O SORRISO DO GATO DE ALICE – A PERFEIÇÃO VOCAL DE GAL COSTA

abril 8, 2010

 Um dos mais belos e complexos discos de Gal Costa, “O Sorriso do Gato de Alice” é, assim como “Gal”, o psicodélico, de 1969, um momento isolado na discografia da cantora. Momento absoluto de ruptura entre a pop star e a intérprete em sua mais pura técnica e emotividade musical.
Lançado em 1993, o álbum coincidiu com a morte da mãe da cantora, Mariah Costa Penna. A voz de Gal Costa atinge o ápice da perfeição, da beleza lírica em um canto de sereia solitária, vincado nas entranhas da dor da perda.
Numa primeira leitura, descobrimos um repertório difícil, alegre e denso ao mesmo tempo, com sofisticados arranjos, muitas vezes movidos apenas pela beleza emocionante da voz da cantora e dos violões luxuosos de Paulo Belinati, Djavan, Paulinho da Viola, Marcos Pereira, Artur Maia e Gilberto Gil.
É o álbum de uma grande intérprete e apenas quatro compositores: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben Jorge e Djavan, quase um álbum autoral. Arto Lindsay aparece como quinto elemento, dividindo a parceria de duas canções com Caetano Veloso e Djavan, feitas em inglês.
O disco rompe com a forma de Gal Costa cantar, encerrando a sua fase cênica e de movimento em shows, que, a partir de 1995, com o “Mina D’Água do Meu Canto”, traria uma cantora centrada no palco, apostando na emoção da voz e no formato erudito dos recitais.
O disco deu origem a um show homônimo, considerado o mais polêmico da carreira da cantora, quando ela ao mostrar os seios no palco, escandalizou um público conservador e uma crítica que se deixou ultrapassar pela nova proposta, acostumados a mesmice da década anterior.
O Sorriso do Gato de Alice” é daqueles discos que se ouve com a alma, feito para tocar a mais pura das emoções, longe do sucesso fácil ou do amor à primeira audição. Cada faixa é feita para conquistar e apaixonar aos poucos, numa cumplicidade perene entre o ouvinte e uma das maiores vozes do mundo, aqui no auge da beleza do timbre. É um canto solitário, único, feito para atravessar o tempo e garantir a beleza de uma MPB em constante mutação.

O Sorriso do Gato de Alice, o Show

Quando gravava o disco, “O Sorriso do Gato de Alice”, Gal Costa foi surpreendida pela morte da mãe, Mariah Costa. Sob o impacto da dor, viu-se obrigada a viajar do Rio de Janeiro a Nova York, para acompanhar a mixagem e produção do disco. A emoção da dor era visível na beleza da voz posta em cada faixa.
O momento de ruptura, pelo qual Gal Costa ansiou quase uma década, finalmente chegara. Era preciso que se reinventasse a cantora, antes que o desgaste da década de oitenta a atingisse de forma indelével, como fizera com grandes intérpretes da música popular brasileira.
Movida pelo desejo de mudar a imagem de estrela da MPB, Gal Costa convidou o diretor de teatro Gerald Thomas, para dirigir o seu novo show. O diretor era conhecido pelo minimalismo histriônico das suas personagens, pela irreverência de ter posto a primeira dama do teatro brasileiro, Fernanda Montenegro, a contorcer-se e rolar pelo chão, na peça “The Flash and Crash Days”, em 1991. A obra de Gerald Thomas foi sempre marcada mais pela polêmica com o público do que pela essência da proposta.
Assim, da parceria com Gerald Thomas, nasceu o show “O Sorriso do Gato de Alice”, que teve a sua estréia em 3 de março de 1994, no Teatro Imperator, no Rio de Janeiro. Quem esperava ver Gal Costa com flores no cabelo, em cima de sandálias de salto alto, roupas coloridas e provocantes, a mostrar a exuberância que exibira no carnaval daquele ano, quando ao lado dos Doces Bárbaros, foi homenageada pela escola de samba Mangueira, espantou-se quando ela entrou descalça, vestindo uma roupa de cor opaca, a lembrar um uniforme de operária de fábricas, arrastando-se por um telhado cenográfico, fazendo gestos de uma gata assustada e perdida na escuridão da cidade. A entrada silenciosa e minimalista durou mais de quatro minutos, deixando o público carioca confuso pela demora do canto, suscitando algumas vaias.
O espetáculo corria seco, com cores de luzes fortes, a devastar a emoção do canto da sereia solitária, transformada em gata das ruas de uma cidade perdida. Gal Costa era, em palco, a própria essência da gata órfã, sozinha no mundo, amparada apenas pela magnitude da voz e da sua música.
O show atingia o apogeu da polêmica quando ao cantar os versos “Brasil, mostra a tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim”, de “Brasil” (Cazuza – Nilo Romero – George Israel), Gal Costa abria a blusa e continuava a performance da música de seios de fora. A ousadia suscitou a rejeição do público carioca, que se tornara conservador, anos luz de distância daqueles cabeludos que lotaram o Teatro Teresa Raquel em 1971, no show “Gal a Todo Vapor – Fa-tal”, elegendo-a a musa da contracultura e do desbunde.
No dia seguinte, os jornais estamparam fotografias da cantora de seios à mostra. A crítica carioca mostrou-se inóspita, dizendo que a concepção de espetáculo de Gerald Thomas oprimira a cantora no palco. Gal Costa declararia em várias entrevistas que não se arrependia da ousadia, que o espetáculo tinha cumprido a proposta ansiada por ela, a da ruptura com o óbvio. Quando estreou em São Paulo, o público paulistano recebeu com maior receptividade aquele que se tornou o espetáculo mais polêmico da carreira da cantora.

