda, é a sua trajetória artística. Assim como as mulheres do seu tempo, foi preparada para o casamento, ato que assumiu muito bem, só iniciando a carreira artística depois de casada. Sua estréia aconteceu ao lado de outro gigante do cenário artístico brasileiro, Paulo Autran. Juntos, partiram para o infinito das artes e do talento arrancado do âmago da grandiosidade artística.
Tonia Carrero foi a grande musa do cinema brasileiro na época dos estúdios da Vera Cruz, considerada a Hollywood brasileira, vivendo clássicos como “Tico-Tico no Fubá” (1952). A beleza etérea do seu rosto iluminava as salas de cinema. A atriz sabia-se dona desta beleza rara, assumindo-a sem preconceitos, mas sem se deixar levar por ela, atirando-se a desafios tanto no cinema como no teatro.
Mulher talentosa e inteligente, trabalhou com mestres como Ziembinski e Adolfo Celli, diretor e ator de cinema italiano, com quem foi casada.
Também brilhou na televisão, protagonizando várias telenovelas da TV Globo no início da década de 1970, como “Pigmalião 70” e “A Próxima Atração”. Cansada de viver as eternas ricas sofisticadas das novelas, ela procurou evitar desgastar a imagem, declinando de fazer televisão constantemente.
Até o fim da década de setenta e início da de oitenta, Tonia Carrero era tida pelas mulheres como o símbolo de beleza feminino ideal, mesmo a atriz já estando na época com sessenta anos, posição que o tempo e as suas marcas, foram lhe tirando aos poucos.
Antonio Guerreiro revela aqui, a beleza madura da atriz, ainda com traços delineados com perfeição. Os olhos, diminuídos por uma intervenção cirúrgica corretiva, voltam a brilhar sem medo de olhar para as lentes do fotógrafo. Longe da moda das bocas carnudas de agora, Tonia Carrero deslumbra com os seus lábios finos e clássicos. A beleza do rosto entrelaça-se com a da mão, terminada em unhas perfeitas, no glamour de uma mulher elegante e inteligente. A imagem de Guerreiro registra o que o tempo roubou à atriz, fazendo-a infinitamente presa à beleza.

Regina Duarte, a Namoradinha do Brasil

Uma das mulheres mais amada pelo público brasileiro, Regina Duarte iniciou a carreira na extinta TV Excelsior. Com o fim da emissora, foi contratada pela TV Globo em 1969, de onde nunca mais saiu.
Dona de uma voz doce e intensa, de um sorriso angelical, ela logo se destacou como protagonista de sofridas heroínas. A terna e carismática Patrícia de “Minha Doce Namorada”, novela de Vicente Sesso, de 1971, conferiu-lhe o título de “Namoradinha do Brasil”. Vinculada a esta imagem, a atriz viveu personagens afins, emplacando grandes sucessos como “Selva de Pedra” (1972) e “Carinhoso” (1973).
Cansada de viver a eterna heroína sofredora, Regina Duarte quis deixar a televisão em 1974, mas a direção da Globo não deixou, dando-lhe dois anos de férias. A primeira atitude da atriz foi interpretar uma prostituta no teatro, na peça “Reveillon”, algo incompatível com a imagem imposta pela televisão.
Quando voltou às novelas, negou-se a representar os mesmos papéis. Veio o seriado “Malu Mulher” (1979) e a imagem da namoradinha esvaiu-se por completo. Quando interpretou a fogosa e inesquecível viúva Porcina de “Roque Santeiro”, em 1985, já não havia resquícios da heroína virginal de outrora.
Antonio Guerreiro descobre, neste retrato, toda a sensualidade da atriz antes da televisão o fazer. Ele capta a doçura da estrela, sem apagar a mulher. Revela-nos uma beleza angelical preste a romper, fazendo emergir a mulher sensual, como se fosse saltar dos olhos expressivos do anjo. Os cabelos da atriz revelam o seu glamour, a sensualidade contida, mas latente, pronta para pulsar. Guerreiro descobre um lado impar de Regina Duarte, revelando, com exclusividade, uma mulher quente e ardente, que de namoradinha, transformara-se em “Amante do Brasil”.

Zezé Motta, Exótica Beleza

Dona de uma beleza exótica, exalada da sua pele negra, como um ébano nobre, uma rainha secular, Zezé Motta foi a primeira atriz a dizer não aos papéis medíocres e limitados que as telenovelas reservavam para os atores negros. Recusou-se a voltar no papel da eterna empregada doméstica, denunciando abertamente o preconceito, que até então, fazia-se velado.
Longe das limitações da televisão, transformou-se em rainha no cinema, vivendo a mítica Xica da Silva no filme homônimo. A película rendeu-lhe a consagração definitiva da carreira, e grande prestígio do público e dos críticos.
Se o seu olhar desperta uma mulher silvestre, o tom da voz é doce, de uma meiguice insinuante. Zezé Motta, além de grande atriz, é uma excelente cantora, tendo gravado três discos, menos do que os que o seu talento vocal merece.
Foi a primeira atriz a viver um papel de destaque que mostrava o amor entre raças na novela “Corpo a Corpo”, de Gilberto Braga, em 1985. Na época, ao fazer cenas tórridas com o ator e diretor Marcos Paulo, por quem nutriu uma paixão de juventude, sofreu preconceitos de um público ainda incipiente e preconceituoso, não habituado a ver a beleza das cores mescladas pelo amor. Zezé Motta foi a primeira atriz negra do Brasil a adquirir o estatuto de estrela. Há quem diga que a música “Pérola Negra”, grande sucesso de Luiz Melodia na voz de Gal Costa, foi inspirada na atriz-cantora.
Antonio Guerreiro fez a fotografia da capa de um disco da cantora, além de fotografá-la nua para vários ensaios. Sob as lentes de Guerreiro, a sua beleza exótica salta dos olhos, invadindo o corpo silvestre, exalando todos os desejos de quem lhe admira a imagem. A negritude da pele é ressaltada pelas luzes usadas, dando uma atmosfera que lembram o cetim e o bronze, transformando-a em uma reluzente estátua renascentista.

Fernanda Montenegro, Grande Dama do Teatro

O nome de Fernanda Montenegro dispensa apresentações. Considerada a grande dama do teatro brasileiro, é uma das poucas unanimidades que o Brasil possui. Fernanda Montenegro transmite aquele ar inteligente que os intelectuais trazem na alma. Mesmo quando fala, revela-se uma atriz nos gestos, nas pausas da voz, no olhar, nos movimentos das mãos. É a mulher que dispensa títulos de estrela, sendo a atriz.
Nos palcos viveu quase todos os papéis possíveis, registrando sucessos memoráveis como “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” e “Os Dias Felizes”. No cinema foi indicada para o Oscar, em 1999, pelo filme “Central do Brasil“.
Ao longo da carreira, procurou evitar a exposição desgastante da televisão, mas as poucas vezes que emprestou o seu talento para a pequena tela, deixou momentos memoráveis, em comédias como “Guerra dos Sexos” (1983), e, “Cambalacho” (1986), novelas de Silvio de Abreu; e interpretações dramáticas em “Baila Comigo” (1981), de Manoel Carlos e “Brilhante” (1981), de Gilberto Braga.
Fernanda Montenegro foi casada com o ator Fernando Torres, de quem ficou viúva em 2008, tendo com ele dois filhos, a atriz Fernanda Torres e o cenógrafo e diretor Cláudio Torres. É uma das atrizes mais querida do Brasil, dona de um público cativo e de fãs que se vão acumulando ao longo das décadas de uma carreira brilhante.
Antonio Guerreiro fotografou a atriz ao lado do marido e da filha, Fernanda Torres, quando esta ainda era criança. Neste retrato aqui mostrado, o fotógrafo acentua os olhos decididos da dama do teatro, instigando-lhe o ar inteligente, sem esquecer a mulher por debaixo da atriz. Guerreiro tem destas magias, revela primeiro a mulher, para depois se curvar diante da celebridade. Fernanda Montenegro é na imagem, essencialmente uma mulher, captada no momento exato que se prepara para vestir à atriz, mas que as lentes de Guerreiro intercedem no lapso de tempo da metamorfose. O braço debruça-se sobre a sutileza da mão feminina, despojando-se dos gestos do drama. Nunca a atriz interpretou tão bem a mulher como aqui.

Marina Montini, Musa de Di Cavalcanti

A nova geração de brasileiros não se lembra dela. Uma injustiça, pois a mulata Marina Montini foi um dos maiores símbolos da beleza da mulher genuinamente brasileira. Fez imenso sucesso como modelo no Brasil e na Europa, onde viveu em diversos países, como Alemanha e Itália. Na década de setenta atingiu o auge da fama, posando para as lentes dos maiores fotógrafos do país. Foi capa de grandes revistas, como a “Manchete”, além de fazer belíssimos ensaios sensuais de nu artístico para a revista “Playboy”. Como atriz, fez pequenas participações no cinema nacional. Era uma modelo cultuada pelos intelectuais da época, tida como o retrato fiel da verdadeira beleza da mulher brasileira.
Mas foi como a musa inspiradora do pintor Di Cavalcanti que Marina Montini foi imortalizada. A sua beleza exuberante atingiu de forma indelével o pintor, que encontrou a estética exata da sua inspiração, passando a tê-la como modelo por sete anos. A modelo aparece nas principais obras do pintor feitas na década de setenta, entre elas, “Mulata Com Pássaro”. O estigma de musa de Di Cavalcanti acompanhou Marina Montini por toda a vida. Encerrado o apogeu da carreira, a modelo passou a ter dificuldades financeiras e a saúde fragilizada por uma cirrose, vendo-se obrigada a morar no Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá, vindo ali falecer em 2004, aos 58 anos de idade, isolada e esquecida.
Não é fácil competir com a pintura genial de Di Cavalcanti, mas Antonio Guerreiro não decepcionou ao fotografar a sua musa inspiradora. Neste retrato primoroso, tem-se a noção exata das formas de Marina Montini, em um dos mais fiéis registros à personalidade da modelo. Marina Montini não era uma mulher comum, como pode ser vista no retrato. Sua cor é uma exclusividade da mulher brasileira, raramente encontrada em outras terras. Sua boca carnuda inundava a imaginação dos mais apaixonados e fervorosos admiradores. Sua altura, 1,80 metro bem distribuídos entre curvas insinuantes e proporções voluptuosas, era rara para uma mulher da sua geração. Se Marina Montini viveu para ser eternizada por Di Cavalcanti, no retrato de Antonio Guerreiro adquiriu o perfil exato da lembrança da sua verdadeira imagem.

Dina Sfat, Magnitude e Talento

Dina Sfat pertence a uma geração de atrizes que surgiu com o teatro engajado no início dos anos sessenta. Mulher inteligente, de um magnetismo pessoal envolvente, tornando-a uma personalidade marcante e inesquecível. Estreou-se no teatro em 1962, dirigida por Antonio Abujamra. Descoberta pelo mítico Teatro de Arena, Dina Sfat marcou com unhas de grande atriz os palcos de então.
No Teatro de Arena a atriz conheceu o ator Paulo José, com quem esteve casada por 17 anos, tendo com ele três filhas: Bel Kutner, Ana e Clara. Era uma mulher reservada, sem deixar jamais de participar da vida pública do país.
Em 1970 fez o mítico filme “Macunaíma”, vivendo a guerrilheira Cy. O papel abriu-lhe as portas para protagonizar uma novela de Dias Gomes, “Verão Vermelho” (1970), a partir de então, tornou-se uma grande estrela da TV Globo, participando de sucessos inesquecíveis da teledramaturgia brasileira: “Selva de Pedra” (1972), “O Astro” (1978) e “Eu Prometo” (1983), todas de Janete Clair, sendo uma das atrizes preferidas da autora. Dias Gomes, todas às vezes que lhe foi possível, teve-a em suas novelas, entre elas “Assim na Terra Como no Céu” (1970) e “Saramandaia” (1976). A atriz jamais se furtou de viver diferentes personagens, sem nunca se ater às limitações da imagem geralmente imposta pela televisão aos seus ídolos. Interpretou prostitutas, heroínas, assassinas, loucas, enfim, uma galeria de personagens inesquecíveis que viveu com maestria.
Mulher dinâmica, Dina Sfat corajosamente disse em público, a um militar do governo, que tinha medo dele. Filha de judeus poloneses, jamais abandonou às raízes. Um câncer matou-a precocemente aos 50 anos, em 1989, encerrando uma das maiores carreiras deste país, além de uma das suas mais contundentes personalidades.
Na fotografia de Antonio Guerreiro, Dina Sfat é vista na sua essência, olhos grandes, de um olhar que penetrava na alma de quem se lhe pusesse na frente, gestos inteligentes, sem jamais esconder a mulher ardente que emanava. Dina Sfat trazia um certo mistério a ser desvendado, um lugar recôndito na alma que não se furtava em mostrar para quem tivesse coragem e personalidade para tentar penetrá-lo. Os olhos, a boca, os dedos, as mãos, tudo nela era expressivo, a sua beleza era moldada a partir da personalidade. Dina Sfat duela com a objetiva de Guerreiro, absorvendo-lhe a manipulação da imagem, sendo exatamente ela, bela, inteligente e infinita.

