LENDAS DO FOLCLORE BRASILEIRO

maio 4, 2010

O folclore brasileiro traz a riqueza das raízes de uma nação plural, composta por uma diversidade de raças e etnias, que na miscigenação da população, englobou um pouco de todas as tradições.
As lendas de seres fantásticos e místicos revestem a magia do nosso folclore. Oriundas dos índios nativos; dos negros africanos; e, dos brancos europeus; entes fantasmagóricos, com poderes especiais povoam as nossas lendas, fugindo da tradicional moralidade das fábulas. Contam a essência dos costumes, a luta entre o bem e o mal, o sacro e o profano, sem que se lhe imponham a moral final.
Três lendas compõem este artigo: “O Negrinho do Pastoreio”, “Saci Pererê” e “A Mula Sem Cabeça”. Seres fantásticos, meio humano ou meio fantasma, meio anjo ou meio diabo; adaptados para um Brasil em construção, que passou pela triste experiência da escravatura, pelo desafio ao celibato latente da igreja, ou simplesmente pela crença entre o bem e o mal. São lendas de mundos diferentes, algumas vindas do continente europeu, fundidas com a cultura africana e a indígena, tomando o aspecto de total nacionalidade tupiniquim.
O Negrinho do Pastoreio”, é a mais famosa lenda dos pampas gaúchos. Com o fim da escravidão no Brasil, o Rio Grande do Sul foi um dos primeiros a sofrer o branqueamento proposto dentro do contexto do programa de imigração. Ter o sofrimento de um negro como protagonista da sua maior lenda é contrastar com o que se lhe foi imposto e mostrar a verdadeira raiz daquelas terras. É uma das lendas mais belas e comoventes do folclore brasileiro.
Saci Pererê”, é o mais conhecido personagem do folclore brasileiro. Sua lenda tem origem em Portugal, sendo transportada para Minas Gerais e São Paulo, propagando-se pelo país, assimilando-se com uma velha lenda indígena. Foi difundida pelo imaginário infantil através das velhas escravas, que para assustar as crianças, contavam as peripécias do menino de uma perna só, um ser às vezes brincalhão, outras vezes maligno. Perdeu o aspecto do duende europeu, tornando-se o retrato dos escravos fugitivos que quando recapturados, eram muitas vezes esquartejados. Existem várias versões da lenda do Saci Pererê, sendo a de Monteiro Lobato uma das mais famosas e difundidas, apagando-lhe o aspecto de entidade demoníaca.
A Mula Sem Cabeça” é uma antiga lenda da península Ibérica, que retratava o relacionamento socialmente condenado entre uma mulher e um padre das aldeias. A mulher era sempre a tentação, o motivo do pecado, por isto era ela a castigada, transformando-se em uma terrível fera ao amar um padre. A lenda foi trazida para as colônias espanholas e portuguesas do continente americano. No Brasil assumiu aspectos peculiares, perdendo a conotação de moral religiosa, transformando-se em uma personagem popular, a assustar a população dos vilarejos do interior do país.

O Negrinho do Pastoreio

Em uma fazenda dos pampas gaúchos, vivia um menino franzino, tão negro como o carvão. Seu corpo era magro e desnutrido, trazendo marcas cicatrizadas das chibatadas que se lhe eram dadas como prêmios às suas falhas. Nascera escravo, sendo tirado da sua mãe tão logo desmamara e enviado para servir o mais cruel de todos os amos.
Crescera a trabalhar de sol a sol, sem que se lhe fosse dado qualquer importância. Era tão menosprezado como ser, que jamais lhe deram um nome. Era simplesmente chamado pela alcunha de “Negrinho”.
Não bastasse a crueldade do amo, o infeliz Negrinho sofria todas as humilhações vindas do seu filho. O sinhozinho tinha a idade do escravo. Crescera vendo a forma cruel do pai em lidar com os escravos, assimilando-lhe as atitudes e revigorando-as na maldade explícita.
Negrinho tinha grande habilidade em pastorear, tornando-se o melhor peão de toda a região. Ninguém montava um cavalo baio como ele. Assim, o amo o usava em competições com os vizinhos. A habilidade de cavaleiro não comovia o amo, e, incomodava o sinhozinho, que lhe sentia inveja. Por este motivo, o sinhozinho era mais cruel do que o pai, infringindo ao pobre escravos os mais severos castigos.
Numa disputa com um vizinho, o amo usou Negrinho como cavaleiro. O escravo montou com magnificência o baio do amo. Corria lado a lado ao adversário. Já quase no fim, conseguiu ultrapassá-lo. Próximo da linha de chegada, uma serpente surgiu no seu caminho, fazendo com que o animal se assustasse, quase o derrubando. Foi o suficiente para perder a disputa.
A derrota enfureceu o amo, que se viu humilhado diante do vizinho. Quando retornou para a estância, deu como castigo ao infeliz perdedor trinta chibatadas, o tamanho que tinha a pista de corrida. Negrinho tinha o corpo em carne viva. Adormeceu sem verter uma lágrima, apenas pedindo ao céu que lhe acabasse com o sofrimento.
No dia seguinte, sem tempo para aliviar as feridas, já estava a trabalhar sem descanso. Ainda como castigo, o amo lhe impusera cuidar de trinta cavalos. A pouca ração que recebia como alimento foi cortada pela metade. O menino trabalhava quase que sem forças, devido à fome e aos ferimentos.
Numa noite, quando dormia, uma coruja pairou sobre os cavalos. Assustados, os animais dispararam, fugindo. Ao acordar, Negrinho deu pela tragédia. Nada podia fazer senão chorar. O sinhozinho, que assistira ao infortúnio, denunciou o que se passara ao pai. O pobre escravo foi amarrado ao tronco, sofrendo com o chicote a lanhar-lhe as costas. Depois do castigo, foi libertado para que encontrasse os animais. Era já tarde da noite. O amo ameaçou-o, se não voltasse com todos os baios, seria espancado até a morte.
Na escuridão da noite, Negrinho voltou ao local do pastoreio, trazendo uma vela na mão. Uma brisa suave fazia o lume tremer. Quanto mais soprava o minuano, mais a vela era consumida. Cada pingo de cera quente que se derramava sobre o chão formava uma luz brilhante. Foram tantos os pingos convertidos em tochas, que a noite ficou clara como o dia. Negrinho achou os cavalos. Gemendo de dor, conduziu os animais de volta. Ao chegar ao estábulo, cansado, deixou-se cair no feno, ali adormecendo, podia finalmente descansar o corpo surrado.
Mas o sinhozinho, ao ver que o escravo cumprira a missão, encheu-se de raiva. Odiava a habilidade do escravo pastoreio. Era incapaz de se manter por muito tempo em cima de um baio. Aproveitou que Negrinho dormia, e soltou os animais por ele capturado. Sorriu vitorioso.
No dia seguinte, Negrinho foi acordado pela fúria do amo. Ao ver que os seus animais não se lhe foram recuperados, passou a espancar com grande violência o escravo. Foram tantas as chibatadas, que o menino perdeu os sentidos. O amo pensou-o morto, e, sem piedade, decidiu atirar-lhe o corpo a um formigueiro, para que as formigas o devorasse, poupando-lhe o trabalho de enterrá-lo.
Após atirar o corpo do escravo no formigueiro, o fazendeiro recolheu-se na sua casa. No dia seguinte teve a curiosidade de ir ver o menino. Ao chegar ao local, encontrou o escravo vivo, forte e sorridente, sem nenhum arranhão no corpo. Montava o baio mais valoroso. Ao seu lado os outros cavalos fugitivos. Sorriu para o amo e partiu a galope, seguido pelos cavalos. Saiu tão veloz, desaparecendo entre uma nuvem dourada. O cruel fazendeiro caiu de joelhos, pela primeira vez arrependido das atrocidades que cometera.
Pelos pampas, muitos ainda vêem, em noites de luar, o Negrinho montado em seu baio. Tão veloz quanto surge, desaparece entre as nuvens. Os homens dos pampas, quando têm um animal perdido, acendem uma vela para o Negrinho, na esperança de recuperar a besta fugitiva.

