ÁLIBI – O ÁLBUM QUE TRANSFORMOU A MPB EM VOZ FEMININA

Em novembro de 1978, Maria Bethânia fazia uma apresentação para o programa “Fantástico”, TV Globo, cantando “Cálice”, a música proibida pela ditadura militar. Estava lançado oficialmente o álbum “Álibi”, que se transformaria no mais bem sucedido da carreira da cantora, mudando de vez a estrutura da Música Popular Brasileira, transformando-a em uma voz feminina.
Álibi” passaria do milhão de cópias vendidas, sendo o primeiro disco de uma mulher a atingir esta marca no Brasil, um feito até então, exclusivo de Roberto Carlos. “Álibi” não foi revolucionário por sua estrutura musical, mas por derrubar de vez o estigma do elitismo da MPB, provando que qualidade e grande público poderiam caminhar lado a lado, e uma grande cantora poderia ir além de um público exclusivo.
Álibi” atingiu as grandes massas, fazendo com que o Brasil ouvisse MPB. A partir do sucesso deste álbum, outros cantores passaram a ser ouvidos e a ter os seus álbuns adquiridos por um grande número de pessoas. No final da década de setenta acabava o monopólio da música de língua inglesa, e, pela primeira vez, a MPB passou a ser a música mais consumida no país.
Álibi” transformou Maria Bethânia, até então uma cantora de elite e de público definido, na mais popular do país. Se Roberto Carlos era o rei, Maria Bethânia passou a ser a rainha, título que sustentaria absoluta por dois anos consecutivos. A repressão sufocara a MPB durante toda a década, sendo o veiculo cultural que mais sofreu com a censura. Em 1978 começou a abertura política, extinguiu-se o AI-5, que no primeiro dia de 1979 passou a não existir. “Álibi” mostra esta vertente da nova fase da MPB, que voltaria a ter força diante da juventude e a conduzir os protestos contra a ditadura. Outra característica do álbum é ser o primeiro a consolidar a importância da mulher no cenário musical, que desde então, destronou os homens, e a nossa MPB passou a ser, principalmente, a voz de várias mulheres, uma voz essencialmente feminina.

Ampliando o Horizonte do Seu Repertório

Maria Bethânia começa o álbum a surpreender. Deixa de vez os textos poéticos que declamava nos seus álbuns anteriores, ultrapassa a linha demarcada por seu teatro musical e, seguindo o que fora proposto em “Pássaro Proibido” (1976), cria um álbum voltado apenas para a música. Já na primeira faixa, “Diamante Verdadeiro” (Caetano Veloso), ela inova, buscando uma canção que geralmente fazia parte do repertório de Gal Costa, mostrando-se mais jovial e hermética, mas sem o intimismo da voz cristalina da amiga baiana. O violão de Rosinha de Valença tira a estética Caetano Veloso-Gal Costa da canção, fazendo-a sob medida para a dramaticidade habitual de Maria Bethânia. E bailamos deliciosamente pelas montanhas de neve derretidas pela voz da cantora, deixamos que ela nos conduza no diamante verdadeiro que seria aquele álbum, apenas no início.
Álibi” (Djavan), faixa que dava título ao álbum, trazia uma mensagem sôfrega, de uma latência à flor da pele, suficientes para Maria Bethânia construir o seu teatro musical de forma brilhante. Até então, Djavan era um cantor relativamente conhecido, fazendo razoável sucesso em temas de novelas, com o fenômeno de vendagens que se tornou o álbum de Bethânia, ele passou a ser assediado por várias cantoras e despontou de vez para o sucesso de público. “Álibi” é a angústia dos sentimentos, é o corpo como a tradução do amor, é o desejo em forma de tortura quando não concretizado.
O Meu Amor” (Chico Buarque), duelo de duas mulheres pelo amor de um homem, saltava dos palcos do teatro para o álbum. A canção fazia parte da peça “A Ópera do Malandro”, de Chico Buarque. No disco anterior, “Pássaro da Manhã” (1977), Maria Bethânia tinha gravado “Terezinha”, da mesma peça. A música era para ser interpretada em dueto com Gal Costa; com Alcione faria dueto na faixa “Sonho Meu”, mas de última hora, Maria Bethânia decidiu sair do óbvio, dividiu com Gal Costa o samba, e com Alcione, sambista por estilo, a provocante “O Meu Amor”. O resultado da ousadia da baiana foi surpreendente. Alcione, no seu jeito malandro de sambista, faz da sensualidade da música um perfeito dueto com o romantismo passional de Maria Bethânia. O impacto do duelo ganha em estilo musical, superando a gravação de Marieta Severo e Elba Ramalho, que interpretavam a canção no teatro e no álbum de 1978 do próprio Chico Buarque. Se em “Álibi” o sexo é tortura, em “O Meu Amor”, ele é a própria existência, a realização da mulher, menina e amante.