Vera Fischer, Um Ícone do Brasil

Uma das personalidades mais controversas do Brasil, Vera Fischer conquistou o seu lugar ao sol mediante grande perseverança e personalidade impar que só o verdadeiro talento pode revelar. Veio de Santa Catarina para desabrochar como Miss Brasil em 1969, quando o país atravessava um dos momentos mais delicados da sua história, com presos torturados e mortos nos porões da ditadura e guerrilheiros de organizações de esquerda nas ruas. Surgia singela, bela e sem explicar para o que tinha vindo, sem que se lhe pudesse imaginar aonde iria chegar.
Na primeira metade da década de setenta, notabilizou-se por participar de inúmeras pornochanchadas de sucesso, tornando-se a rainha delas. Menosprezada por um público mais consciente e inexistente para a crítica, Vera Fischer fascinava pela beleza desnuda do seu corpo nas telas do cinema. Em 1976 estava decidida a romper com esta imagem, fazendo um filme de conteúdo tido como sério, “Intimidade”, dirigida pelo então marido, Perry Salles. O filme passou despercebido, sem maiores conseqüências para a sua carreira.
Em 1977 foi contratada pela TV Globo, para viver uma personagem inspirada nela própria, na novela “Espelho Mágico”, de Lauro César Muniz. A novela não alcançou grande sucesso de público e a estréia valeu como curiosidade na sua carreira. O sucesso começou a vir em “Sinal de Alerta” (1978), de Dias Gomes, e Vera Fischer começou a demonstrar um talento incipiente, mas em franca ascensão. Em 1980 viveu a primeira protagonista, em “Coração Alado”, novela de Janete Clair, culminando com a novela “Brilhante”, de Gilberto Braga, em 1981, onde vivia Luiza, personagem imortalizada na música homônima de Tom Jobim. Desde então Vera Fischer passou a ser uma atriz respeitada e admirada.
A atriz construiu uma carreira muitas vezes afetada pelos altos e baixos da sua vida pessoal, traduzida pelas drogas que consumia e por seus amores tempestuosos. Já foi demitida da televisão, perdeu a guarda do filho, teve internada em clínicas para desintoxicação, tendo a tudo superado, mantendo-se com grande prestígio, bons papéis e dona de uma beleza madura, que parece eterna, longe do crepúsculo dos anos.
Nesta fotografia de Antonio Guerreiro temos uma Vera Fischer extremamente jovem, vestida apenas por sua beleza, sem as marcas deixadas pelo tempo que moldam a personalidade e agregam o amadurecimento existencial. Traz um quase sorriso malicioso, diluído em uma inocência intimista. Guerreiro revela o momento exato em que o mito do cinema sensual dá passagem para a atriz personalizada. Luzes realçam os olhos e iluminam a delicadeza de uma beleza singular. Vera Fischer é aqui, o esboço do mito, é a mulher despida, maquiada pelas lentes da objetiva e pelas luzes do cenário. Sua beleza é o tema essencial da fotografia.

Veja também:
SONIA BRAGA & GAL COSTA SOB AS LENTES DE ANTONIO GUERREIRO
https://jeocaz.wordpress.com/2008/09/08/sonia-braga-gal-costa-sob-as-lentes-de-antonio-guerreiro/

MICHELANGELO BUONARROTI – A OBRA DA PERFEIÇÃO DA BELEZA

junho 27, 2009
Ao longo da história da humanidade a arte andou sempre ao lado do homem, dando emoção e beleza ao cotidiano, não importando o século ou a tendência. A arte gerou muitos artistas através do tempo, mas poucos atingiram a grandiosidade de Michelangelo Buonarroti. Sua obra, de uma beleza estética perfeita, de genialidade e sensibilidade raras, constitui um precioso patrimônio da arte, sublimemente presenteada à humanidade.
De uma força humana avassaladora, as obras de Michelangelo atravessaram o tempo, cinco séculos passados, e continuam a fascinar o mundo inteiro. Suas estátuas atingiram a perfeição da beleza humana, que imóveis contemplam o mundo, como se a qualquer instante fossem falar. Sua pintura pulsa, como se tomada por uma força arrebatadora, encerrando em si, o drama do homem ante à vida, que se lhe mostra inquietante, bela, fiel à proposta do seu autor.
Michelangelo procurou, incansavelmente, atingir à beleza perfeita, à promessa do ideal grego de estética. Tinha uma obsessão latente pela beleza masculina, dilatando-a e explorando-a na mais completa tradução. Por fora o artista trazia cicatrizes no rosto e na alma. Adorador do belo, o mestre viu o seu rosto deformado após ser agredido por um dos seus desafetos. Viu o corpo envelhecer e definhar-se na longevidade de vida que alcançou, quase noventa anos de uma existência angustiada. Viveu dramas políticos e ideais insólitos, amou à terra natal, Florença. Entregou-se às paixões proibidas da sua homossexualidade latente, muitas vezes dilacerando os sentimentos para proteger-se do seu tempo. Michelangelo buscava as respostas das tormentas da sua alma, era um homem instável e de arroubos tempestivos. Quando penetrava dentro de si mesmo, transbordava obras definitivas, de um poder criador magnânimo. De uma inspiração sublime, deixou-nos a melancolia irremediável que emana da “Pietá”; da perfeição humana diante de um “David” fulgente; ou do Cristo vingador e triunfante do afresco da Capela Sistina do “O Juízo Final”. Da construção da catedral de São Pedro, encomendada pelo papa Paulo III, à tumba inacabada da família Médici, a obra de Michelangelo traz a grandeza apaixonante da saga humana, conflitante com a beleza dos corpos e as imposições da alma, dos costumes e de uma sociedade caminhante para a generosidade trágica do viver. Michelangelo deixou, através da sua obra, o retrato das suas angústias, revelado na beleza fascinante de um mundo convulsivamente humano.

Formação na Escola de Lourenço de Médici

Michelangelo Buonarroti nasceu em 6 de março de 1475, em Caprise, na província de Florença. Nasceu em uma família de linhagem aristocrática antiga em Florença. Seu pai, Ludovico di Lionardo Buonarroti Simoni, era um homem violento, fervorosamente religioso. Aos seis anos, Michelangelo perdeu a mãe, sendo cuidado por uma ama de leite.
Já na escola, Michelangelo demonstrava a sua aptidão para as artes, enchendo os cadernos de desenhos, desligando-se das matérias ensinadas. A postura rendeu-lhe a perseguição do pai e dos irmãos, que não suportavam a idéia de ter um artista na família. Por causa dos desenhos, foi muitas vezes espancado, ora pelo pai, ora pelos irmãos. Mas a sua obstinação pela arte foi mais forte e, aos treze anos, venceu à resistência paterna, ingressando como aprendiz, no estúdio de Domenico Ghirlandaio, em Florença.
Ghirlandaio era considerado um mestre da pintura de Florença. A permanência de Michelangelo em seu estúdio foi curta, durando apenas um ano. Os motivos da sua saída seguem duas vertentes narrativas, uma de que teria sido pelo artista considerar as aulas de pintura lentas e limitadas, de preferir a escultura à pintura; outra versão é de que movido pelo ciúme, Ghirlandaio afastou o seu aluno, ao perceber que os trabalhos deste eram melhores que os seus. Nenhuma das versões são confirmadas por documentos históricos.
Ao deixar Ghirlandaio e à sua pintura, Michelangelo entrou para a escola de escultura que o mecenas Lourenço de Médici, o Magnífico, rico senhor e protetor das artes, matinha nos jardins de São Marcos, em Florença. Lourenço de Médici interessou-se pelo talento do novo estudante, hospedando-o em seu palácio. Michelangelo encontrou-se com a plenitude do Renascimento italiano, vivendo em um ambiente de atmosfera erudita e poética, ao lado da elite nobre e intelectual de Florença. Seria no convívio do palácio dos Médici, que Michelangelo assimilaria os alicerces renascentistas que caracterizariam as suas obras, abraçando o apego à natureza e ao ideal do homem perfeito, que deveria ser belo, bom e verdadeiro. Surge o seu primeiro trabalho na pedra, trazendo adolescentes atléticos, de beleza impassível, como deuses olímpicos envolvidos na perfeição dos corpos. Ao produzir “O Combate dos Centauros”, Michelangelo demonstrava a obsessão que o perseguiria para sempre, a de arrancar corpos carnosos e vivos do mármore, projetando dimensões espetaculares. Michelangelo traduzia, desde o inicio, a sua paixão pela escultura.

Do Profano ao Sacro

Michelangelo sempre demonstrou uma inquietude latente, sem muita paciência para o que considerava medíocre. Sua genialidade destacava-o dos demais alunos dos jardins de Lourenço de Médici, o que lhe fazia tempestivo e sem cordialidade com os menos talentosos, a quem ironizava sem diplomacia alguma. O temperamento franco valeu-lhe o confronto com Torrigiano dei Torrigiani, um vaidoso e agressivo companheiro de escola, que ao ver o seu trabalho ridicularizado, desferiu um golpe tão violento no rosto de Michelangelo, desfigurando-o para sempre o nariz. Amante da beleza e da sua perfeição, a deformação no rosto atormentaria Michelangelo para sempre, sem que jamais pudesse deixar de arranhar a sua sensibilidade.
O apogeu renascentista de Florença sofreu um grande golpe, em 1490, quando o monge Savonarola começou uma inflamada pregação mística, apregoando o ascetismo religioso, condenando a arte profana e perseguindo aos seus adeptos. Para piorar a situação, Lourenço de Médici morreu, em 1492, forçando Michelangelo a deixar o palácio. A revolução fanática de Savonarola explodiu em 1494, obrigando o artista, um mês antes, a fugir para Veneza. Ele só retornaria a Florença na primavera do ano seguinte, encontrando um ambiente tomado pelo fervor religioso, assistindo à queima de livros e quadros considerados como vaidades ofensivas à religiosidade. A inquietação rebelde de Michelangelo, fez com que ele, neste ambiente hostil, seguisse na contramão dos preconceitos, esculpindo “Cupido Adormecido”, uma obra pagã.
Diante de uma atmosfera tão conservadora e de fanatismo religioso, Michelangelo deixou Florença, seguindo para Roma, onde esculpiria duas belas obras, “Baco Bêbado” e “Adônis Morrendo”. A lembrança de Florença e do seu esplendor na época de Lourenço de Médici jamais abandonaria o artista.
Com o tempo, Savonarola e os seus seguidores passaram de perseguidores a perseguidos. Em 1498, após desafiar o papa Alexandre VI, o monge é queimado em praça pública. Nesta época Michelangelo já se tornara um homem triste e melancólico, tristeza esta expressada na melancolia sem fim da figura da sua obra “Pietá”. Por um instante, ele deixou o profano, debruçando-se com maestria sobre um tema clássico e religioso. A alegria esvaída não invalida a beleza cada vez mais perfeita de uma obra que parece jamais deixar de atingir um apogeu a cada novo trabalho. Na época da criação da Pietá, ninguém acreditava que um artista tão jovem pudesse conceber uma obra tão intensa, talhada para ser uma das mais belas já produzidas sobre o tema. Um jovem que, precocemente, entristecera a sua alma, mergulhando em um trabalho a vislumbrar obsessivamente a perfeição.

Obras Perfeitas Arrancadas do Mármore

Mesmo com a morte de Savonarola, Michelangelo continuou em Roma, envolto cada vez mais em uma tristeza crônica e numa ansiedade de moldar obras grandiosas, de belezas perfeitas, arrancadas da frieza do mármore, convertidas em figuras pulsantes, quase vivas.
Na primavera de 1501 Michelangelo retornou a Florença, para executar a obra que refletiria o amadurecimento da sua arte. Tomou para si um imenso bloco de mármore abandonado há quarenta anos, pertencente à catedral da cidade. O bloco tinha sido entregue a Duccio, para que nele fosse talhada a figura de um profeta, mas o escultor morrera repentinamente. Michelangelo trabalhou no bloco, modelando a grandiosidade da sua obra monumental. Usou a sua força física, com golpes intensos de martelo, que deixavam o mármore aos poucos, tomar forma de um homem perfeito, de plena exuberância das suas formas, surgia “David”, jovem e vigoroso a vencer o gigante Golias.
A estátua colossal deslumbrou uma comissão de artistas, que incluía Botticelli, Leonardo da Vinci, Perugino e Pilippino Lippi. Cercado pelo fascínio de todos, Michelangelo explicava a sua técnica diante do mármore bruto e da concepção da figura: “A figura já está na pedra, trata-se de arrancá-la para fora.
Ao ser questionado onde que se iria pôr a estátua de David, Michelangelo foi categórico, deveria ficar na praça central de Florença, a Piazza Della Signoria (Praça da Senhoria), em frente ao Palazzo Vecchio (Palácio Velho). Assim foi feito, a estátua ficou neste local de 1504 até 1873, quando foi transferida para a Galleria dell’Accademia, protegendo-a da depredação dos ataques constantes do povo, que consideraram a nudez do David um atentado à moral.