Saci Pererê

O vento começa a soprar na mata. Invade a copa das árvores, continua a desbravar as silvas, formando um redemoinho, que bate contra as canas silvestres, secas e sem o néctar do açúcar ou o caldo da cachaça. Ali, o imenso sopro diluí-se dentro do bambu, rompendo o seu centro oco. Do meio do redemoinho surge um menino de olhar matreiro. Mantém-se em pé apenas por uma perna. Sua pele é preta como a noite. Na cabeça porta uma carapuça vermelha, que lhe dá todos os poderes mágicos da mata. O pequeno ser sorri maliciosamente, aspira o fumo de um cachimbo e começa a pular por entre as árvores. É Saci Pererê.
Nascido de uma tragédia antiga, assassinado por um tio perverso, ele segue a sua sina. Não se intimida pela dor. Ao contrário da irmã, Matinta Perera, também morta pela maldade, que transporta a sua dor metamorfoseada em uma ave de canto triste e agourento, o Saci apenas se diverte com o medo dos homens.
Segue saltitante, a invadir as casas das fazendas, a assustar o homem, tentar suas mulheres e fustigar os filhos desobedientes.
O Saci continua a sua peregrinação. Não ousa a invadir as cidades. Sua habitação é feita nas matas, entre os bambus, também a sua força é dali tirada. Invade as chácaras e as fazendas. Esconde os brinquedos das crianças. Não satisfeito, invade os currais, abre as portas dos galinheiros. Na cozinha, procura pelo sal. Derramo-o para salgar a terra e evitar que se lhe adocem a força mágica. Pelo caminho, olha para a bela sinhazinha. Infeliz daquela que se deixar levar por sua sedução e por ele se apaixonar. Estará perdida para a vida.
Terminada as travessuras na casa, chega a hora de adentrar o estábulo. É o seu local predileto. Atira-se sobre o mais indomável dos cavalos. Segura-lhe pela crina, assustando-o, fazendo-o galopar em fuga. Sente o vento no seu corpo quando caminha sobre o cavalo assustado. Enquanto cavalga, faz belas tranças na crina do animal. De repente um córrego. É hora de abandonar o animal. O Saci não pode atravessar nem córregos, nem rios, pois o redemoinho que o protege diluirá nas águas.
O Saci continua a sua empreitada, quando de repente, jogam dentro do seu redemoinho um rosário. Um caçador audacioso atira-lhe ainda, uma corda com nós. Não resiste, pára e tenta desatá-los. Naquele momento, o homem prende-o em uma peneira, único objeto que o detém. Capturado, o travesso Saci vê a sua carapuça a ser-lhe tirada da cabeça. Vencido pela esperteza daquele caçador, é obrigado a conceder-lhe um desejo. Realizado o desejo, consegue a liberdade de volta.
Assim, o Saci desaparece pela mata. No dia seguinte, voltará às fazendas, às cozinhas, aos estábulos, e sorrirá vitorioso diante das suas travessuras. Ser bom não lhe traz felicidade, ser mal não lhe proporciona prazer, ser imprevisivelmente astuto e de ardis frenéticos, é a sua essência vital.