Da Bahia à Mangueira

O Sorriso do Gato de Alice”, traz uma das mais belas capas da discografia de Gal Costa. Concebida por Luiz Zerbini e Barrão, tem fotografias de Milton Montenegro. Na capa, a imensa boca vermelha de Gal Costa exibia o seu sorriso mítico, contrastando com o desenho de um gato sem boca, na contracapa, feito por Zerbini. O sorriso é da cantora, que o roubou ao gato. As cores vermelha e azul dão a beleza gráfica ao encarte. As tonalidades lembram as usadas no espetáculo musical “Alice”, de Bob Wilson, com música de Tom Waits e texto de Paul Shmidt, estreado em 1992, no Thalia Theater de Hamburgo. A atmosfera do “Alice” de Bob Wilson e de “O Sorriso do Gato de Alice”, contemporâneos, não deixa de nos levar a uma comparação, como se um tivesse inspirado o outro.
Produzido por Arto Lindsay, é um dos álbuns mais sofisticados e bem-cuidados da cantora, gravado no Rio de Janeiro e em Nova York, dando um ar internacional na sua brasilidade. Conta com a presença de grandes músicos ao violão, entre eles Marcos Pereira, Paulo Belinati, Paulinho da Viola, Djavan e Gilberto Gil.
O álbum traz onze faixas, tendo apenas cinco compositores. Foi o último disco de Gal Costa concebido em forma de vinil, com lado A e lado B, sendo o penúltimo a ser lançado naquele formato.
Bahia, Minha Preta” (Caetano Veloso) inicia o disco. Momento de inspiração poética de Caetano Veloso, a canção desfila pela Bahia mítica, um encontro de Gal Costa com a sua terra, em um momento de perda. Passa pela canção personalidades da Bahia, descortinando a terra de todos os sons e de negras raízes, pronta para o novo milênio que viria em breve, e para atravessar o mar rumo a todos os cantos do mundo.

“Bahia minha preta
Como será
Se tua seta acerta o caminho e chega lá?
E a curva linha reta
Se ultrapassar esse negro azul que te mura,
O mar, o mar?”

Com “Bumbo da Mangueira” (Jorge Ben Jor), o som do samba desce o morro, em uma homenagem à escola de samba Mangueira, numa combinação sempre feliz, de Gal Costa e Jorge Ben Jor, desde a época da Tropicália. A cantora consegue o gingado certo do som único do compositor de diversos elementos musicais, com raiz de samba rock, sem perder os ecos do samba genuíno.