Encontro com o Papa, em Roma

Após o término da estátua colossal de David, concluída em 1504, Michelangelo retornou a Roma, em 1505, chamado pelo papa Júlio II. O pontífice encomendou-lhe um mausoléu monumental, digno da época áurea da Roma Antiga. Entusiasmado, o mestre partiu para Carrara, onde ficou oito meses, a conceber o projeto e a escolher o mármore que nele iria usar. Enormes blocos de pedra foram enviados para Roma, acumulando-se na Praça de São Pedro. Um desentendimento do escultor com Júlio II, fez com que este suspendesse a obra, em janeiro de 1506. No lugar do mausoléu, o papa decidiu reconstruir a Praça de São Pedro, sem consultar Michelangelo. O artista sentiu-se humilhado, além de ter ficado endividado. Sem alternativas, Michelangelo voltou para Florença.
A reconciliação com Júlio II viria algum tempo depois, quando este lhe encomendou uma estátua de bronze para a fachada da Igreja de São Petrônio, em Bolonha. Michelangelo protestou, pois não tinha técnica com o bronze, mas Júlio II insistiu no capricho, e durante quinze meses, o artista trabalhou arduamente na estátua, que seria erigida em 1508. A estátua de bronze de Júlio II teve apenas quatro anos de vida, sendo destruída, em dezembro de 1511, por políticos inimigos do papa, sendo o material usado para a construção de um canhão.
Ao voltar a Roma, Michelangelo teve, mais uma vez um pedido que não lhe agradou, vindo de Júlio II, o de decorar a abóbada da Capela Sistina. O artista menosprezava a pintura, não escondendo a sua paixão pela escultura. Tentou declinar da encomenda do papa, vociferando: “Não sou pintor, sou escultor.” Mas não conseguiu desvencilhar-se do trabalho e dos caprichos do papa. No dia 10 de maio de 1508, ele começou a produzir uma das mais grandiosas obras da sua autoria e da humanidade, os afrescos da Capela Sistina.

Michelangelo Pinta os Afrescos da Capela Sistina

Michelangelo dispensou os pintores que lhe haviam sido dados como ajudantes. Sozinho, começou a executar um trabalho fustigante, que lhe consumiria a alma e a saúde. Tornou-se herói de si mesmo, numa luta árdua entre a sua intuição criativa, a reprodução da criação e os limites do corpo e da existência. Michelangelo mergulhou nas entranhas da sua inspiração, arrancando dela um vasto cenário da existência do homem, com as suas tragédias, esperanças e promessas eternas. Mais do que decorar uma abóbada, ele retratou a própria humanidade, desde o princípio da criação às profecias da existência.
Michelangelo sofreu todas as vicissitudes de quem estava disposto a erigir uma obra grandiosa. Decidiu pintar não só a abóbada da capela, como às suas paredes. O trabalho era lento, exaustivo, quase imperceptível em seu avanço, o que fez com que Júlio II não lhe pagasse um tostão por mais de um ano. Michelangelo foi atormentado pela falta de dinheiro. Sofreu com a cobrança constante de Júlio II, que lhe perguntava, impacientemente, quando teria a capela pronta, aa que ele respondia com ironia: “Quando eu puder!”. Os momentos de tensão foram tão intensos entre dois, que o artista chegou a ser agredido pelo pontífice com golpes de bengala. Diante das animosidades, Michelangelo tentou fugir de Roma, mas foi impedido pelo papa, que lhe pediu desculpas e mandou que lhe fosse entregue a quantia de quinhentos ducados.
Após longos quatro anos de agonia, sofrimento e criatividade única, Michelangelo concluiu a sua obra. No dia 2 de novembro de 1512, o artista retirou os andaimes que encobriam a perspectiva total da obra, permitindo a presença do papa à capela, para que pudesse ver o resultado. A pintura trazia toda a trajetória humana, guiada pela plenitude do Criador. Trezentos personagens do Antigo Testamento desfilavam pela abóbada da capela, de 40 metros de largura por 13 de altura. Figuras dramáticas moviam-se em multidão, umas sentadas, outras que flutuavam. Michelangelo retratava Deus com um corpo vigoroso e retorcido, retesado no ato de criação do universo, a dar o toque vivificador, com a ponta do dedo, em Adão, primeiro ser vivente. Assim, os afrescos traziam os episódios do Gênesis, “A Criação”, “O Pecado” e o “Dilúvio”, acompanhados dos profetas. Nos quatro ângulos, reproduzia a libertação de Israel: a “Serpente de Bronze”, os “Triunfos de David”, “Judite” e “Ester”. Júlio II foi o primeiro a ter a visão de um esplendor criativo de beleza e genialidade jamais pensadas até então, imagem que conquistaria milhões de visões por mais de cinco séculos, atraindo e fascinando pessoas de todas as raças, credos e ideologias.

Esplendor nas Estátuas dos Mausoléus

Após quatro anos de sofrimentos, Michelangelo pôde, finalmente, sentir-se um vencedor diante da excepcional obra da Capela Sistina. Pôde respirar um pouco e descansar o corpo e a sua angústia existencial.
Mas o descanso durou pouco. Com a morte de Júlio II, em fevereiro de 1513, o artista assinou um contrato com a família do papa para executar, em sete anos, o antigo projeto do seu mausoléu. A obra final teria 32 grandes estátuas, constituindo o projeto que Michelangelo mais amou fazer. Logo criou a primeira estátua, “Moisés”, em cujos traços insinuou a fisionomia do papa. “Moisés” é considerada a mais perfeita obra de escultura de Michelangelo. Além desta figura, esculpiu para o mausoléu de Júlio II os dois célebres “Escravos”. Infelizmente a obra ficou inacabada. Sobre ela, Michelangelo falou, quando tinha 67 anos de idade: “Acho que perdi toda a minha juventude ligado a ela.
Michelangelo voltaria a ser chamado pelo papa Clemente VII, para um novo trabalho grandioso, construir a capela e a tumba dos Médici, em Florença. Para executar o trabalho, receberia uma pensão três vezes superior a que ele pedira. Assim, de 1523 a 1531, Michelangelo esculpiu as estátuas de Juliano e Lourenço de Médici, que alegoricamente representavam a Ação e o Pensamento, e as quatro sombrias estátuas de base, “O Dia”, “A Noite”, “A Aurora” e “O Crepúsculo”. Durante este período, Michelangelo interrompeu o trabalho em 1527, quando eclodiu uma guerra contra os Médici, em Florença e o artista ajudou os rebeldes, projetando a defesa da cidade, atitude que o fez fugir para Veneza. Restabelecida a paz, foi perdoado por Clemente VII, e voltou a trabalhar nas estátuas com furor. As obras do mausoléu dos Médici são magníficas, elas refletem a amargura, a perda da juventude e a melancolia calcada na alma do artista ao longo dos anos, das perdas e dos amores diluídos nas mentiras dos preconceitos.

O Juízo Final de Michelangelo

Com a morte de Clemente VII, em 1534, Michelangelo deixou Florença. O ódio que o Duque Alexandre de Médici lhe dedicava, impediria-o de retornar a Florença, sem que jamais pudesse rever à terra natal.
Após vinte anos de ausência, Michelangelo regressou a Roma, onde viveria até a sua morte. Era um homem de quase 60 anos, longe da juventude e sem saúde. Vivia amargurado, numa solidão cortante, sem a vitalidade e o prazer que dantes retirava da criação da sua arte.
Em Roma, travou amizade com Tommaso dei Cavalieri e com a Marquesa Vittoria Colonna, que lhe deu um certo alento diante da solidão à qual agarrara-se com fervor. Foi neste período que aceitou a oferta do papa Paulo III, que o nomeou, em 1535, arquiteto-chefe, escultor e pintor do palácio apostólico, passando a idealizar um novo planejamento para a Colina do Capitólio, em Roma, obra que jamais concluiu.
Sob o pontificado de Paulo III, Michelangelo pintou, entre 1536 e 1541, um grande afresco na parede do altar da Capela Sistina, o “Juízo Final”. Na obra, um belo e vigoroso Cristo aparece no plano superior, ladeado pelos escolhidos, trazendo consigo a vingança implacável contra os seus inimigos, Maria, assustada, não ousa a contemplar a cena; os anjos travam uma luta imarcescível contra os condenados. No plano inferior, os que não se salvaram caem nos domínios infernais. Todos os movimentos da humanidade estão retratados neste afresco, feito para ser um retrato religioso, mas que traz um sabor profano, já que o autor só pintou nus. Este fato causou tanta polêmica, que se chegou a cogitar a destruição da obra, pensada pelo papa Paulo IV. Felizmente, o pontífice decidiu-se por mandar o pintor Daniel de Volterra obscurecer os órgãos dos nus mais ousados. Só em 1993, quando o afresco foi restaurado, que a nudez original voltou a imperar, deixando algumas figuras ainda cobertas como registro histórico.
Cansado e envelhecido, Michelangelo continuou a esculpir obras, mesmo já avançado na idade. Durante toda a vida foi perseguido pela família de Júlio II, que através de inúmeros contratos assinados, exigiam o término do seu mausoléu. A obra, jamais acabada, consumiu anos do artista.
No fim da vida, Michelangelo voltou-se para o misticismo religioso, negando o mundo e o profano, perdidos no tempo, como a sua juventude. Passou os últimos anos a dedicar-se às cenas da paixão de Cristo. Aos 88 anos, elaborava uma nova “Pietá”, mas uma doença prendeu-o definitivamente à cama, onde se iria definhar. No leito de morte, ditou com absoluta lucidez, um comovente testamento, pedindo para regressar, ainda que morto, à Florença, sua terra natal, inesquecível palco da sua juventude e aprendizado. Em 18 de fevereiro de 1564, Michelangelo doou o seu corpo à terra e a alma a Deus, morrendo em Roma. Homem feio, de rosto desfigurado, Michelangelo reproduziu externamente a beleza que tinha interiormente, transformando as dores humanas em um idílio visual. Além de pintor e escultor, era um poeta, registrando em seus poemas uma sublime linguagem homoerótica. Viveu imerso nas angústias e no trabalho, próximo da morte registrou em um poema: “Na verdade, nunca houve um só dia que tenha sido totalmente meu”. Os dias de genialidade criativa de Michelangelo foram doados à humanidade, através da beleza universal das suas obras.


JAMES BOND – DAS PÁGINAS LITERÁRIAS PARA O CINEMA

junho 25, 2009
Há quase seis décadas que a personagem fictícia James Bond, agente secreto britânico, conhecido pelo código 007, vem conquistando legiões de fãs pelo mundo inteiro. Criado pelo escritor britânico Ian Fleming, James Bond surgiu pela primeira vez, na novela “Cassino Royale” (Casino Royale), publicada em 1953. Em 1962, James Bond chegou ao cinema, através do filme “O Satânico Dr. No” (Dr. No), transformando-se em um ícone das galerias dos heróis do mundo contemporâneo. Desde então, as suas aventuras jamais deixaram as telas de cinema, sendo interpretado por diferentes atores.
O sucesso literário e cinematográfico transformou a personagem em uma grande franquia. Mesmo após a morte de Ian Fleming, as suas aventuras continuaram a ser escritas por vários escritores. No cinema , a franquia continua a produzir grandes sucessos, sem arranhar a imagem do agente secreto, ou mesmo levá-la ao desgaste, façanha só possível pela genialidade criativa dos roteiros e a renovação constante dos intérpretes.
James Bond fascina pela inteligência e astúcia, charme carismático, aventuras perigosas e exóticas, pelas conquistas às mais belas mulheres. De humor sagaz e cavalheirismo incondicional, James Bond é fruto da Guerra Fria. Suas aventuras eram construídas na eterna luta ideológica entre o ocidente e a extinta União Soviética. Cabia a ele, sempre a serviço da rainha da Grã-Bretanha, de quem era súdito devotado, salvar o seu país e o mundo dos tentáculos dos espiões vindo do leste, do perigo comunista sobre o mundo capitalista e, principalmente, da paranóia iminente que assolava a mente de todos, trazendo o medo de uma guerra nuclear entre as potências antagônicas que desenharam os campos de batalhas da Guerra Fria. Por várias vezes James Bond, sozinho, salvou o mundo de uma catástrofe nuclear ou de tramas de espiões sem escrúpulos. Herói absoluto, deveu-se a ele a sobrevivência dos sonhos burgueses do mundo ocidental, e mesmo, da sobrevivência de regimes seculares, como o do Império Britânico.
Com a queda do muro de Berlim, em 1989, e o fim da Guerra Fria, James Bond parecia destinado a pedir a aposentadoria, e ser esquecido diante da globalização. O cinema levou quase meia década para criar fôlego e fazer dele um sobrevivente da extinção da Guerra Fria. Após a queda do regime dos países do leste europeu, 007 só voltaria às telas em 1995; revigorado e pronto para salvar o mundo dos novos inimigos, os terroristas, os detentores das tecnologias daninhas, enfim, os sucessores dos comunistas. Ainda há muitos perigos que ameaçam a segurança da existência humana no planeta, o mundo está longe de ser perfeito, e 007, com a sua sedução e charme, continua a aparar as arestas dessas imperfeições, salvando sozinho, o planeta, os seus governos e habitantes.