A Mula Sem Cabeça

Longe, bem longe, em um vilarejo situado no interior do nada, vivia a bela Maria. Corriam os anos, e ela exalava pelos campos o seu ardor juvenil, a sua insinuante delicadeza virginal. Maria era desejada pelo mais robustos rapazes, sonhada pelo mais casadoiro dos homens. Mas a nenhum deles ela se rendia. Tanto menosprezou os pretendentes, que um dia foi por um deles amaldiçoada.
A paz da bela Maria fugiu quando, num certo domingo, surgiu na missa um padre a substituir o que morrera semanas antes. Ao contrário do seu antecessor, era jovem, belo e de sorriso sedutor. Tão logo os olhos de Maria cruzaram os do padre, a sua maldição começou. A donzela encheu-se de paixão pelo padre. Dentro dela ascendeu-se todas as luzes do desejo proibido.
Maria tornou-se a mais fiel participante de todas as missas do lugar. Cada hóstia que ingeria, diluía-lhe a sensatez da alma, aflorando-lhe o desejo. Tantas vezes voltou às missas, que não passou despercebida aos olhos e aos sentimentos do padre. No calor de Maria, o padre revelou o homem ardente que escondia debaixo da batina. Muitas foram as noites de entrega, langor e prazer, que ambos perderam a clareza dos sentimentos, ficando cegos diante do povo do lugarejo, que a tudo assistia.
Numa noite de lua cheia, a população concentrou-se em frente à igreja. Quando Maria surgiu, foi cercada por todos. Ao seu redor foi feito um círculo de fogo. Um ovo enrolado com o seu nome foi atirado às chamas. Uma oração foi invocada. Maria ouvia os murmúrios que lhe chamavam de mulher do padre.
A noite de quinta-feira estava no fim, já chamando pela sexta-feira. No meio do círculo de fogo, quando a lua iluminou o rosto de Maria, uma terrível metamorfose debateu-se sobre ela. Sua pele foi ficando grossa, assumindo uma cor castanha. O corpo foi perdendo a forma ereta, curvando-se como uma besta. Mãos e pés transformaram-se em cascos, trazendo ferraduras de prata. A cabeça desapareceu, em seu lugar surgiu o fogo. Completada a metamorfose, a bela Maria já não existia, era apenas uma mula sem cabeça, era a burrinha do padre.
No meio da praça, o povo assustado ouviu um relincho tão alto, que ecoou por todo o vilarejo. A mula sem cabeça soltou um soluço medonho, a lembrar a sua antiga forma humana.
Numa velocidade sem fim, a mula sem cabeça saiu em disparada. Corria desenfreadamente, despedaçando com as suas patas homens ou animais que se lhe ficassem no caminho. Somente os que se deitavam de bruços, escondendo unhas e dentes, é que não eram atacados pela besta. O trajeto da mula sem cabeça só encerrava ao terceiro cantar do galo. Exaurida, ela voltava a ter a forma da bela Maria.
Assim, toda noite de quinta para sexta-feira, quando a lua cheia despontava no céu, Maria cumpria a sua maldição. Transformava-se na mula sem cabeça. Seu trajeto só poderia ser interrompido se alguém conseguisse furar-lhe a pele, fazendo-a sangrar, voltando assim, à forma humana. Ou se o padre com quem dividira o calor do seu desejo, a amaldiçoasse sete vezes durante a missa. O padre, envergonhado pela paixão que se deixara levar, fugira para sempre. Jamais se soube do seu paradeiro. Certamente não conseguiu amaldiçoar a bela Maria, que em noite de lua cheia, voltava a ser sempre a burrinha do padre.

Texto: Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi
Ilustrações: José Lanzellotti (Imagens 1, 2, 3, 4 e 6 – parcialmente)


LENDAS MEDIEVAIS 2

março 9, 2010

A Idade Média é um dos momentos da história do mundo que mais desperta polêmicas, fascínio e interesse no homem contemporâneo. Foi no período medieval que se definiu as fronteiras dos reinos que dariam origem aos Estados Modernos; o limite geográfico entre as principais religiões do mundo, destacando-se as guerras entre cristãos e sarracenos (muçulmanos), na expansão da fé.
As guerras entre mouros e cristãos geraram heróis lendários, trovas e exaltações de fé, construindo uma literatura épica. Nas lendas medievais não há equilíbrios entre o bem e o mal, seus heróis são íntegros, paladinos da honra e da fé incontestável. O inimigo é o conquistador bárbaro, o “infiel” sarraceno, ou os velhos costumes pagãos.
As velhas lendas célticas conseguem a dilatação da visão da moral da cristandade incipiente. A fé pagã vê nos cristãos recém chegados às ilhas Britânicas, inimigos das tradições e perseguidores dos costumes seculares. Dragões, castelos, cavaleiros, magos, honra, batalhas e mortes, fazem do canto medieval o eco das suas lendas. Neste artigo vamos percorrer o mundo das lendas de heróis, que alguns afirmam, foram personagens históricos reais transformados em mitos. Do universo imaginário da Europa Medieval, vamos percorrer o mundo trágico de “Hildebrando” e “Rolando e a Durindana”, e as magias vindas dos druidas na épica “Caldeirão de Clyddno Eiddyn”.
Hildebrando”, herói da Idade Média Alemã, aparece em várias obras literárias medievais, sendo considerado o educador do rei Teodorico de Verona, tornando-se seu cavaleiro fiel. Não há documentos que registram a sua existência. Personagens históricos fundem-se na lenda de Hildebrando. Extraída da “Canção de Hildebrando”, a lenda aqui adaptada retrata o momento da volta do herói do seu exílio e do confronto com o próprio filho, em um combate final.
O Caldeirão de Clyddno Eiddyn” é a lenda que traz um grande herói céltico, o mago Merlin, amigo e tutor do lendário Rei Arthur. É uma visão da conquista da Bretanha, efetuada pelos Saxões e pelos cristãos; da luta dos celtas em preservar os costumes pagãos diante da cristianização das ilhas britânicas.
Rolando e a Durindana”, foi inspirada na vida de um obscuro conde medieval que teria vivido no século VIII, na época da dinastia carolíngia. Na lenda, Rolando é sobrinho de Carlos Magno, e representa a luta dos cristãos contra a conquista moura na península Ibérica. Bravamente resiste aos ataques dos inimigos, morrendo em defesa da honra e da fé cristã.