Explode a Emoção

A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa” (Caetano Veloso – Waly Salomão) é outra raridade no universo de Bethânia, aqui mais uma vez, arriscando-se em um universo perfeitamente dominado por Gal Costa. É uma canção intimista, que explode na voz da cantora como um brilho de luz suave pouco comum a ela. É um momento de ruptura de universos, que a baiana não parece preocupada em justificar, apenas segue com o desejo impar de cantar e, principalmente, de encantar.
Ronda” (Paulo Vanzolini), é uma incursão à noite paulistana, a uma boemia pelas ruas de uma Paulicéia que não mais existe. O amor passional da mulher em busca do amor perdido pelas noites da cidade grande. A interpretação de Maria Bethânia foi duramente criticada por Vanzolini, que declararia em 2004: “Se colocarem batida eletrônica na minha música, tudo bem. Maria Bethânia fez pior com a minha música Ronda. Ela não é uma cantora, é uma declamadora”. Uma injustiça com a cantora, pois foi a partir da sua interpretação que a canção de Vanzolini passou a ser conhecida por todo o Brasil, indo além das noites paulistanas.
Maria Bethânia fechava o lado A do álbum com “Explode Coração” (Gonzaguinha), canção que entrou para o repertório no último momento, e que se tornaria um clássico da cantora. Naquele ano Gonzaguinha deu músicas inéditas para Gal Costa no álbum “Água Viva”, e para Simone, no álbum “Cigarra”, mas foi com “Explode Coração”, magistralmente interpretada por Bethânia, que ele explodiu pelo Brasil, tornando-se o compositor mais disputado pelas cantoras. “Explode Coração” entraria para a trilha sonora da novela “Pai, Herói” (1979), de Janete Clair, sendo tema da protagonista Carina (Elizabeth Savalla), o que contribuiu para ser uma das faixas mais tocadas do álbum. O universo feminino de Gonzaguinha é denso, de rupturas e de ascensão aos direitos negados por um mundo tradicionalmente masculino. A canção volta à temática do desejo, aqui a mulher liberta-se das amarras, abraçando a vida na sua forma telúrica de sentir prazer. É a explosão sublime do amor, e Maria Bethânia sabe, como ninguém cantar o amor, a paixão:

“Chega de temer, chorar, sofrer
Sorrir, se dar, e se perder, e se achar
Que tudo aquilo que e viver,
Eu quero mais e me abrir
E que essa vida entre assim
Como se fosse o sol
Desvirginando a madrugada
Quero sentir a dor dessa manhã”

Explode Coração” é o exemplo da música que se iria tornar comum a partir de então, com letras ousadas e insinuantes, a falar do amor íntimo, da sexualidade da mulher, cada vez mais segura em ter prazer.