James Bond Torna-se o Agente 007

A saga de James Bond começou através de livros de bolsos, da autoria de Ian Fleming, publicados na Grã-Bretanha na década de 1950. Desde a publicação de “Cassino Royale”, em 1953, as aventuras do agente secreto caíram no gosto dos britânicos, fazendo muitos adeptos desta leitura.
Em seus livros, Ian Fleming descrevia James Bond como um homem viril, moreno, alto e de porte atlético, olhar penetrante e de carisma sedutor. Personagem contemporâneo, tinha entre 33 a 40 anos (quando do lançamento do livro, em 1953), o que se deduz ter nascido em 1920. As datas dão o perfil da personagem de Fleming, nascido após a Primeira Guerra Mundial, passará a infância no prelúdio de paz entre as guerras. Desaguou a juventude na Segunda Guerra Mundial, conflito que deixou profundas feridas na Grã-Bretanha. O pai trabalhava para um fabricante de armas, o que revela os meandros sombrios antes da guerra. Além de vender armas, o pai de Bond gostava de aventuras, sendo morto em um acidente, quando escalava montanhas com a Sra. Bond, uma mulher nascida na Suíça. A origem escocesa do pai de Bond, reza a tradição, teria sido uma homenagem de Fleming a Sean Connery, o primeiro ator a interpretar James Bond no cinema, nascido na Escócia.
Órfão aos onze anos, James Bond passaria por várias escolas tradicionais da Inglaterra, tendo alistado-se na Marinha Real durante a Segunda Guerra Mundial. Este fato reforça a data do seu nascimento citada acima. Será na marinha que Bond ascenderá ao posto de comandante. A passagem de Bond pela Marinha Real não deixa de ser uma lembrança romanceada da vida do próprio Ian Fleming, que teve as carreiras de jornalista e diretor interrompidas pela guerra, fazendo-o parte da reserva de voluntários da Marinha Real, em 1939. Mais tarde, exerceu um cargo administrativo na Inteligência Naval, onde realizava, algumas vezes, missões de campo, como invadir locais para fotografar documentos importantes. Tais experiências foram fundamentais para inspirar Fleming na criação da personagem de James Bond.
Uma outra peculiaridade que diz respeito a James Bond, seria a sua iniciação sexual, aos dezesseis anos de idade, quando perdeu a sua virgindade em Paris.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo foi divido entre duas potências, as ocidentais capitalistas lideradas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, e as comunistas, lideradas pela União Soviética. É neste período que James Bond passará a trabalhar para o Serviço Secreto de Inteligência Britânico (SIS, em inglês), fazendo parte dos serviços de espionagem da Sexta Divisão do Diretório da Inteligência Militar, o MI-6. Feito agente secreto, teve como primeiras tarefas o assassínio de inimigos da Inglaterra, o que lhe deu a designação permanente de agente 00, com licença para matar. Como era o sétimo agente, passou a ser conhecido pelo código 007.

Paralelo Entre James Bond e Ian Fleming

O nome James Bond não foi uma criação original da mente genial de Ian Fleming. Na biografia do autor, reza a tradição que James Bond era como se chamava o autor de “Birds of the West Indies”, livro predileto da esposa de Ian Fleming, e, que falava sobre a ornitologia dos anos 1950. No filme “Um Novo Dia Para Morrer” (Die Another Day), de 2002, há uma alusão ao fato, James Bond (Pierce Brosnan), em uma cena, segura o livro nas mãos.
Após o lançamento de “Cassino Royale”, em 1953, Ian Fleming escreveu anualmente, até a sua morte, quatorze livros tendo James Bond como protagonista, sendo doze novelas completas e dois livros de contos.
Muitas evidências fazem da personagem uma versão romanceada da vida do autor, acrescida de outras pessoas conhecidas. Nomes que se tornaram ícones do universo de James Bond são comuns na biografia de Fleming. Um exemplo era a sua casa na Jamaica, onde se refugiava para escrever os livros com as aventuras de 007, chamada de “GoldenEye”, nome utilizado pelo cinema no filme de 1995, que marcou a estréia de Pierce Brosnan como o quinto James Bond.
Ter um destino aventureiro sempre acompanhou a vida de Ian Fleming. Não se furtou às aventuras quando saiu da marinha, escalando montanhas, nadando com Jacques Cousteau, esquiando, sendo repórter e organizando expedições com amigos para lugares exóticos. Aventuras refletidas nas páginas que desvendavam 007, e as suas missões ao redor do mundo, em lugares exóticos, perigosos e paradisíacos. De Paris à Índia, de Tóquio ao Azerbaijão, passando por ilhas vulcânicas, James Bond percorreu o mundo para viver as suas aventuras, assim como o seu criador, Ian Fleming.
O James Bond dos livros de Ian Fleming traz uma atmosfera mais obscura, com uma visão mais realista da vida, distanciando-se da petulância e charme espontâneo da personagem vista no cinema. Traz um corpo atlético, complementado com as suas perícias em artes marciais. O Bond das páginas dos livros gosta de beber vodka e martini batidos, jamais mexido; não dispõe das grandes armas e dos complementos tecnológicos e científicos dos filmes, utilizando principalmente, a inteligência; é um exímio atirador e, apesar de não gostar de matar, não se sente intimidado ou arrependido quando o tem que fazer, cumprindo sem traumas ou complexos, às missões em que tem a licença para matar.

Os Livros de James Bond Escritos por Outros Autores

Foi na sua casa na Jamaica, que Fleming escreveu “Cassino Royale” e todos os livros com as aventura de Bond. Ali, retirava-se uma vez por ano para criar uma nova aventura do agente secreto mais famoso do mundo. Assim seria até 1964, quando Fleming morreu, vitimado por um ataque cardíaco. Tinha deixado doze livros. Após a sua morte, seus herdeiros publicaram dois livros sobre James Bond, “O Homem com Revólver de Ouro” (1965) e o livro de contos “Octupussy and The Living Daylights” (1966).
Com a morte de Ian Fleming, 007 tornou-se uma personagem de franquia. Seus herdeiros deram licença para que outros escritores criassem novos livros com as aventuras de James Bond. Assim, Kingsley Amis, amigo de Fleming, escreveu, sob o pseudônimo de Robert Markham, “Colonel Sun”, em 1968. Em 1973, John Pearson fez um livro como se fosse uma biografia do agente secreto, “James Bond: The Authorised Biography of 007”. John Edmund Gardner tomaria para si a missão de manter as aventuras de Bond, escrevendo quatorze livros de 1981 a 1996, aposentando-se por problemas de saúde. Raymond Benson deu seqüência à saga, escrevendo seis novelas e três contos, publicados em nove livros, de 1997 a 2002. Em 2008, devido às comemorações do centenário do nascimento de Ian Fleming, foi autorizado um novo livro sobre James Bond, escrito por Sebastian Faulks, “A Essência do Mal”, lançado em maio de 2008.

Os Vilões e os Aliados

O mundo que James Bond transita é complexo, movido pelos meandros dos jogos políticos e da espionagem estratégica. A vida do agente secreto é entrelaçada às missões e a diversas personagens, entre elas os aliados de trabalho, os mais temíveis vilões e as mais belas mulheres.
Se James Bond é um espião especial, além do comum, os seus inimigos ou aliados, não lhe ficam atrás. Entre os vilões mais expressivos, inesquecíveis do imaginário de 007, podemos destacar:
Ernst Stavro Blofeld – Líder da organização SPECTRE (Executiva Especial para Contra-Inteligência, Terrorismo, Vingança e Extorsão), sonha em dominar o mundo. É um homem calvo, com uma grande cicatriz na face. Apesar de uma fisionomia invulgar, Blofeld é mestre em disfarçar o rosto com maquilagens, máscaras, e até cirurgias plásticas. É reconhecido pelo seu apego a um gato persa. Foi este vilão o responsável pela morte de Tereza di Vicenzo, única mulher de James Bond.
Dr. Julius No – Cientista especializado em bombas atômicas, não possui as mãos, perdidas em um acidente.
Auric Goldfinger – Um dos mais cruéis vilões da saga de 007. É um reles contrabandista internacional e, simultaneamente um membro da SMERSH, uma agência de espionagem russa. Ao contrário dos agentes ocidentais, fiéis ao governo do seu país, os vilões comunistas das aventuras de Bond vendem a fidelidade à pátria pelo poder e glória do dinheiro. Goldfinger é obcecado por ouro e tem como comparsa o terrível Oddjob.
Max Zorin – É um perverso psicopata criado com a engenharia genética.
Dente de Aço – Um dos inimigos mais exótico e perigoso, dono de uma força incomum e ferocidade exacerbada. Traz dentes de aço na boca.
006 – Antigo agente do MI-6, que se vendeu para os inimigos da Rainha, traindo o seu país e os companheiros. Tornou-se um grande inimigo de 007.
Deixando os inimigos, vamos encontrar diversos aliados, cada um mais especial do que o outro, dotados de inteligência e segurança complementar, que ajudaram Bond a concretizar positivamente as suas missões. Entre os principais aliados estão:
M – Chefe do MI-6. Durante as aventuras de Bond, ele já trabalhou com vários Ms, que já foi um homem, outras vezes uma mulher. Trazem sempre o mesmo perfil, admiram James Bond, apesar de achá-lo frívolo e irresponsável em sua vida e hábitos pessoais.
Q – Chefe do Escritório Q, a divisão de pesquisa, tecnologia e desenvolvimento do MI-6. Q era o responsável pelos artefatos geniais que James Bond utilizava em suas missões. Ele sempre reclamava ao agente, para que não estragasse os seus sofisticados, caros e originais experimentos, no que nunca foi atendido. Durante anos Q foi único, só sendo substituído após a sua morte, por seu assistente R.
Money Penny – Assistente direta de M, é uma mulher recatada, embora fascinada por James Bond e por suas aventuras com as mulheres. Está sempre a duelar e flertar verbalmente com 007, mas nunca ultrapassa os limites de colega de trabalho do agente, exercendo com eficácia as suas obrigações profissionais.
Felix Leiter – Principal ajudante de Bond em suas missões de campo, tendo prestado os seus auxílios ao agente em cerca de oito missões.

James Bond no Cinema

Quando saltou das páginas dos livros para o cinema, James Bond tornou-se a personagem mais duradoura e de sucesso da sétima arte, constituindo uma mítica com várias tradições, exigidas sempre pelos milhões de expectadores que formam o seu público por todo o mundo.
A primeira aparição do agente secreto 007 diante de uma câmera foi numa fracassada série de televisão, que não passou do piloto. “Cassino Royale”, baseado no livro de Ian Fleming, foi produzido em 1954, pela CBS, tendo Barry Nelson como James Bond.
Em 1962, Ian Fleming teve o seu agente secreto adaptado para o cinema. Produzido por Harry Saltzman e Albert Broccoli, “O Satânico Dr. No” (Dr. No), estreou com grande sucesso. Trazia Sean Connery como James Bond, a personagem colar-se-ia a pele do ator, estigmatizando-o por quase uma década. Os produtores eram donos da produtora EON (Everything or Nothing), mediante o sucesso do primeiro filme, tornaram-se detentores dos direitos cinematográficos de quase toda a obra escrita por Ian Fleming. Os filmes de James Bond produzidos pela EON são os únicos considerados oficiais. Apenas três filmes não foram produzidos por esta produtora, sendo classificados como não oficiais: “Cassino Royale”, piloto para a televisão, feito pela CBS. Em 1954; “Cassino Royale”, uma paródia de 1967, e, “Nunca Mais Outra Vez”, de 1983, refilmagem de “007 Contra a Chantagem Atômica”.
Albert Broccoli e Harry Saltzman já são falecidos. Em 1975, Saltzman abandonou a franquia dos filmes. A filha de Albert Broccoli (falecido em 1996), Barbara Broccoli, e o seu meio irmão, Michael G. Wilson, passaram a produzir os filmes de James Bond a partir de 1995.
Desde a estréia no cinema, James Bond foi interpretado, nos filmes oficiais, por seis atores diferentes: Sean Connery (1962-1971, com intervalo em 1969), atuou em seis filmes (o sétimo, em 1983, não pertence aos filmes oficiais).; George Lazenby (1969), atuou em apenas um filme; Roger Moore (1973-1985), atuou em sete filmes, sendo o que ficou mais tempo a viver a personagem; Timothy Dalton (1987 – 1989), fez apenas dois filmes; Pierce Brosnan (1995-2002), atuou em quatro filmes; e, Daniel Craig, interpretando o papel desde 2006, já com dois filmes feitos. De Sean Connery a David Craig, cada ator adaptou a imagem e o corpo de James Bond ao tempo em que o interpretaram, sem jamais perder a essência do seu charme sedutor.
Houve ainda, a atuação de David Niven, em “Cassino Royale”, como James Bond, em 1967, produção que não faz parte dos filmes oficiais. Ironicamente, David Niven era o ator que Ian Fleming queria para interpretar a personagem por ele criada, devido ao seu porte de eterno cavalheiro.