Hildebrando

A fama de valente acompanhou toda a vida heróica de Hildebrando. Emocionando por voltar a sua terra, o velho cavaleiro cavalgava solitário. Sentia o vento frio da primavera a bater no seu rosto austero, curtido pelo sol e pelas marcas adquiridas nas batalhas que lhe fizeram a fama. Próximo do seu reino, Hildebrando viu, ao longe, a figura de um jovem guerreiro, com um porte da mais alta estirpe. O jovem preparava a armadura e a lança, pronto para conduzir o seu exército. Diante daquela cena que se armava em campo de batalha, Hildebrando correu a lembrança por todos os momentos da sua vida.
Quando novo, dedicara-se à educação de Teodorico, fazendo dele um dos maiores reis dos ostrogodos. Casara-se com a mulher mais bela do seu povo. Do ventre da amada, nascera um filho. Hildebrando, já cavaleiro de Teodorico, tendo a vida marcada por longas batalhas em favor do seu rei, só queria viver a paz de amar a mulher e contemplar o crescimento do filho. Mas o destino soprou-o na direção contrária à paz. Um dia surgiu o sanguinário Odoacro, que ao pôr fim ao Império Romano do Ocidente, tornara-se o primeiro rei bárbaro em Roma. Para escapar da fúria de Odoacro, Teodorico fugiu, seguido dos seus cavaleiros.
Sempre fiel, Hildebrando acompanhou o seu rei, deixando às costas, a mulher e o filho. Por trinta anos o cavaleiro sofreu com a ausência da família. Seus olhos firmes marejavam ao se lembrar que não acompanhara o crescimento do filho. Sonhava com o dia em que voltaria a abraçá-lo, tê-lo contra o peito, finalmente.
Ao lado de Teodorico, Hildebrando invadiu a península Itálica e, bravamente, derrotaram Odoacro em Verona. O cavaleiro já poderia voltar para a família.
Sob o seu cavalo, Hildebrando viu, tão perto, a sua terra amada. Inesperadamente um exército, comandado por um jovem intrépido, se lhe pôs no caminho. Seria a última batalha que travaria em vida. Após o seu término, voltaria para os braços da mulher e o amor do filho. Decidira depor a lança e a espada. Na sede de encontrar a paz, Hildebrando lançou-se com fúria contra o jovem que liderava o exército que se lhe obstruía a passagem.
Minutos depois, Hildebrando estava frente a frente com o jovem guerreiro. Estava pronto para desferir a sua lança, quando uma emoção estranha possuiu-lhe o coração. Mansamente aproximou-se do jovem, perguntando-lhe:
-Quem sois vós, bravo e audacioso guerreiro? De que estirpe herdai tão fervorosa coragem, tão garbo semblante?
-Sou Hadubrand, filho de Hildebrando, o mais valente cavaleiro de todos os tempos, fiel servidor do rei Teodorico de Verona. Dele herdei a coragem que me faz defender o meu povo dos bárbaros e forasteiros como vós. Armai a vossa espada e a vossa lança, que em nome do meu saudoso pai, derramarei o vosso sangue de invasor! Pela honra do sangue que se me escorre nas veias, derramarei o vosso sobre a relva espargida pela primavera.
Hildebrando sentiu o coração saltar-lhe, sendo tomado pela mais forte das emoções. Ali, no último campo de batalha que decidira travar na vida, estava o próprio filho, que deixara de ser a sombra da lembrança, adquirindo o corpo do mais valente de todos os jovens guerreiros. Com a voz embargada, Hildebrando conseguiu dizer as palavras que guardara por todos os anos de exílio:
-Não sofras mais pela saudade, Hadubrand, pois sou eu, Hildebrando, o pai ausente, que tanto te fustiga a saudade. Assim como eu, tu és o mais valente dos bravos. Não me ergas a espada e a lança, mas os braços, pois de ti quero um longo e infinito abraço.
Ao ouvir as palavras do forasteiro, Hadubrand sentiu a cólera invadir o seu coração. Leu em cada palavra proferida, uma blasfêmia à memória do pai.
-Como ousai a passar pelo mais honrado dos homens? Não vos permitirei que me vença com tão grotesco ardil. Fazei uma última prece, porque a minha lança já está pronta para trespassar o vosso coração enganador!
Furioso e incontrolável, o jovem lançou em disparada rumo a Hildebrando. De lança em punho, verteria o sangue do forasteiro, dedicando a vitória à memória do pai distante. Hildebrando viu a fúria do jovem na sua direção. Palavra alguma demoveria o valente do seu propósito. O que fazer naquele momento, morrer nas mãos do filho? Defender-se diante da sua prole, como quem se defende de um feroz inimigo? Hildebrando sentiu o vento da lança do filho a aproximar-se do seu corpo, em um gesto instintivo, sem que se lhe apercebesse dele, ergueu a sua lança. No ar ecoou um grande grito de dor. Um corpo tombou no chão. O sangue lavou a terra das sementes da primavera. A morte já pairava no horizonte.
O cavaleiro sobrevivente desceu do seu cavalo. Era Hildebrando. Ajoelhou-se diante do corpo do filho, que emitia um último suspiro. Antes que a morte cortasse o cordão da vida, Hadubrand sorriu, reconhecera, no último instante, os olhos lacrimejantes do pai. Hildebrando abraçou-se ao corpo inerte do jovem. Matara tantos inimigos, e, tragicamente, encerrava a sua epopéia a verter o sangue do próprio filho, como se o céu lhe cobrasse todos os seus mortos.