Do Bolero à Canção de Protesto

Maria Bethânia abria o lado B do álbum sendo fiel a si própria, interpretando um velho sucesso de Nelson Gonçalves, “Negue” (Adelino Moreira – Enzo de Almeida Passos). A canção adquire uma lufada que lhe tira o aspecto envelhecido, mofo deixado pela singularidade da Bossa Nova e pela modernidade da Tropicália. “Negue” confirma o universo de Maria Bethânia, é a parte segura do seu canto, que muitas vezes, é acusado pela crítica de não arriscar. A canção é a autenticidade suprema da cantora, aqui no seu momento mais verdadeiro de todo o disco.
Mas o grande risco está no samba “Sonho Meu” (Yvone Lara – Délcio Carvalho), dueto histórico com Gal Costa. As duas vozes contemplam-se, tornando-se o dueto mais famoso das cantoras, que se transformam aqui em exímias sambistas. Dueto pensando à partida para ser feito com Alcione, mas que Bethânia em um momento de sensível intuição, inverteu o jogo. “Sonho Meu” foi a faixa mais tocada do álbum, um momento sublime de dois grandes nomes da nossa MPB, que seduziu para sempre o Brasil.
De Todas as Maneiras” (Chico Buarque), arremata a canção “Álibi”, com o amor e o desejo a desdenhar os sentimentos, a deixar o corpo nu e dilacerado diante da coragem de expor a verdades da paixão. Bethânia é passional, sem correr o risco de entrar para um patamar de torpor sofrível, típico de Maysa e Elis Regina.
Cálice” (Chico Buarque – Gilberto Gil), era a grande promessa do disco, visto que a canção estava proibida desde 1973, quando Chico Buarque e Gilberto Gil, ao cantá-la no festival “Phono 73”, tiveram os microfones desligados. Havia uma grande expectativa em torno da música, conhecida apenas nos bastidores de um público engajado. Uma revista anunciara que Roberto Carlos iria gravar a música, o que seria a primeira incursão do rei ao repertório de Chico Buarque; a notícia não se concretizou, mas gerou maior ansiedade do público em torno da canção. Foi Maria Bethânia quem a lançou no “Fantástico”, mostrando que a censura política na MPB começava a ser uma página virada. Chico Buarque, em um dueto luxuoso com Milton Nascimento, também gravou “Cálice” no seu disco de 1978. Sua interpretação foi apoteótica, com corais viscerais a dar plenitude dimensional à música. Bethânia usou apenas a sua voz, levando a canção ao mais alto palco do seu teatro, fazendo uma interpretação corajosa. Na época a cantora sentia-se extremamente confortável em interpretar Chico Buarque, declarando inclusive que ela era a cantora brasileira que mais sabia interpretar o autor. “Cálice” era o próprio grito dos torturados nos calabouços da ditadura. O verso que se refere à fumaça de óleo diesel, era uma alusão à morte de Stuart Angel Jones, militante da esquerda, filho de Zuzu Angel, que teve o corpo amarrado a um jipe, com a boca no cano de descarga, sendo arrastado por um pátio militar, morrendo asfixiado pelo monóxido de carbono. Bethânia insere a voz no momento dramático da canção, sem elevá-la à densidade que atingiu com o dueto de Milton Nascimento e Chico Buarque.

“Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça”

Depois de passar por canções dramáticas e viscerais, por boleros românticos e amores passionais, Maria Bethânia encerra o álbum com a bucólica “Interior” (Rosinha de Valença), uma canção suave, com gosto de saudade de uma tranqüilidade do interior, perdida nas correrias das cidades grandes, e com um agradável aroma de terra molhada. Uma das mais belas canções do álbum, que se encerra com uma sublime suavidade momentânea. “Álibi” cumpre não só o objetivo de emocionar, mas de mudar o conceito da MPB, mostrando que grandes vendas e qualidade podem ser convergentes, e que a MPB é, magicamente, a força das vozes femininas.

Ficha Técnica:

Álibi
Philips
1978

Direção de produção: Perinho Albuquerque e Maria Bethânia
Arranjos e Regências: Perinho Albuquerque
Técnico de gravação: Ary Carvalhaes
Auxiliares técnicos: Vitor e Julinho
Mixagem: Ary Carvalhaes
Montagem: Barroso
Corte: Ivan Lisnik
Capa: Oscar Ramos e Luciano Figueiredo
Foto da capa: Marisa Álvares Lima
Fotos do encarte: Januário Garcia
Agradecimentos: Roberto Menescal e Lenia Grillo

Músicos participantes:

Piano: Tomás Improta e Perna Fróes
Violão: Rosinha de Valença
Baixo: Jamil Joanes, Moacyr Albuquerque e Luizão Maia
Bateria: Enéas Costa, Tuty Moreno e Paulinho Braga
Flauta: Mauro Senise
Trombone: Ed Maciel
Guitarra: Perinho Albuquerque
Gaita: Maurício Einhorn
Cavaquinho: Rosinha de Valença
Percussão: Djalma Corrêa e Tuty Moreno

Faixas:

1 Diamante verdadeiro (Caetano Veloso), 2 Álibi (Djavan), 3 O meu amor (Chico Buarque) Participação: Alcione, 4 A voz de uma pessoa vitoriosa (Caetano Veloso – Wally Salomão), 5 Ronda (Paulo Vanzolini), 6 Explode coração (Gonzaguinha), 7 Negue (Adelino Moreira – Enzo de Almeida Passos), 8 Sonho meu (Yvone Lara – Délcio Carvalho) Participação: Gal Costa, 9 De todas as maneiras (Chico Buarque), 10 Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil), 11 Interior (Rosinha de Valença)

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