Características Imprescindíveis dos Filmes de James Bond

Quando lançado, em 1962, “O Satânico Dr. No”, o primeiro filme de James Bond, teve uma aceitação instantânea. Aconteceu no ano em que a Guerra Fria quase chegou a uma catástrofe nuclear, com a crise deflagrada entre os Estados Unidos e a União Soviética por causa dos mísseis de Cuba. Nada mais oportuno do que um filme no qual o herói salvava o mundo do perigo atômico. Sean Connery, até então, um ator pouco conhecido, foi transformado em um ícone do cinema dos anos 1960.
A euforia causada pelo primeiro filme, moldou as características que os todos os outros viriam ter, tornando-se imprescindível sofisticá-las, sem nunca abandoná-las.
A primeira marca da filmografia de 007 vinha logo na abertura do filme, com uma vinheta inovadora, que apresentava dentro de um círculo James Bond de perfil, caminhando tranqüilamente, a vestir elegantemente um terno e a trazer um chapéu. De repente ele saca de uma arma, olha de frente e atira, sendo a imagem coberta por um efeito gráfico de uma cor vermelha. Esta vinheta persiste até os dias atuais. George Lazenby é o único que ao virar-se de frente, ajoelha-se e atira. James Bond perde o chapéu em 1973, com Roger Moore. Pierce Brosnan caminha mais apressado, fica totalmente ereto, sem arquear as pernas quando atira. O desenho gráfico da vinheta alterou-se significativamente com Daniel Craig.
Um filme de James Bond traz sempre uma ação acelerada, que após a vinheta, inicia-se veloz, com perseguições e saltos ousados, mostrando 007 a safar-se de um grande perigo, antes de desaguar na bela canção de apresentação dos créditos. O agente secreto salta do alto de montanhas, dos prédios, combate corpo a corpo, escapa aos tiros, tem pontaria certeira quando acossado pelo inimigo, com saídas espetaculares de último instante, ajudado por um artefato tecnológico de Q (ou R), dado logo no início. Combates mortais, perseguições de automóveis, barcos ou aviões, tudo serve para manter a tradição da ação. Bond é capaz de destruir toda uma cidade dentro de um tanque, e sair penteado, elegante, sem um arranhão ou poeira que lhe venha a ofuscar o charme.
A beleza visual reflete-se nos ternos elegantes que o agente usa, nos carros de luxo que ele dirige, que podem ser uma Ferrari ou uma Lótus Esprit. Dirige por estradas sinuosas e de belas paisagens, como as da riviera francesa e italiana, ou por exóticos locais tropicais. Freqüenta luxuosos hotéis e cassinos, assim como praias de raras belezas. Esteticamente, tudo é belo nos filmes de James Bond, das roupas ao agente, dos locais às mulheres. Só os vilões são feios, mas exóticos.
James Bond não se preocupa com a política ou com as ideologias do mundo, tem apenas que cumprir a missão para a qual foi destinado, fazendo-o com um humor sofisticado e irônico, fundamental para a composição do seu caráter. É sedutor e lânguido, causando impacto nas mulheres que conquista, com insinuações sexuais verbais, sem nunca ter cenas mais quentes de sexo e nudez, tudo é sugerido, jamais explorado explicitamente.
Além dos vilões exóticos e aliados eternos, um verdadeiro filme de James Bond traz a sua opositora, aquela que lhe fará tremer, causando-lhe grandes problemas quando estiver irremediavelmente atraído por ela. É a bond-girl, com quem o herói dividirá a aventura e o romance do filme. Ser uma bond-girl traz sempre prestígio para a atriz que a interpreta, o que suscita grande expectativa diante da escolha de uma intérprete, sendo tão importante quanto à escolha do próprio ator que viverá um novo James Bond. A bond-girl será o elo do agente secreto com a sensibilidade, tornando-o terno e apaixonado. As mais famosas bond-girls foram vividas pelas atrizes: Ursula Andress, Diana Rigg, Jane Seymour, Honor Blackman, Kim Basinger, Barbara Carrera, Mary Stavin, Maryam D’Abo, Halle Berry e Teri Hatcher.
As trilhas sonoras dos filmes de James Bond constituem grandes momentos, principalmente com a canção tema, que gerou clipes míticos, muitos inesquecíveis.

Os Intérpretes de James Bond

Sean Connery foi o primeiro a interpretar James Bond. Ian Fleming era contra que o ator fizesse o papel, vendo no britânico David Niven, o ator perfeito para dar rosto à personagem que criara nos livros. Sean Connery, um ator escocês, trazia uma sensualidade máscula que sabia impregnar muito bem na composição de James Bond. Foi a personagem de Fleming que fez de Sean Connery um astro. A vinculação da imagem do ator com a da personagem limitou, por muitos anos, que ele representasse papéis diferentes. Sean Connery, que tinha maiores ambições para a sua carreira, sentiu-se incomodado em fazer sempre a mesma personagem. Após fazer cinco filmes, ele deixou a série, sendo substituído por George Lazenby, em 1969. O público rejeitou o novo intérprete, e Sean Connery voltou a interpretar 007 em 1971, no mítico “Os Diamantes São Eternos”. Após o filme, deixou de vez a pele de James Bond, prometendo não mais interpretá-lo. Sean Connery tornou-se o intérprete de James Bond mais cultuado pelos fãs, que não se conformavam por ele ter abandonado a série. Em 1983, voltaria a viver, pela sétima vez, James Bond, no filme “007 – Nunca Mais Outra Vez” (Never Say Never Again), o título era um trocadilho irônico com as palavras de Sean Connery, que no passado tinha dito, “nunca mais” a James Bond. Nada mais era do que uma nova versão de “007 Contra a Chantagem Atômica” (Thunderball), que o próprio Connery protagonizara, em 1965. Esta volta atendeu a uma grande expectativa dos fãs. O filme não foi produzido pela EON, sendo considerado apócrifo à série, tendo, na época, gerado grande polêmica por causa dos direitos autorais. A imagem envelhecida de Sean Connery, o ator já estava calvo, tendo que usar peruca, quase arranhou a mítica que se gerara ao seu redor como o intérprete favorito de James Bond. Desde então, jamais se pediu para que o ator voltasse a viver James Bond. O tempo e a idade, convenceram os fãs de James Bond-Sean Connery, de que era hora de aposentá-lo. O agente secreto de Sean Connery era bem próximo à personagem descrita nos livros de Ian Fleming, com a exceção do humor que o ator emprestou ao agente, tornando-o menos obscuro.
George Lazenby, um ator australiano, foi escolhido para substituir Sean Connery, em 1969, no filme “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (On Her Majesty’s Secret Service). O ator tinha na bagagem apenas um filme italiano desconhecido e algumas aparições em comerciais de televisão. Foi escolhido pela semelhança com Sean Connery, que vista à luz do tempo, é praticamente inexistente. Acostumados com o James Bond de Connery, os fãs de 007 rejeitaram George Lazenby, ridicularizando-o. O ator, segundo algumas versões, não quis fazer o filme seguinte, alegando que James Bond era anacrônico diante do mundo que se desenhava, como o do festival de Woodstock, ou ainda, estaria preso a um contrato de quatorze filmes, e não queria viver a mesma personagem tantas vezes . Outra versão, a mais aceita e comentada, aponta para os produtores, que não ficaram satisfeitos com o resultado de bilheteria alcançado pelo filme, dispensando o ator logo a seguir. George Lazenby desapareceu do mundo do cinema desde então, destacando-se em papéis pouco marcantes na televisão. Apesar de ser o James Bond menos apreciado pelos fãs, a interpretação de George Lazenby é perfeita, em um filme demasidamente longo, mas com uma das melhores histórias de James Bond no cinema.
Roger Moore, em 1973, assumiria o papel de James Bond, sendo o interprete que demorou mais tempo a viver a personagem. Há versões de que Moore era o ator cotado para interpretar James Bond antes da escolha recair sobre Sean Connery, em 1962, mas ele, por compromissos com outros trabalhos, não pôde aceitar na época. O ator tirou a ironia impregnada por Sean Connery ao agente de sua majestade, transformando-o em um homem mais bondoso, com uma atmosfera de maior felicidade. Perdeu um certo cinismo insinuante do primeiro intérprete de 007. O longo tempo que Roger Moore interpretou James Bond, até 1985, deixou marcas indeléveis na personagem, provocando-lhe um desgaste na imagem, que perdia o prumo diante do envelhecimento a olhos vistos do ator. Roger Moore deixou a série aos 58 anos de idade, o que roubou todo o frescor juvenil da personagem. Nesta época os efeitos especiais sofisticavam-se, e com eles, a ousadia dos roteiros, como utilizar mais elementos da ficção científica. 007 entrou, na época, no mundo das aventuras espaciais, seguindo a tendência do mercado de filmes da segunda metade da década de 1970.
Timothy Dalton tornou-se, em 1987, o quarto James Bond. O ator tirou as rugas da personagem, impregnadas por Roger Moore e Sean Connery, na sua volta em 1983. Era a volta às origens literárias de James Bond, visto que Roger Moore descaracterizara-o ao viver aventuras cada vez mais distantes das propostas por Ian Fleming. Timothy Dalton, um ator britânico de formação shakespeareana, era um profundo conhecedor da obra de Fleming, o que lhe ajudou na composição da personagem. Num primeiro plano, o ator deu uma lufada na imagem de Bond, emprestando-lhe um certo aspecto sombrio e cínico. Estreado em 1987, “007 Marcado para a Morte ” (The Living Daylights), deparava-se com a época em que o mundo era assolado pela calamidade da Aids, doença que ainda não tinha tratamento e ceifava milhares de vida. Para seguir uma linha politicamente correta, o filme trazia um 007 menos envolvido em aventuras amorosas promíscuas. Poucas insinuações ao sexo foram feitas, pois o lema do momento era ser mais fiel, pois a Aids existia. Timothy Dalton atuou em dois filmes, sendo o segundo, de 1989. Foi nesta época que a Perestroika começava a fazer ruir o império soviético, cair muro de Berlim e extinguir a Guerra Fria. Os novos ventos da história traziam 007 de volta ao ocidente, sem função, praticamente aposentado, não havia mais comunistas para combater. Os filmes do agente ficariam parados por seis anos.
Pierce Brosnan foi, em 1995, o escolhido para viver James Bond, retomando a saga dos seus filmes, parada desde 1989. Uma das causas desse intervalo prolongado seria por causa da franquia, que se emperrara nos direitos autorais. Mas a verdade é que James Bond era fruto da Guerra Fria, com o seu fim, era preciso revigorá-lo, traçar-lhe um novo rumo e objetivos que lhe dessem sentido às aventuras. Pierce Brosnan era o ator favorito de Albert Broccoli para substituir Roger Moore, mas um contrato prendia o ator a uma série de sucesso na televisão, “Remington Steele”, da NBC, obrigando-o a declinar do convite, em 1987. Pierce Brosnan conquistou os fãs mais jovens de 007, que não viveram a idolatria a Sean Connery, tornando-se o ator preferido como intérprete de James Bond. O ator aflorou o sorriso cínico e inteligência mordaz de 007, desenvolvendo a personagem aos moldes da sua imagem, sem perder o caminho original dos livros de Fleming. Pierce Brosnan interpretaria James Bond quatro vezes, permanecendo até 2002. Foi poupado de uma possível decadência física na pele do agente secreto britânico. É o preferido dos fãs mais jovens de 007.
Daniel Craig tornou-se, em 2006, o sexto ator a interpretar James Bond. A escolha de Craig causou grandes protestos e a indignação dos fãs do agente, visto que o ator é loiro, e de baixa estatura. Apesar dos protestos, “Cassino Royale” foi um grande sucesso. O primeiro James Bond louro não arranhou a imagem do herói, o que deu passaporte para Craig viver, em 2008, a sua segunda aventura na pele de James Bond, no filme “Quantum of Solace”. Daniel Craig teria assinado contrato para fazer três filmes. Deu à imagem de 007 um ar frio, sem que lhe fosse tirado o prumo e cavalheirismo perene.
James Bond venceu não só diversos vilões, como a limitação do tempo em que foi criado, ultrapassando as tramas que envolviam a Guerra Fria, atualizando-se, sendo modernizado pelos roteiristas, tornando-se uma personagem do século XXI, apesar de moldar-se nas características do passado. Foram-lhe criados novos inimigos, arrancados das novas conjeturas ideológicas que se debruçam sobre o mundo, sem que se lhe elimine os elementos fundamentais e intocáveis. Se os seus intérpretes envelhecem, 007 tem o fascínio sedutor da juventude eterna, afinal ele é “Bond, James Bond”.