O Caldeirão de Clyddno Eiddyn

Merlin, foi o mais poderoso de todos os magos e profetas da Bretanha. Sua beleza seduzira, durante a juventude, às mulheres que se lhe serviram com ardor. Era filho de uma sacerdotisa com um incubo. Do demônio do pai herdara a inteligência, da mãe o belo físico.
Já na velhice, Merlin tornara-se um grão-druída. Vivia em Avalon, cercado por sacerdotes e sacerdotisas. Fora conselheiro do poderoso Rei Arthur. No seu reino construído sobre os mistérios do mundo, assistiu a invasão dos saxões e, a chegada dos cristãos, que aos poucos, dominou toda a fé das ilhas britânicas. Ameaçado pelos princípios e tradições cristãs, o velho mago assistiu à perseguição aos costumes dos druidas, e a extinção da sua fé. Merlin aprendeu a odiar os cristãos.
Ignorando os invasores da Bretanha, Merlin continuou a praticar as mais poderosas magias. Conhecia todos os mistérios do céu e da Terra, dos homens e dos deuses, da vida e da morte. Para combater a ameaça da cristianização do seu povo, Merlin reuniu em Avalon, os maiores cavaleiros dos reinos celtas. Ao lado de tão rudes, valentes e sanguinários homens, partiu em uma busca infindável por todas as terras das ilhas britânicas, numa saga incansável aos Treze Tesouros da Bretanha, dado pelos deuses aos seus antepassados, e que se encontravam dispersos. Ao reunir os treze objetos sagrados, Merlin tornar-se-ia o mais poderoso de todos os magos, invencível, capaz de derrotar todos os invasores. Ao devolver os objetos aos deuses, eles voltariam com vigor às ilhas e ao seu povo.
Doze dos tesouros foram encontrados e reunidos. Faltava o décimo terceiro, o caldeirão de Clyddno Eiddyn. O poderoso caldeirão não poderia ser encontrado por um cavaleiro, e sim por uma virgem. Para cumprir a missão, Merlin lançou mão da mais bela das suas sacerdotisas, Nimue, por quem nutria uma grande paixão.
Diante do caldeirão, Merlin confidenciou à amada, que de dentro dele viria a porção da vida eterna. Fascinada pela promessa, Nimue aprisionou Merlin em um carvalho, roubando-lhe tão precioso objeto. A bela amante do mago desapareceu, levando o caldeirão. Preparou nele todas as porções mágicas que aprendera com o mestre. Na ilusão de que alcançaria a beleza e juventude eterna, atirou-se ao caldeirão, morrendo escaldada.
Ao se libertar da prisão do carvalho, Merlin procurou em vão, pelo caldeirão mágico. Reuniu os mais valentes dos cavaleiros britânicos, mas jamais encontrou tão poderoso talismã. Perdido o caldeirão de Clyddno Eiddyn, as iniciações dos cultos aos deuses pagãos enfraqueceram. Outra fé tomou conta da Bretanha. Merlin viu a suas tradições perdidas, os seus deuses extintos.

Rolando e a Durindana

Rolando, sobrinho preferido do imperador Carlos Magno, era o mais valente de todos os cavaleiros do seu tempo. Sem temer os inimigos, combatia bravamente em nome da fé cristã. Trazia sempre consigo a Durindana, espada inquebrável, originalmente pertencente a Heitor, bravo guerreiro de Tróia, sendo-lhe presenteada por Carlos Magno, quando completara dezessete anos. No punho de ouro da espada, encontrava-se um dente de São Pedro, gotas do sangue de São Basílio, um fio do cabelo de São Denis e um fio do manto da virgem Maria. Sob o fio da lâmina da Durindana, muitos infiéis sarracenos tombaram.
Por sua valentia, Rolando foi designado por Carlos Magno a combater os sarracenos que se instalavam por toda a península Ibérica. Assim, com a Durindana em punho, montado em seu valente e veloz cavalo Vigilante, o jovem vassalo partiu para a Ibéria, em nome da sua fé e do seu imperador. Na empreitada, foi acompanhado pelos também vassalos do rei, Ganelão e Oliveiros. Sob os seu comando estava o mais poderoso dos exércitos, formado pelos paladinos conhecidos como os Doze Pares da França.
De Saragoça a Pamplona, Rolando venceu os invasores sarracenos. Por onde passava, adquiria fama, temor e respeito. Mas quis o destino que o valente vassalo de Carlos Magno fosse traído por Ganelão. O traidor fez um pacto com o rei Marsílio, de Saragoça, para acossar o exército de Rolando e, conseqüentemente, ceifar-lhe a vida.
A grande emboscada aconteceu nos Pirineus, na passagem de Roncesvales. Ali, foram surpreendidos pelos sarracenos. Aos poucos, Rolando viu cair sob a espada inimiga, os seus fiéis soldados. No meio de tão sangrenta batalha, o bom amigo Oliveiros, prometido de Auda, irmã de Rolando, pediu para que ele soasse o olifonte, alertando assim, o exército maior de Carlos Magno, fazendo com que viessem socorrê-los.
Mas as súplicas de Oliveiros foram inúteis, pois Rolando, garboso e destemido cavaleiro, não poderia manchar a sua honra mostrando medo, e recorrendo à ajuda do real do tio. Em reposta, atirou-se ferozmente aos inimigos, matando dezenas deles. Entre os seus mortos estava o filho do rei Marsílio. O próprio monarca teria a mão decepada pela Durindana. Ferido, o rei partiu com parte dos seus soldados. Morreria mais tarde, devido à hemorragia que sofrera. Antes de cerrar os olhos na morte, o rei ordenou que os seus homens vingassem o seu martírio e o do seu filho.
Sob a paisagem dos Pirineus, a batalha entre os sarracenos e o exército de Rolando enchia os campos de sangue. Um a um, Rolando viu tombar os seus valentes soldados. Por fim, assistiu à morte do cavalo Vigilante. Já no final da luta, Rolando decidiu soar o olifonte. Vendo que a morte estava próxima, ele ainda tentou quebrar, em vão, a Durindana, para que não caísse nas mãos dos infiéis. Em um último ato, cravou a espada mágica em uma rocha.
Ao ouvir o olifante soar, Carlos Magno saiu em socorro do sobrinho. Chegara tarde demais, Rolando jazia inerte no chão de Roncesvales. O rei ajoelhou-se diante do corpo do cavaleiro, cobrindo o seu rosto com as suas lágrimas. Jurou ao morto que vingaria a sua morte. Assim, Carlos Magno venceu os líderes sarracenos, executou o traidor Ganelão e conquistou Saragoça. Em silêncio absoluto, moveu o corpo de Rolando até Blaye, enterrando o maior dos heróis dos Doze Pares da França. A Durindana ficou cravada, para sempre, numa rocha no meio do nada, à espera de um novo cavaleiro digno de usá-la.