Errática, a Acertar o Mais Belo Canto

Errática” (Caetano Veloso), talvez seja a mais bela canção feita por Caetano Veloso para Gal Costa na década de 1990. Complexa, melancólica, solitária, feita para o timbre e emoção da cantora que mais compreende o compositor e a sua estética musical. Foi de um verso desta canção que se retirou o título do álbum. Acompanhada pelos violões de Paulinho da Viola e Paulo Belinati, Gal Costa atinge o ápice de uma emoção delineada pela melodia, destilada por uma dor de ruptura e melancolia de uma letra difusa, mas contundente.

“O sorriso do gato de Alice
Se se visse
Não seria menos ou mais intocável
Que o teu
Pausa de fração de semifusa
Pode conter tão grande tristeza”

Mãe da Manhã” (Gilberto Gil) traz uma temática rara, senão única, na discografia de Gal Costa, uma exaltação a uma santa da igreja católica. Ela já tinha gravado temas do candomblé, como “Oração de Mãe Menininha” (Dorival Caymmi), e cantando em shows “Ave Maria no Morro” (Herivelto Martins). Numa concepção que lembra as milenares procissões católicas, a voz de Gal Costa multiplica-se em várias, sendo acompanhada somente por Paulo Belinati, que se divide entre o violão e a viola caipira, propiciando um momento em que os agudos da cantora transbordam em hino de fé. Gal Costa voltaria ao tema, cantando em seu show “Acústico”, em 1997, “Ave Maria” (Jaime Redondo – Vicente Paiva).

“Vós que sois mãe do filho do pai
Do nascer do dia
Abeçoai minha voz meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar”

Gratidute” (Caetano Veloso – Arto Lindsay) revela o intimismo da cantora, mais uma vez interpretando uma canção em inglês, uma constante em sua obra desde o primeiro disco a solo, em 1969. Letra de sutil melancolia, marcada pelas cordas de aço do violão de Paulo Belinati. Gal Costa traz aqui a voz límpida, lapidada pela técnica e lirismo do timbre.
O lado A do vinil encerrava-se com “Eu Vou Lhe Avisar” (Jorge Ben Jor), canção que quebrava o misticismo ou a melancolia romântica das faixas anteriores. O ritmo de Jorge Ben Jor é frenético, deixando em segundo plano uma certa filosofia capenga em suas letras leves. A suavidade dessa filosofia benjorgiana encontra consistência nos agudos de Gal Costa, transformando sempre a melodia em algo irresistível. Aqui os agudos vão ao alto quando ela pronuncia “trivial”, encerrando a primeira parte de um complexo disco.

A Perfeição da Técnica e Emoção do Canto

Nuvem Negra” (Djavan), abria o lado B. Foi a canção mais tocada do disco. Mais um grande momento de Gal Costa a interpretar Djavan. Quase uma lamúria diante da dor, da perda, da fase obscura da vida em que todos nós, por um motivo ou outro, de tempos em tempos mergulhamos. A voz de Gal Costa toca na mais profunda solidão da melodia, fazendo dela um canto límpido em uma brisa gelada.

“Passa nuvem negra
Larga o dia
E vê se leva o mal
Que me arrasou
Pra que não faça sofrer
Mais ninguém”

Lavagem do Bonfim” (Gilberto Gil), música inédita feita para a cantora, remete novamente ao sincretismo baiano, suas crenças e tradições. Se em “Mãe da Manhã” a procissão é de louvor à virgem na mais tradicional liturgia, aqui o louvor vem em ritmo de festa, luz, cores, suor e alegria, na celebração mais mística da Bahia.

“Timbau, pandeiro, som de guitarra
Tanta roupa branca, tanta algazarra
Zona franca de folia, fé e devoção
Foto de lambe-lambe alegria
Vai passar pelo moinho da Bahia
Mais de trinta graus de calor, amor e emoção”

Serene” (Djavan – Arto Lindsay), é uma das mais belas canções do disco. Djavan e Paulo Belinati acompanham ao violão, a voz de Gal Costa. Percebe-se o aprimoramento da cantora em interpretar uma canção em inglês, deixando menos acentuado o sotaque que muitas vezes interferiu em uma voz pronta para declamar o que há de mais belo na poesia musical em português.
A dualidade da alma, descrita em uma contundente “Você e Você” (Gilberto Gil). Gal Costa agarra a canção de forma visceral, fazendo dela um blues existencialista. A letra é um soco no ar, na violência que nos cerca o eu, que nos divide entre o canto e o espanto, em uma rima exata.