James Bond na Literatura

Livros Originais de Ian Fleming

1953 – Cassino Royale
1954 – Viva e Deixe Morrer
1955 – Moonraker
1956 – Os Diamantes São Eternos
1957 – Moscou Contra 007
1958 – 00 Contra o Satânico Dr. No
1959 – Goldfinger
1960 – Apenas Para Seus Olhos (contos)
1961 – Thunderball
1962 – O Espião que me Amava
1963 – A Serviço Secreto de Sua Majestade
1964 – Your Only Live Twice
1965 – O Homem com o Revólver de Ouro
1966 – Octopussy and The Living Daylights (contos)

Livro de Kingsley Amis (Robert Markham)

1968 – Colonel Sun

Livro de John Pearson

1973 – James Bond: The Authorised Biography of 007

Livros de John Edmund Gardner

1981 – Licença Renovada
1982 – Serviços Especiais
1983 – Missão no Gelo
1984 – Questão de Honra
1986 – Ninguém Vive para Sempre
1987 – Sem Acordos, Mr. Bond
1988 – Scorpius
1989 – Vença, Perca ou Morra
1990 – Brokenclaw
1991 – O Homem de Barbarossa
1992 – A Morte é Eterna
1993 – Nunca Envie Flores
1994 – Mar de Fogo
1996 – Cold

Livros de Raymond Benson

1997 – Blast From the Past (conto)
1997 – Zero Menos Dez
1998 – Os Fatos da Morte
1999 – Midsummer Night’s Doom (conto)
1999 – Live at Five (conto)
1999 – High Time to Kill
2000 – Doubleshot
2001 – Never Dream of Dying
2002 – O Homem com a Tatuagem Vermelha

Livro de Sebastian Faulks

2008 – A Essência do Mal

Filmografia de James Bond

Filmes Oficiais

1962 – O Satânico Dr. No (Dr. No) – Com Sean Connery
1963 – Moscou Contra 007 (From Rússia With Love) – Com Sean Connery
1964 – 007 Contra Goldfinger (Goldfinger) – Com Sean Connery
1965 – 007 Contra a Chantagem Atômica (Thunderball) – Com Sean Connery
1967 – Com 007 Só se Vive Duas Vezes (You Only Live Twice) – Com Sean Connery
1969 – 007 a Serviço Secreto de Sua Majestade (On Her Majesty’s Secret Service) – Com George Lazenby
1971 – Os Diamantes são Eternos (Diamonds are Forever) – Com Sean Connery
1973 – Com 007 Viva e Deixe Morrer (Live and Let Die) – Com Roger Moore
1974 – 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro (The Man With the Golden Gun) – Com Roger Moore
1977 – O Espião que me Amava (The Spy Who Loved Me) – Com Roger Moore
1979 – 007 Contra o Foguete da Morte (Moonraker) – Com Roger Moore
1981 – 007 Somente para Seus Olhos (For Your Eyes Only) – Com Roger Moore
1983 – 007 Contra Octopussy (Octopussy) – Com Roger Moore
1985 – 007 na Mira dos Assassinos (A View to a Kill) – Com Roger Moore
1987 – 007 Marcado para a Morte (The Living Daylights) – Com Timothy Dalton
1989 – 007 – Licença para Matar ( Licence to Kill) – Timothy Dalton
1995 – 007 Contra GoldenEye (GoldenEye) – Com Pierce Brosnan
1997 – 007 – O Amanhã Nunca Morre (Tomorrow Never Dies) – Com Pierce Brosnan
1999 – 007 – O Mundo não é o Bastante (The World is Not Enough) – Com Pierce Brosnan
2002 – 007 – Um Novo Dia Para Morrer (Die Another Day) – Com Pierce Brosnan
2006 – 007 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com Daniel Craig
2008 – 007 – Quantum of Solace (Quantum of Solace) – Com Daniel Craig

Filmes Não Oficiais

1954 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com Barry Nelson
1967 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com David Niven
1983 – 007 – Nunca Mais Outra Vez (Never Say Never Again) – Com Sean Connery


A FESTA DE BABETTE

junho 19, 2009
No fim dos anos oitenta o cinema dinamarquês passou a estar em evidência, deixando o registro de duas obras-primas: “Pelle, o Conquistador” e “A Festa de Babette”. Distanciando-se de uma Dinamarca contemporânea, os dois filmes, situados no século XIX, mostram um país fechado em suas limitações econômicas, na pobreza vigente de um povo e na riqueza humana, deflagrando personagens sublimes e inesquecíveis.
Filme dirigido por Gabriel Axel, “A Festa de Babette” (Babettes Gaestebud), 1987, foi inspirado no livro homônimo de Karen Blixen – pseudônimo da escritora dinamarquesa Isak Dinesen, alcançando grande sucesso internacional, recebendo vários prêmios, entre eles o Oscar de melhor filme de língua estrangeira.
A Festa de Babette” é um desses filmes que se nos impregna na memória, rasga a nossa pele indiferente, tornando-se reféns da sensibilidade e da emoção. A chave do seu segredo e dos das personagens está à mesa, em um jantar, na comida que se serve. Somos confrontados com um dos momentos de maior prazer do ser humano, o da comida, tantas vezes esquecido ou sublimado. É no banquete de Babette que se revela a vida esquecida das personagens, quer no passado ou em um sonho atrás da porta. É no prazer do gosto, do cheiro de tão atraentes pratos servidos, que quase sentimos o aroma espalhado pela platéia, que se descobre que a vida não é linear, que o cotidiano milenar pode ser interrompido a qualquer momento, revelando não só as obrigações sociais e religiosas de uma existência, como as surpresas do eu adormecido, dos sonhos do que se pretendeu ser e do que nos tornamos.
Babette, uma mulher marcada pela tragédia política do seu tempo, perde tudo, o marido, o filho, a pátria, a profissão de cozinheira de um sofisticado restaurante francês. Exilada na Jutlândia (Dinamarca), ela serve a duas irmãs solteironas, humildes, que não podem pagar pelos seus serviços. Mas Babette resigna-se, precisa apenas sobreviver, sem nunca perder a sua essência. Será ela quem trará para as vidas que a cerca, o momento da redenção ao prazer de viver. Será ela quem gastará uma pequena fortuna, a última da sua vida, em um faustoso jantar, no qual volta, por um dia, a ser ela mesma, despida da mulher exilada e sem raízes.
A Festa de Babette” é uma alegoria de cores pinceladas da rendição humana ante ao sonho e às surpresas da vida, decifradas nos pratos, nos cheiros, nos temperos de um jantar magnificente. É um momento que aguça todos os sentidos da platéia, maravilhada e pronta para degustar cada cena, cada imagem, cada personagem, num dos filmes mais sensíveis de todos os tempos.

Babette Refugia-se em Uma Aldeia da Dinamarca

Numa aldeia de pescadores na península da Jutlândia, no norte da Dinamarca, vivem as irmãs Philippa (Bodil Kjer) e Martina (Brigitte Federspiel), mulheres que chegaram à meia idade desprovidas das vaidades e das paixões. Filhas de um pastor tido na região como um profeta, fundador de uma seita, elas dedicaram a vida e a juventude em concretizar o sonho de pregação do pai, abdicando do amor, das paixões, do casamento e de uma família.
No universo das duas senhoras, inicia-se o filme, com uma voz feminina, em off, acompanhando a câmera, que mostra o andar compassado, de braços dados, das mulheres. Elas trazem nos rostos a expressão suave da bondade e da serenidade de vidas desprovidas dos arroubos passionais e das vaidades materiais. Saem de casa levando cestas nos braços, sendo acompanhadas pela câmera e pela voz em off, transitando pelas casas simples de uma aldeia.
Philippa e Martina, nomes dados em homenagem aos líderes históricos religiosos Felipe Melanchton e Martinho Lutero, gastam o pouco que têm com trabalhos beneficentes, apoiando idosos que não se podem sustentar. Por trás dos seus corpos envelhecidos e mentes bondosas, existiram no passado, duas mulheres de beleza singular, que fechados em um recato imposto pelo pai, não iam às festas ou às reuniões da aldeia. A beleza singela das duas atraía aos rapazes da aldeia, que freqüentavam o culto só para vê-las. Pretendentes não lhes faltaram, mas a todos o pai afastara, pois tinha destinado as filhas para o seu sacerdócio, para ajudantes do seu ministério, achando o casamento e o amor como fúteis frivolidades diante da santidade herdada da divindade de Deus. Assim, um a um, o pastor afastou os pretendentes das filhas, que aceitaram resignadas o destino escolhido pelo pai. Perderam a juventude, sozinhas e solteironas, abrindo as suas vidas para a caridade e a casa para o encontro das pessoas, onde podiam interpretar a palavra de Deus, honrando o espírito do pai, que mesmo depois de morto, continuava presente na vida religiosa de todos.
O cotidiano das duas irmãs será rompido, quando lhes bate à porta Babette (Stéphane Audran). Numa noite chuvosa, chega-lhes a elegante mulher francesa, fugitiva da guerra civil que se abatera sobre a França, em 1871. No furor da guerra, Babette perdera o marido e o filho, executados por suas posições políticas. A ela restara apenas a fuga. Recomendada por um amigo das irmãs Martina e Philippa, refugia-se como empregada na casa delas, passando a viver humildemente, oferecendo os seus trabalhos em troca de abrigo e de uns poucos vinténs. Babette é uma sobrevivente, resignada em um mundo distante do que sempre vivera. Mas a sua verve humana transformará o cotidiano das irmãs e dos que se lhe ladearam durante décadas, movidos pela força linear de um destino considerado imutável. Babette quebrará o que parece ser incondicionalmente linear na vida.

Personagens Reluzidos Pelos Silêncios

Aos poucos, a voz em off faz o contacto entre o espectador e o espaço temporal do filme, deixando que as imagens na tela encontrem o seu momento no tempo, descortinando em flash-back, memórias fragmentadas de vidas esquecidas em algum lugar da sala, do quarto, do passado.
A câmera desperta a cumplicidade de quem a segue, induzindo-nos ao universo cotidiano dos habitantes daquela aldeia de pescadores, volvida na suavidade bucólica dos costumes seculares.
Movidas pelo silêncio das personagens, as imagens compõem, em flash-back constante, o preenchimento desses vazios silenciosos. Passado e presente estimulam a imaginação do espectador, que faz com liberdade permitida, uma leitura própria de cada personagem.
Além das duas irmãs, outras personagens menores, mas igualmente fundamentais na história, são reveladas, como a do velho General Lorenz Lowenhielm (Jarl Kulle), que quando jovem vivia uma vida desregrada, sem perspectivas morais ou futuras, obrigando o pai a enviá-lo para a fazenda de uma tia, próxima à aldeia das irmãs. Ao exilar-se naquela fazenda, o jovem oficial refletia a sua vida, quando foi surpreendido, durante um passeio a cavalo, pela presença mágica da jovem Philippa. Movido por uma doce paixão, ele consegue que a tia o introduza na casa do severo pastor, participando das reuniões e das orações. A partir de então, Lorenz interfere no coração de Philippa, mas a determinação do pai em fazer dela uma mulher devota, sem os vícios da carne ou das tradições do matrimônio, afasta-a de um possível futuro ao lado do jovem. Lorenz passa a ver a amada como uma visão de uma vida futura, mais pura, fundamental para as mudanças no seu ser. O amor juvenil interrompido entre ambos não gerou a dor, a frustração, mas nunca abandonou a sensação de uma perda qualquer.
Os silêncios das personagens rompem-se em cada flash-back, como se procurasse o enredo, a verdadeira história perdida de cada um. Cortes freqüentes e seqüências rápidas, descortinam mais vidas, como a do cantor lírico Achille Papin (Jean-Philippe Lafont), que após encontrar a fama e o sucesso, percorrer vários lugares em turnês, encontra na costa da Jutlândia um momento de paz e descanso. Ali conhece a bela Martina, que lhe fascina pela voz e pela delicadeza. Fascinado, Achille consegue convencer o pastor a deixar que dê aulas de canto à filha, para que ela desenvolva o dom a serviço da pregação. Assim como Philippa, Martina será separada de uma vida futura com Achille em nome dos ideais religiosos do pai. Lorenz e Achille deixaram, em determinado momento do passado, de fazer parte do universo das irmãs, seguindo a vida, que não é reta e nunca pára. Ao deixar de conviver com eles, únicos homens que tocaram além da fé, abalando o coração de cada uma delas, uma nostalgia melancólica sempre soprou nas poucas vezes que elas ousaram rever o passado.

O Bilhete Premiado

Babette chegou à Jutlândia trazida pela chuva. Ao bater à porta de Philippa e Martina, trazia consigo uma carta de Achille Papin. Também o passado das irmãs voltava naquele momento. A carta revelava a triste história daquela mulher, que durante a guerra civil francesa, teve o marido e o filho mortos. Perseguida e sem ter para onde ir, partiu, por sugestão de Achille, para a Dinamarca.
Quando se vêem diante de tão requintada senhora a pedir emprego, as irmãs não se sentem capazes de pagar por seus serviços, pois vivem com muito pouco, e tudo que têm dedicam-no à caridade. Mas Babette não se importa, sobrevivera à morte, perdera tudo, era uma outra mulher, já não precisa das glórias de outrora, precisava apenas sentir-se viva, em segurança, abraçando uma vida humilde, despida de qualquer vestígio de um passado glorioso, reduzido à tragédia através dos conflitos ideológicos do seu país.
Aceita pelas irmãs, Babette inicia uma nova vida, distante daquela França tumultuada de 1871. Torna-se empregada da casa, servindo de cozinheira. Não se lamenta da sorte. Seu estoicismo é determinante para sobreviver. Sua vida está fragmentada na violência que presenciou aos que amava e no presente sem brilho, a servir duas irmãs no crepúsculo iminente de suas vidas.
Em nenhum momento o espectador vê em Babette uma mulher estagnada, pelo contrário, adivinha-se uma ruptura por vir, um lamento, uma explosão silenciosa que jamais eclode. Cada silêncio da personagem traduz-lhe um gesto, uma intenção que se deduz, sem nunca ser revelada. Da ligação com o passado, Babette mantém apenas um bilhete de loteria, que uma fiel amiga renova-lhe todo ano. Será este gesto, aparentemente sem significado, que mudará o percurso de toda a história, quando, catorze anos depois, finalmente chega a notícia de que o bilhete foi agraciado com um prêmio de dez mil francos.