Adaptação Livre de: Jeocaz Lee-Meddi


LENDAS INDÍGENAS 3

setembro 26, 2009

A mitologia dos índios brasileiros é repleta de seres fantásticos, muitos deles trazendo as forças da natureza, benéficas ou malignas. Tupã é o deus supremo, senhor absoluto do olimpo tupiniquim. As lendas indígenas procuram, através de uma simplicidade lúdica, explicar a origem das tribos, das árvores da floresta, das plantas comestíveis, tudo sintetizado de forma que se possa, objetivamente, transmitir a beleza das tradições e dos ritos que elas geram.
Três lendas indígenas foram adaptadas para este artigo, “Aruanã e a Criação dos Carajás”, “O Guaraná” e “Mani”, sendo elas fundamentais na cultura dos índios da Amazônia e do Centro-Oeste brasileiro.
Aruanã e a Criação dos Carajás, é mais uma lenda da rica tradição folclórica dessa tribo que vive às margens do rio Araguaia, no Centro-Oeste do Brasil. Conta a origem dos índios Carajás, através da figura mítica de Aruanã, primeiro peixe, depois homem. A lenda deu origem à festa de Aruanã, uma das mais empolgantes tradições dos índios Carajás, realizada na Lua cheia, onde os índios dançam e cantam, renovando os ritos e os feitos heróicos daquele povo.
O Guaraná, conta a lenda do surgimento de uma das frutas mais exóticas do planeta e símbolo da Amazônia. Nascida da sabedoria e carisma de um menino índio e da inveja da serpente do mal, a fruta chama a atenção pelo formato de um olho humano. Uma das mais belas lendas dos índios do norte do Brasil, repleta de lições filosóficas subentendidas. É a reparação de Tupã a uma injustiça e dor através da felicidade que o fruto do guaraná causa quando ingerido.
Mani, mais uma lenda vinda das tribos da região amazônica, relata a origem misteriosa da mandioca, tubérculo essencial na alimentação das tribos primitivas e fonte básica do cauim, bebida dela extraída, utilizada na iniciação dos ritos. A lenda lembra a história cristã de Maria e da sua gravidez sem o ato sexual e a participação do homem. A mandioca, sagrada para algumas tribos, teria origem através de um ser vindo das profundezas do misticismo espiritual.

Aruanã e a Criação dos Carajás

Aruanã era um peixe que vivia nas profundezas do rio Araguaia. De vez em quando subia às margens do grande rio, e contemplava a vida humana. Seu ser aquático enchia-se de tristeza, pois pensava que a verdadeira felicidade estava no cheiro do ar, na beleza da terra. Sentia-se perdido e infeliz em viver nas águas e ser um peixe. Sonhava um dia tornar-se homem e correr pela terra seca.
Na festa do Boto, o senhor das águas, realizada nas profundezas do Araguaia, todos os seres aquáticos participavam felizes. Lá estavam a bela Iara e a sua irmã Jururá-Açú, deusa das chuvas, e todos os peixes e habitantes do grande rio, numa alegria radiante. Só Aruanã mostrava-se infeliz, a sentir-se estranho àquele mundo, a lamentar ter nascido no rio e jamais poder respirar o ar.
Ao sair da festa do Boto, Aruanã nadou, nadou, subindo sempre na direção da superfície das águas. Num ímpeto de coragem e determinação em sentir o aquecimento esplendido da força do Sol sobre a Terra, ele pôs a cabeça de fora das águas. Quase a sufocar com o ar, falou com todas as suas forças de peixe sonhador em busca da felicidade:
-Grande Tupã, senhor da vida e da natureza, na água nasci, mas nela não quero morrer. Se peixe é o meu corpo, meu coração é humano. Tira-me das águas que me faz infeliz e sem sentido, dá-me o ar como forma de pulsar e a condição de homem como realizador da vida.
As palavras de Aruanã saíram tão veementes, que Tupã percebeu o verdadeiro destino do valente peixe e a essência da sua alma. Compadecido, o senhor das matas desceu às profundezas do rio Araguaia, arrebatando de lá o infeliz peixe. Voou com Aruanã, que não podendo respirar, debatia-se no ar. Por fim, Tupã deixou-o no campo, sob os raios intensos do Sol e das brisas suaves dos ventos.
Aruanã debatia-se sobre a relva, pensando que iria sufocar. Não amaldiçoou Tupã, pelo contrário, mesmo sem conseguir respirar o ar da Terra, agradeceu por aquele momento final, iria morrer longe das águas, como sempre sonhara. Fez um louvor ao deus e cerrou os olhos, à espera da morte e da felicidade alcançada.
Comovido, Tupã iniciou a metamorfose do peixe. Em vez da morte, Aruanã viu as escamas transformadas em pele, revestida de pêlos suaves que a brisa contornava em desenhos; braços e pernas musculadas davam-lhe o aspecto viril. O ar finalmente chegou-lhe aos pulmões. Sentiu o cheiro da Terra. Olhou emocionado para o seu corpo e sorriu feliz, já não era um peixe, e sim um homem, forte e belo.
-Provaste que tens um coração grandioso e valente. – Disse-lhe Tupã. – Serás um grande guerreiro entre os homens; pai da mais sábia das tribos. Aruanã peixe foste, Aruanãs hás de te chamar como homem. Vá, cumpra o teu destino de homem guerreiro!
Para saldar o belo e jovem Aruanãs, as Parajás, entidades da justiça das matas, vieram e prestaram honras ao guerreiro. Deram a ele uma tribo e as mais belas mulheres. Unindo-se às mulheres, o jovem guerreiro gerou filhos e filhas, dando origem aos valentes Carajás, que formaram uma tribo de índios valentes a viver às margens do rio Araguaia. Todos os anos, por ocasião da Lua cheia, os Carajás realizam o Ritual do Aruanã, prestando, através da dança e do canto, a homenagem justa ao pai da nação Carajá.