“Você que ataca pra se defender
Que beija a lona pra poder vencer
Você num canto
Apanha tanto
Enquanto o outro você bate demais
Deus do céu quanto sangue pelo chão
Seu irmão pede o seu perdão”

E o existencialismo zen de Ben Jor encerra este disco excepcional, com “Alkahool” (Jorge Ben Jor). Letra gigantesca, que deixaria sem fôlego um intérprete menos preparado. Gal Costa caminha segura, em tons que nos faz pensar na multiplicidade da sua capacidade vocal, comparada com as várias fases que atravessou da primeira a última faixa. E o sorriso da voz de Gal Costa fecha o disco, iludindo os sortilégios de Alice, afinal aquela boca vermelha, em tamanho gigante, apenas pedia a quem a ouvia:

“Porque você não me vem me dar um beijo
Um beijo de amor e de desejo
Porque eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você
Eu gosto tanto de você”

Com “O Sorriso do Gato de Alice”, um novo sorriso abraçaria a carreira de Gal Costa, que passaria a investir mais no canto sem grandes orquestras, sem grandes jogos cênicos, voltada para a emoção perpétua da perfeição da voz.

Ficha Técnica:

O Sorriso do Gato de Alice
BMG Ariola
1993

Produção: Arto Lindsay
Direção Artística: Migel Plopschi
Arranjos: Paulo Belinati e Artur Maia
Gravação e Mixagem: Eddie Garcia
Produção Executiva: Léa Millon
Estúdio: BMG Ariola, Rio de Janeiro
Estúdio Gravação Adicional e Mixagem: Eletric Lady Studios, Nova York
Assistentes de Gravação Rio de Janeiro: Cláudio e Dalmo
Assistente de Gravação Nova York: Hal Belknap
Masterização: Scott Hull (Masterdisk, Nova York)
Capa: Luiz Zerbini e Barrão
Fotos: Milton Montenegro
Agradecimentos do Produtor: Tia Léa, Eddie Garcia, Jeff Young, Denise Amorim, Monique Gardenberg, Silvia Gardenberg e Duncan Lindsay
Agradecimentos e Dedicatória de Gal Costa: “Agradeço aos meus amigos Caetano Veloso, Djavan, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor, Paulinho da Viola, Arto Lindsay, Tia Léa e Guto Burgos pela força e carinho e dedico este disco à minha mãe Mariah Costa Penna.”

Músicos Participantes:

Violão: Paulo Belinati, Paulinho da Viola, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Djavan, Marcos Pereira, Artur Maia e Oswaldo Lenine
Violão de Aço: Paulo Belinati
Guitarra: Celso Fonseca, Arto Lindsay e Mark Ribot
Teclados: Paulo Calazans
Percussão: Marcos Suzano, Armando Marçal, Paulo Belinati, Artur Maia, Mônica Millet e Marcelo Costa
Baixo: Artur Maia
Baixo de 6 Cordas: Nico Assumpção
Bateria: Jurim Moreira e Carlos Bala
Viola Caipira: Paulo Belinati
Seresta: Paulo Belinati
Flauta: Mauro Senise e Marcelo Martins
Marimba: Jota Moraes
Pandeiro, Surdo e Caixa: Marcos Suzano
Cavaquinho: Paulo Belinati
Conga: Armando Marçal
Piston com Surdina: Frank London
Repenique com Vassourinha: Marcos Suzano
Samples: Mark Anthony Tompson
Backing Vocals: Gal Costa e Artur Maia

Faixas:

1 Bahia, Minha Preta (Caetano Veloso), 2 Bumbo da Mangueira (Jorge Ben Jor), 3 Errática (Caetano Veloso), 4 Mãe da Manhã (Gilberto Gil), 5 Gratitude (Arto Lindsay – Caetano Veloso), 6 Eu Vou Lhe Avisar (Jorge Ben Jor), 7 Nuvem Negra (Djavan), 8 Lavagem do Bonfim (Gilberto Gil), 9 Serene (Djavan – Arto Lindsay), 10 Você e Você (Gilberto Gil), 11 Alkahool (Jorge Ben Jor)