O Centenário do Pastor

Ao saber do bilhete premiado de Babette, Philippa e Martina pressentem que ela irá embora, afinal já tem como voltar à terra natal, já não há uma guerra civil e ela já não tem limitações financeiras. Mas surpreendentemente, Babette não prepara as malas, sabe muito bem que não são as condições financeiras que a separa da sua terra, mas sim as perdas, as dores do tempo, o rompimento de um cotidiano de vida que já não existia. Já não há o que encontrar em França.
O prêmio de Babette veio por ocasião do aniversário do pastor, que se estivesse vivo, completaria cem anos. Para que não se passe em branco a data, Philippa e Martina decidem prestar uma homenagem ao pai, oferecendo um jantar para algumas pessoas da aldeia. É neste momento que se ascende o passado de Babette, que se encontra com a mulher que fora. É um raro momento de poder assumir uma identidade perdida no tempo. Afinal era uma data especial, o centenário do homem que, explicita ou implicitamente, mudara a vida de quase todos os moradores daquela aldeia, que seguiam os princípios rígidos de um cristianismo protestante por ele disseminado.
Inesperadamente, Babette pede às irmãs para fazer um banquete em homenagem à memória do pastor. Babette pede que se lhe conceda a honra de preparar e oferecer um verdadeiro jantar francês, utilizando-se do dinheiro que ganhara com o prêmio. Surpreendidas, as irmãs relutam, mas por fim, aceitam tão inusitado oferecimento.
A partir de então, o filme toma proporções lúdicas, acendendo a alegoria da existência humana através do prazer supremo de um suntuoso banquete. Os momentos que precedem ao banquete mudam o cotidiano de toda a cidade. Babette encomenda vinhos da França, codornas e carnes especiais. O jantar movimenta toda a aldeia, desde a seleção dos alimentos, à entrega de caixas vindas do exterior. As movimentações são visíveis a todos, devido às proporções gigantescas que assumem.
Diante de tanto movimento, Philippa e Martina temem o que pode sair de todo aquele aparato. Estão assustadas, parecem diante de atos desencadeados de um grande drama montado em um palco sem fim. Ante ao desconhecido que se irá desembocar, as irmãs trocam olhares temerosos, quase que arrependidos de terem cedido aos caprichos de Babette. Presumindo uma catástrofe iminente perante os convidados, elas decidem que nada falarão. Calar-se-ão sejam quais forem os resultados daquele banquete.

O Banquete

Entre o jantar e os momentos que o precede, as cenas assumem tomadas rápidas e ligeiras. As imagens retratam um aspecto minucioso, de um realismo e naturalismo mesclados, desencadeados pelo galope e o tilintar dos guizos dos cavalos que conduzem as carruagens que trazem os convidados; pelos sons da cozinha de Babette, desde o barulho das frituras ou da água a derramar-se sobre as tigelas. Cada detalhe da preparação do jantar é mostrado como uma apoteose dilacerante de Babette.
Doze convidados sentam-se à mesa. É a partir da sensação que têm entre o medo da surpresa e o hedonismo de degustarem tão opífaro banquete, que o filme atinge o seu clímax e desvenda a chave do seu mistério. Cada prato servido é mostrado, fazendo que o expectador sinta-se à mesa, capaz de sentir o aroma inebriante de cada um deles. O prazer oferecido pelo banquete de Babette rompe com o marasmo da vida de cada um dos convidados, provando-lhes que, somente a morte destituí qualquer surpresa da vida.
De repente aquela aldeia simples, perdida nas costas frias da Dinamarca, mostrada através do som das ondas do mar, do vento e da chuva, vê-se confrontada com um banquete inusitado, tornando-se um centro faustoso digno do mais requintado salão de Paris. Babette transforma a vida através do prazer primário que vem da comida, e do requinte perfulgente da arte de cozinhar. Abre-se a seqüência de imagens que trazem os pratos, a gradação do cozimento, a apresentação dos sabores, dos aromas que se nos induzem as imagens. O prazer humano é degustado sem medos, sem as amarras do pecado, a vida é resultado dos temperos que advêm das mãos dos homens, neste caso, das mãos delicadas e intuitivas de Babette.
É no meio do jantar que há o encontro entre o passado de Babette e a sua vida atual. O verdadeiro sentido do filme e das intenções de Babette são revelados no momento em que o general Lorenz, ao saborear cada um dos pratos e a deliciar-se com as bebidas, descreve que só sentira aquele prazer há muito tempo, em Paris, em um luxuoso jantar preparado pela maior chef de cuisine da França. A partir desta revelação, não compreendida pelos ingênuos e extasiados convidados, o telespectador encontra a outra Babette, perdida no tempo, mas decifrada naquele momento, em que a imagem descobre-a na cozinha, sendo outra vez, ela própria, sabendo sê-lo pela última vez. Gastara a pequena fortuna que ganhara para ver o prazer que despertava nas pessoas que saboreavam da sua arte, gastara tudo para voltar a ser, por uma noite, a Babette da qual se perdera no tempo e nas adversidades humanas.

O Encontro de Babette com o seu Passado

Quando o banquete é encerrado, tem-se a sensação de que se saboreou cada prato servido. Na sala, extasiados convidados sentem que a vida foi diferente naquele momento, que passado e presente encontraram-se por algumas horas, limando cada melancolia impregnada pelos anos. Agradecidos a Deus e a Babette, cantam um hino religioso, regado pelo sabor de um licor e do café.
Na cozinha, Babette olha para o vazio, como se buscasse a elegia final da sua existência. Sente que cumprira o seu destino, oferecera um momento de alegria e prazer às pessoas simples daquela aldeia com a mesma pompa que o fizera aos nobres freqüentadores do sofisticado “Café Anglais”, em Paris, onde fora uma famosa chef de cuisine.
Desvendado o seu passado pelo reconhecimento do paladar do general Lorenz, Babette tem um momento de puro encontro consigo própria. Toma um copo de vinho da última garrafa que restara. Momento único da procura pelo prazer que oferecera a todos. Olha para o vazio, sabia que ao terminar o vinho, encerraria de vez com o seu passado, jamais voltando a ele. Celebra a si mesma, antes de voltar ao cotidiano do dia seguinte, com a certeza de que a vida embora pareça linear, cavalga por surpresas e prazeres que reluzem a rendição humana, traduzida aqui nas suas alegorias em cada prato servido.

Ficha Técnica:

A Festa de Babette

Direção: Gabriel Axel
Ano: 1987
País: Dinamarca
Gênero: Drama
Duração: 102 minutos / cor
Título Original: Babettes Gaestebud
Roteiro: Gabriel Axel, baseado na obra de Isak Dinesen (Karen Blixen)
Produção: Just Betzer, Bo Christensen, Benni Korzen
Música: Per Norgaard (original), Johannes Brahms e Wolfgang Amadeus Mozart
Direção de Fotografia: Henning Kristiansen
Desenho de Produção: Jan Petersen, Sven Wichmann
Figurino: Annelise Hauberg, Karl Lagerfeld, Pia Myrdal
Edição: Finn Henriksen
Efeitos Especiais: Henning Bahs
Som: Hans-Eric Ahrn
Estúdio: Panorama Film International
Distribuição: Orion Classics
Elenco: Stéphane Audran, Brigitte Federspiel, Bodil Kjer, Jarl Kulle, Jean-Philippe Lafont, Bibi Andersson, Ghita Norby, Therese Hojgaard Christensen, Pouel Kern, Hanne Stensgaard, Vibeke Hastrup, Asta Esper Hagen Andersen, Thomas Antoni, Lars Lohmann, Tine Miehe-Renard, Lisbeth Movin, Holger Perfort, Preben Lerdorff Rye, Ebbe Rode, Erik Petersen, Else Petersen
Sinopse: A fim de escapar da uma repressão em Paris, em 1871, Babette desembarca numa noite de tempestade, em uma aldeia da Jutlândia. Procura as irmãs Martina e Philippa, puritanas senhoras filhas do pastor da região, apresentando-lhes uma carta de recomendação de Achille Papin, um cantor de ópera que, no passado, fora professor de canto de uma delas. Na carta, Papin pede-lhes que acolham Babette em sua casa. Babette pede a elas para trabalhar como criada, tendo em troca apenas um quarto para morar. Relutantes a principio, elas aceitam Babette. Anos mais tarde, Babette ganha um prêmio na loteria. Inesperadamente, resolve gastar todo o dinheiro em um jantar francês, para comemorar o centenário de nascimento do falecido pastor. Os convidados para o jantar, pessoas simples, não conheciam a culinária francesa, os pratos sofisticados que eram servidos no Café Anglais, lugar onde Babette trabalhara como cozinheira. Assim, com a habilidade de fazer as pessoas sentirem prazer através do paladar, Babette transforma o jantar em um banquete que as duas irmãs e os habitantes da pequena aldeia jamais esquecerão.

Gabriel Axel

Gabriel Axel nasceu em Aarhus, Dinamarca, em 18 de abril de 1918. Grande nome do cinema europeu, tornou-se mundialmente conhecido através do filme “A Festa de Babette” (Babettes Gaestebud), de 1987.
Axel passou a maior parte da infância na França, longe da sua terra natal. Em Paris trabalhou no teatro, com Louis Jouvet, o que lhe fez desenvolver o amor pela dramaturgia. Quando retornou para a Dinamarca, trabalhou como ator no Royal Danish Theatre.
Na Dinamarca, Gabriel Axel atuou como diretor de produções de teatro, televisão e cinema. Após dirigir cerca de 16 filmes, retornou à França, onde dirigiu vários projetos para a televisão, construindo um trabalho respeitado e reconhecido pela crítica, obtendo, ao longo da carreira, várias menções honrosas.
A consagração definitiva veio com o filme “A Festa de Babette”, adaptação do livro de Isak Dinesen. O filme conquistou platéias do mundo inteiro, arrebatando o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1988. Na filmografia de Axel, constam sucessos como “Familien Gyldekál” (1975), “Den Rode Kappe” (1967) e “Det Kaere Legetoj” (1968).
Em 2003, Gabriel Axel recebeu prêmio especial pelo conjunto da sua obra no Festival Internacional de Cinema de Copenhague.

Filmografia de Gabriel Axel:

Filmes para a Televisão

1951 – Doden
1952 – Pantalones Bryllup
1952 – Forlovelse Indgaet
1952 – Skyggedans
1952 – Aften
1953 – Et Spil
1953 – En Bjorn
1953 – Hallo, Derude
1953 – Falske Nogler
1953 – Familien Hansen
1953 – Kong Renés Datter
1954 – En Svanesang
1954 – Hvem Ved?
1954 – En Mindefest
1954 – Livet er Skont
1954 – Lapointe og Ropiteau
1954 – Li Som Lidt Ensom
1954 – Tran
1954 – Acharnerne
1955 – En Skefuld Katharsis
1955 – Marguerite
1955 – Motivet
1955 – En Caprice
1955 – En Kvinde er Overflodig
1955 – Altid Ballade
1955 – Scarpins Gavtyvestreger
1955 – Simon og Laura
1956 – Det er Sa Yndigt
1956 – Dronninger af Grankrig
1956 – Doden
1956 – Falske Nogler
1956 – Kong Renées Datter
1956 – Froken Julie
1958 – Mode Ved Midnat
1966 – Om Tobakkens Skadelige Virkninger
1968 – Boubouroche
1977 – Un Crime de Notre Temps
1978 – La Ronde de Nuit
1980 – Le Coq de Bruyère
1980 – Le Curé de Tours
1981 – La Ramandeuse
1981 – Antoine et Julie

Filmes para o Cinema

1957 – En Kvinde er Overflodig
1958 – Guld og Gronne Skove
1959 – Heller for Helene
1960 – Flemming og Kvid
1962 – Det Tossede Paradis
1962 – Oskar
1963 – Vi Har det jo Dejligt
1963 – Tre Piger i Paris
1964 – Paradis Retur
1967 – Den Rode Kappe
1968 – Det Caeré Legetoj
1970 – The Ways of Women
1970 – Amour
1971 – Med Kaerlig Hilsen
1972 – Die Auto-Nummer – Sex Auf Radern
1975 – Familien Gyldenkal
1976 – Familien Gyldenkal Spraenger Banken
1977 – Alt pa er Braet
1987 – Babettes Gaestebud (A Festa de Babette)
1989 – Christian
1994 – The Prince of Jutland (Jutland – Reinado de Ódio)
1995 – Lumière et Compagnie (Lumière e Companhia)
2001 – Leila

Séries para a Televisão

1965 – Regnvejr og Ingen Penge
1981 – Mon Meilleur Noel (episódio: L’Oiseau Bleu)
1985 – Les Colonnes du Ciel (episódios: La Saison des Loups, La Lumière du Lac, La Femme de Guerre, Marie Bon Pain)
1986 – Les Colonnes du Ciel (episódio: Compagnons du Nouveau Monde)


OVOS FABERGÉ – O ÚLTIMO ESPLENDOR DA RÚSSIA CZARISTA

maio 27, 2009
A Páscoa é a data litúrgica mais importante da Igreja Ortodoxa Russa. Momento de festejos e confraternizações, tendo como tradição a troca de ovos de galinha decorados, que representam o símbolo da vida renovada pela esperança. Quando o czar Alexandre III, em 1885, em comemoração à Páscoa, pediu ao joalheiro Peter Karl Fabergé, que fizesse uma jóia em forma de ovo para presentear a esposa, a czarina Maria Feodorovna, não sabia que se iria criar a tradição dos ovos imperiais Fabergé, verdadeiras obras de arte da joalheria universal, com peças únicas, de uma beleza imarcescível e de valor exorbitante.
A mística criada em torno dos ovos Fabergé sobreviveu ao fim do Império Russo, atravessou o tempo, mantendo-se como jóias raras e cobiçadas por colecionadores milionários. As peças têm cerca de 13 centímetros, feitas de metais de prata, ouro, níquel, platina ou cobre, decoradas com desenhos em detalhes coloridos, crivados de pedras preciosas como o quartzo, rubi, ágata, diamante, jade e lápis-lazúli. A genialidade de Fabergé criou mais de 140 tonalidades nas peças. Dentro dos ovos haviam miniaturas surpresas, confeccionadas por metais nobres e pedras preciosas.
Os ovos Fabergé foram todos criados para os czares Alexandre III e Nicolau II, pai e filho respectivamente, no período de 1885 a 1917, sendo oferecidos durante a Páscoa entre os membros da família real. Com a Revolução Russa, de 1917, Fabergé exilou-se na Suíça. Após os conflitos revolucionários, os cobiçados ovos foram expropriados à família imperial, alguns foram perdidos durante as pilhagens aos palácios, não se sabendo onde estão.
Tidos como expoentes da arte joalheira, os ovos imperiais Fabergé são hoje disputados por colecionadores de todo o mundo, alcançando grandes valores no mercado que negocia obras de arte. A Casa Fabergé persistiu ao tempo e às revoluções, sendo representada na França, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Nos dias atuais, produz séries limitadas de ovos, reproduzindo os desenhos originais das jóias imperiais russas dos séculos XIX e XX.
A lenda em torno dos ovos Fabergé é um dos enigmas dos tempos atuais. Sua beleza é ao mesmo tempo, o símbolo de uma opulência final, terminada com a tragédia do fuzilamento do último czar russo e de toda a família imperial. As jóias representam o último esplendor da dinastia czarista, então decadente e pronta para mergulhar nas trevas da história. A perfeição da beleza sedutora e mágica dos ovos ofusca a mística em torno dos extintos czares russos e da própria família Romanov.