O Guaraná

Os Maués eram índios que habitavam em uma aldeia entre os rios Tapajós e Madeira. Na tribo, em tempos remotos, vivia um jovem casal de índios que era amado por todos. Os dois eram felizes, sempre à espera de um filho para que se pudesse completar aquele êxtase matrimonial.
Mas o tempo passou, e o filho não vinha. O casal dirigiu-se ao pajé, em busca de uma erva que fizesse o ventre da mulher crescer e gerar um curumim. O pajé disse que deveriam invocar a Tupã a dádiva. Foi o que fizeram. Humildemente, prostraram-se no chão e pediram ao grande deus das tribos e das matas, que lhes concebesse um filho. Nove meses depois, Tupã presenteou-os com um menino forte e saudável.
O tempo passou, e a criança cresceu forte e bonita. Tornara-se o mais belo de todos os curumins. Onde passava, atraía para si a benevolência de todos, visto que irradiava uma luz que transmitia paz e sabedoria. Sua curiosidade diante dos segredos da vida, fazia-o cada vez mais sábio. As andanças com o pai pela mata a caçar animais, ou a pescar peixes, fazia com que descobrisse todos os segredos da natureza, que amasse os bichos e deles se tornasse amigo. Com a sua alegria sábia, visitava os velhos doentes, levava alegria aos outros índios vizinhos, sempre com um sorriso no seu rosto de criança iluminada, com um coração repleto das garras da bondade.
Os pais do curumim sentiam-se honrados, não havia em tribo alguma criança tão sábia, bela e amada como o filho. A fama da bondade do menino correu pelas matas, desceu pelas águas dos rios, atingindo todas as tribos da Amazônia. Índios vinham das mais remotas aldeias para ouvir as palavras doces e sábias do curumim.
A sabedoria, bondade e beleza do menino maué atingiram Jurupari, a serpente do mal e das trevas do mundo. Jurupari interessou-se por aquele ser iluminado. Invisível, passou a seguir o curumim por todos os lados. Quanto mais assistia aos seus feitos e como era amado por todos, uma inveja implacável tomava conta de Jurupari. Não suportava tanta bondade e inteligência em um único ser humano. Era quase a perfeição ambicionada pelos pajés e índios da floresta.
Um dia, o curumim encontrava-se no meio da mata, entre os passarinhos e os papagaios, falando com todos eles. De repente a sombra de Jurupari foi sentida pelas aves, que debandaram aos céus, em um vôo súbito. Sozinho, o curumim nada suspeitou. Passou a cultivar frutas silvestres para comer. Ao ver o ato do menino, Jurupari engendrou um plano para acabar de vez com tão perfeita criatura. A maldosa entidade transformou-se em uma cobra que trazia um grande veneno, gerado por todos os males do mundo e pela inveja ardente.
Metamorfoseado em cobra, Jurupari aproximou-se do menino. Ingênuo, ele viu no olhar doce e dissimulado do animal, mais um amigo. Mas não se aproximou, continuou a colher frutos, sem se aperceber que em uma das árvores, a cobra estava enrolada ao seu tronco. Ao tocar no fruto, sentiu a picada fatal de Jurupari. Uma sombra desceu sobre o menino, durante a sua curta existência, ele aprendera os conhecimentos doces da sabedoria da vida, agora, sentia pela primeira vez o amargo das maldades do mundo. Tarde demais para conciliá-los no seu ser iluminado.
Mais tarde, o curumim foi encontrado pelo pai e pelos índios da aldeia, caído no chão, sem vida. Todos lamentaram e choraram a morte do menino. O pai lançou um grito de dor que ecoou pelas matas e rios. A mãe perdia-se em um tortuoso lamento.
As lamúrias e prantos de todos estremeceram as nuvens e comoveram Tupã. Um grande trovão desceu do céu, calando e assustando a todos. Era a voz estrondosa de Tupã, anunciando que iria compensar a dor de todos, reparando o mal e a tristeza que Jurupari infringira quando envenenara e decepara uma vida inocente. Tupã ordenou que fossem plantados os olhos da criança. Deles haveria de brotar uma planta milagrosa, cujos frutos trariam alegria e felicidade a quem os consumisse.
Assim foi feito, os índios maués plantaram os olhos do curumim na mata. Deles nasceram o guaraná, uma fruta em forma de olho. Eram os olhos do menino sábio. Quando ingeridos, os frutos traziam felicidade e bem-estar aos índios, fazendo com que a tristeza pela morte do curumim fosse apaziguada, transformada em um grande prazer.