O Primeiro Ovo Imperial

Peter Karl Fabergé nasceu em 18 de maio de 1846 do antigo calendário Juliano, adotado na época pela Rússia, ou, em 30 de maio, do calendário Gregoriano. Teria como nome de batismo Karl Gustavoich Fabergé. O pai, Gustav Fabergé, estabeleceu um bem sucedido negócio de jóias, em 1942, em São Petersburgo, que lhe permitiu enviar o filho para estudar na França, Inglaterra, Alemanha e Itália.
Aos 24 anos, em 1870, Fabergé herdou os negócios do pai, assumindo-os com maestria e, em pouco tempo, alcançando prestígio de grande joalheiro tanto na Rússia como em muitos países da Europa. Mediante ao reconhecimento do seu trabalho, Fabergé tornou-se o joalheiro oficial da corte imperial russa, em 1882.
Em 1885, Fabergé recebeu do czar Alexandre III, a encomenda de uma jóia em forma de ovo, para que pudesse dar à czarina, Maria Feodorovna, como presente de Páscoa. A tradição russa de trocar ovos de galinha decorados na Páscoa é comum aos cristãos ortodoxos. Inspirado na decoração milenar dos ovos, Fabergé e os seus artesãos criaram uma jóia única, de rara beleza, que viria a ser o primeiro ovo imperial. Aparentemente, a jóia parecia um pequeno ovo, lavrado em ouro e platina, esmaltado, mas ao ser aberto, revelava o seu magnetismo de beleza e originalidade, em que se apresentava uma gema de ouro, que dentro trazia uma miniatura em forma de galinha, com olhos de rubi e uma réplica em diamante da coroa imperial.
A imperatriz ficou fascinada com a beleza da jóia, levando o czar a encomendar a Fabergé, todos os anos, durante a Páscoa, um ovo para presentear Maria Feodorovna. O imperador exigiu de Fabergé que cada ovo fosse único e que tivesse uma surpresa dentro. Iniciava-se assim, a tradição dos ovos Fabergé na corte czarista, que a cada ano, trazia uma temática diferente. A tradição permaneceria após a morte de Alexandre III, seguida pelo sucessor, seu filho Nicolau II, persistindo de 1885, até a queda do império, em 1917.

A Expansão da Joalheria Fabergé

Por dez anos consecutivos, Alexandre III presenteou à mulher, durante a Páscoa, com um ovo Fabergé. O imperador morreria subitamente no final de 1894, sendo o “Ovo Renascença”, o último que deu a Maria Feodorovna.
Nicolau II, ao assumir o trono, continuou a tradição de oferecer um ovo Fabergé à família, durante a Páscoa. A coroação de Nicolau II seria tema de um dos ovos imperiais. O novo czar tomou como esposa Alexandra Feodorovna.
Ano após ano, Fabergé e os seus artesãos surpreendiam com obras únicas, com motivos temáticos inesgotáveis, de genial criatividade e talento técnico beirando à perfeição. Os ovos Fabergé passaram a ser cobiçados por toda a corte czarista. Com a subida de Nicolau II ao poder, Fabergé passou a criar dois ovos anualmente, um para a nova czarina, Alexandra Feodorovna, outro para a mãe do czar, a viúva de Alexandre III.
Para não repetir os motivos temáticos dos ovos, Fabergé buscava inspiração no cotidiano da vida do czar e da czarina, e, em momentos da história da Rússia, exaltando obras, como a inauguração da estrada de ferro Transiberiana, que ligava Moscou à Sibéria, ou ainda, a geografia russa, como o Cáucaso.
Os ovos imperiais Fabergé, foram mostrados ao mundo, pela primeira vez, em 1900, na Exposição Universal de Paris, na França. A exuberância e beleza das jóias fascinaram os europeus, ganhando prêmios e honras, fazendo com que as jóias Fabergé alcançassem prestígio e fama por todo o continente.
Após a exposição de Paris, Fabergé ampliou consideravelmente os seus negócios, abrindo ateliês em Moscou, Kiev e Londres, em 1906. A supervisão desses ateliês era feita pelo próprio Fabergé. Neles eram produzidos baixelas de jantar, objetos de decoração, relógios, cigarreiras e isqueiros.
Grandes artesãos faziam parte da equipe de Fabergé, entre eles Michael Perkhin, Erik August Kollin e Henrik Wigström, que trabalhavam com exclusividade na criação de um tema escolhido para a confecção de um ovo, que a cada ano ficavam mais exóticos, atingindo a perfeição técnica, o apogeu do artesanato na confecção de jóias. A partir da fama que despertou os ovos czaristas, Fabergé passou a ser procurado por dezenas de clientes particulares, ávidos em adquirir suas jóias imponentes.

A Queda do Czar e o Fechamento da Joalheria

Enquanto a joalheria de Fabergé alcançava um apogeu, o Império Russo entrava em vertiginosa decadência. A criatividade genial de Fabergé exaltava os feitos do czar e da sua família, transformando-os em sofisticadas jóias de presentes de Páscoa; mas a insatisfação da população russa minava esta imagem de opulência, transformando Nicolau II em um dos homens mais impopulares da história do país. Cada vez mais distante do seu papel histórico, o czar viu-se isolado, mostrando-se fraco e de atitudes contraditórias. Envolveu a Rússia na Primeira Guerra Mundial, que ceifou milhares de vidas, trazendo grande humilhação para um povo carente e empobrecido.
A guerra afetou a obra de Fabergé, que se viu obrigado a utilizar com mais freqüência, materiais semipreciosos. A Rússia foi assolada pela fome, pela morte dos seus cidadãos nos campos de batalha, pela caótica administração de um czar fraco e impopular. Enquanto a população faminta invadia e saqueava as grandes cidades, Fabergé confeccionava os últimos ovos imperiais. As jóias ligar-se-iam para sempre à imagem da decadência do Império Russo, paradoxalmente tornando visível a miséria da população e a opulência de um regime falido.
Diante do cenário conturbado que se vivia, com greves e revoltas populares que levariam à queda do czar, Fabergé decidiu pelo fechamento da sua joalheria, em 1916, vista pelos revolucionários como símbolo da abundância corrupta da monarquia czarista. No dia 15 de março de 1917, sem apoio e prestígio, tanto da aristocracia quanto da população, Nicolau II abdicou. O czar e a sua família foram presos e enviados para a Sibéria.
A queda de Nicolau II, pouco antes da Páscoa de 1917, deixou os dois ovos imperiais daquele ano apenas na encomenda, eles tinham como temáticas “Madeira de Karelia” e “Constelação”.

A Mística dos Ovos Fabergé

Com a Revolução Russa, extinguir-se-ia a tradição dos ovos imperiais Fabergé como presentes de Páscoa. Nicolau II entraria para a história como o último czar da Rússia. No dia 17 de julho de 1918, Nicolau II, a czarina Alexandra Feodorovna e os seus cinco filhos, foram executados por um exército furioso de revolucionários.
Da tragédia dos Romanov, Maria Feodorovna, mãe de Nicolau II e viúva de Alexandre III, foi a única que escapou à vingança revolucionária, fugindo para a Inglaterra, a bordo do navio “Marlborough”. A rainha mãe ao fugir, levou consigo o “Ovo da Ordem de São Jorge”, o último que recebeu do filho, nas Páscoa de 1916.
Os outros ovos foram, em sua maioria, confiscados pelo novo governo estabelecido pela revolução, sendo enviados para o Kremlin, em Moscou. Muitos desapareceram durante os saques aos palácios dos Romanov.
Conseqüentemente, a Revolução Bolchevique transformou os ovos imperiais em objetos burgueses e sem função na nova história que se construía na Rússia, tirando-lhes o valor artístico e econômico, desvalorizando-os no mercado.
Fabergé teve o filho Agathon preso pelos revolucionários. Sua libertação foi negociada quando aceitou avaliar as jóias e pedras preciosas confiscadas aos nobres. Após executar este trabalho, Agathon foi anistiado.
Na Rússia bolchevique não havia mais espaço para Fabergé, considerado como autor de objetos fúteis e de luxuriante opulência burguesa. Sua arte de nada valeria para o ascetismo ideológico vigente. Fabergé exilou-se em Lausanne, na Suíça, vindo a falecer nesta cidade, em 1920.
Decorridas muitas décadas da Revolução Russa, os ovos Fabergé passaram a fazer parte do imaginário, dos mistérios e lendas que foram criados em torno dos malogrados Romanov. Não só a beleza estética das peças, como o significado histórico que representam e à tragédia que permeiam misticamente, fizeram dos ovos imperiais tesouros exorbitantemente valiosos, disputados por colecionadores de todo o planeta. Quando leiloados, são vendidos por grandes fortunas. Em 1992, um ovo Fabergé leiloado em Nova York atingiu o valor de 3 milhões de dólares; em 1994, um outro, leiloado na Suíça, foi vendido por 5 milhões de dólares; em 2002, um ovo imperial foi arrematado em leilão da casa Christie’s por 9,6 milhões de dólares. O mais caro de todos os ovos Fabergé foi vendido em leilão da casa Sotheby’s, por mais de 24 milhões de dólares, ele traz a figura da carruagem em que a czarina Alexandra Feodorovna passeava por Moscou.
Estimativas históricas registram que, entre 1885 e 1917, 56 ovos imperiais Fabergé teriam sido confeccionados. No fim do século XX, até 1998, 44 exemplares tinham sido localizados. Todas as peças foram feitas para os czares Alexandre III e Nicolau II.

Ovos Imperiais Fabergé

Ovos de Alexandre III presenteados à esposa, a imperatriz Maria Feodorovna:

1885 – O Primeiro Ovo Imperial – Galinha
1886 – O Segundo Ovo – Galinha com pendente de safira *
1887 – Ovo Relógio da Serpente Azul
1888 – Ovo Querubim e Carruagem *
1889 – Ovo Nécessaire *
1890 – Ovo Palácios Dinamarqueses
1891 – Ovo Memória de Azov
1892 – Ovo Diamantes Incrustados
1893 – Ovo Cáucaso
1894 – Ovo Renascença

Ovos de Nicolau II presenteados à esposa, a imperatriz Alexandra Feodorovna, e à mãe Maria Feodorovna:

1895 – Ovo Botão de Rosa
1895 – Ovo Doze Monogramas
1896 – Ovo Miniaturas Giratórias
1896 – Ovo Alexandre III *
1897 – Ovo Coroação
1897 – Ovo Muget *
1898 – Ovo Pelicano de Ouro
1898 – Ovo Vale dos Lírios
1899 – Ovo Relógio Bouquet de Lírios
1899 – Ovo Amores Perfeitos
1900 – Ovo Ferrovia Transiberiana
1900 – Ovo Cuco
1901 – Ovo Cesto de Flores Silvestres
1901 – Ovo Palácio Gatchina
1902 – Ovo Trevo
1902 – Ovo Empire Nephrite *
1903 – Ovo Pedro, o Grande
1903 – Ovo Jubileu Dinamarquês *
1904 – Desconhecido ?
1904 – Desconhecido ?
1905 – Desconhecido ?
1905 – Desconhecido ?
1906 – Ovo Kremlin de Moscou
1906 – Ovo Cisne
1907 – Ovo Grinaldas de Rosas
1907 – Ovo Troféu do Amor
1908 – Ovo Palácio Alexander
1908 – Ovo Pavão
1909 – Ovo Iate
1909 – Ovo Comemorativo de Alexandre III *
1910 – Ovo Colunas
1910 – Ovo Eqüestre Alexandre III
1911 – Ovo 15º Aniversário
1911 – Ovo Loureiro
1912 – Ovo Czarevich
1912 – Ovo Napoleônico
1913 – Ovo Tricentenário Romanov
1913 – Ovo Inverno
1914 – Ovo Mosaico
1914 – Ovo Catarina a Grande ou Grisaille
1915 – Ovo Cruz Vermelha com Tríptico da Ressurreição
1915 – Ovo Cruz Vermelha com Retratos Imperiais
1916 – Ovo Militar em Aço
1916 – Ovo Ordem de São Jorge
1917 – Ovo Madeira de Karelia (apenas encomendado)
1917 – Ovo Constelação (apenas encomendado)

* Desaparecido