Mani

Numa aldeia no meio da Amazônia, vivia uma tribo de índios que se dedicavam à caça e à pesca. A vida era tranqüila e pacífica, longe das disputas e das guerras entre tribos vizinhas.
Um dia a paz da aldeia foi abalada por uma novidade, a bela filha do cacique apareceu grávida. O chefe da aldeia soltou um grande grito diante da sua desonra. Era preciso saber quem era o autor do ultraje e puni-lo com a rigidez que exigia a honra. Furioso, ele interrogou a filha, tentando saber a identidade do infame. Passivamente, ela respondeu que não tinha tido relação alguma com os índios da aldeia e da vizinhança. Quanto mais a jovem negava revelar com quem se deitara, mais enfurecido ficava o chefe da aldeia. Enlouquecido, espancou a filha, confinou-a em uma caverna escura, deixou-a sem comer por dias… Nenhum castigo ou ameaça surtia efeito, a jovem continuava a afiançar a sua inocência de que jamais conhecera um homem na intimidade do amor.
Amargurado, o cacique chegou ao fim do dia com uma certeza, era preciso punir a sua desonra. Se a filha continuava a recusar a delatar o índio que lhe engravidara, então era preciso matá-la. Ao recolher-se na oca, deitou-se sobre a rede, com a decisão de no dia seguinte lavar a honra com o sangue da filha. Ao adormecer, o chefe teve o sono invadido por Tupã, que tomando a forma de um homem branco, revelou-lhe a verdade, a filha era inocente, jamais se deitara com índio algum. Quando despertou, o cacique tinha o coração aliviado, toda a amargura e ódio tinham sido dissipados pelo sonho.
Assim, o ventre da jovem cresceu, como se dele fosse sair mais de uma vida. Ao fim do nono mês, após todos os sofrimentos sofridos, a bela índia deu à luz a uma menina de uma beleza rara, trazia uma tez branca que jamais fora vista naquela aldeia ou em qualquer lugar da Amazônia.
Ao saber do nascimento de tão diferente criança, todos os índios da aldeia vieram vê-la e admirá-la. A notícia espalhou-se por todas as nações indígenas da floresta amazônica, motivando uma peregrinação sem fim à aldeia. Todos queriam ver a bela criança de raça desconhecida e nova à humanidade.
A menina foi chamada de Mani. Mostrou-se uma criança com estranhos poderes, pois falou e andou precocemente. Quando completou um ano, parecia ter cinco. Um ano depois, quando a Lua completou todos os ciclos, Mani deitou-se sobre a rede, cerrou os olhos e calou-se para sempre. Faleceu sem apresentar qualquer doença ou sentir dor. Simplesmente adormeceu no manto da morte.
Com grande tristeza, os índios enterraram Mani dentro da oca onde vivia com a mãe. Seguindo os costumes da aldeia, todos os dias a sepultura de Mani era descoberta e regada pelos índios. Passados alguns dias, começou a brotar da cova uma estranha planta, desconhecida de todas as nações indígenas das ribeiras amazônicas. Diante de planta tão rara, os índios decidiram não arrancá-la da sepultura de Mani.
O tempo passou, a planta cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros foram os primeiros a comer os frutos da planta desconhecida. As aves mostraram-se tontas e embriagadas, o que despertou a atenção dos índios, aumentando o suspense e mistério que ladeavam a planta. Um dia a terra em redor da planta fendeu-se. Os índios cavaram o local e debateram-se com uma raiz branca, como era a bela Mani. A misteriosa criança índia tinha se transformado na raiz. Ao comê-la, o povo descobriu aquela que se tornaria a sua principal alimentação. Aprenderam a extrair da planta o cauim, bebida que servia para as iniciações místicas e religiosas. Do tubérculo, um saboroso alimento nutria todos os índios. Passaram a chamar a planta de mandioca, que significava Mani-Óca, oca de Mani.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de: Jeocaz Lee-Meddi


LENDAS MEDIEVAIS

julho 28, 2009

A Idade Média ficou marcada pela profunda guerra religiosa travada com os islâmicos pela Terra Santa, a Palestina, pelo obscurantismo científico e cultural, que deu passagem para um exacerbado ascetismo. Guerras santas, pestilências, cultura ascética, superstições, isolamento feudal, e vários outros fatores, fizeram da Idade Média uma época fértil para a criação de lendas. Milhares delas foram disseminadas nos reinos cristãos, tendo sempre uma moral religiosa que às vezes fugia dos costumes, criando mitos profanos e estranhos, que se confundiam com a própria veracidade histórica, como a possível estadia de uma mulher no trono de Pedro, fato até hoje obscuro, tido por alguns historiadores como lenda e por outros como um acontecimento real.
Neste artigo, três lendas medievais foram selecionadas, adaptadas e contadas, para que se perceba um pouco do universo cristão da época: “O Judeu Errante”, “A Papisa Joana” e “Lady Godiva”.
O Judeu Errante” é uma lenda que mostra o sentimento anti-semita latente na Europa medieval. Ela apaga por completo a origem judaica de Jesus Cristo, fazendo com que se acredite que já nasceu cristão e foi escarnecido e morto por judeus. Narra a lenda de Ahasverus ou Ahsuerus, um sapateiro habitante de Jerusalém, que ao ver Cristo passar no dia da sua crucificação, escarneceu-o e negou-lhe um pouco de água, ou conforme a versão, ajuda para que se levantasse do chão. Como castigo, foi amaldiçoado pelo martirizado a viver errante pelo mundo, velho e sem forças, sem nunca morrer, até o fim dos tempos. Ironicamente, a lenda castiga o algoz com a vida eterna, prêmio que todo bom cristão almeja. A figura do Judeu Errante tornou-se mítica através dos tempos. Na Alemanha nazista foi ressuscitado como parte do programa anti-semita, tendo na caricatura de David Shankbone o símbolo do mito como forma de propaganda contra os judeus.
A Papisa Joana” teria sido o papa João VIII, sendo a única a mulher a governar a igreja católica num período de dois a três anos. A lenda surgiu no fim do século IX, relatando que Joana teria ocupado o cargo entre os pontificados de Leão IV e de Bento III, que corresponde aos anos de 850 a 1100. Disfarçada de homem, Joana teria ascendido como papisa, até que uma gravidez inesperada fez com que desse à luz a uma criança nas ruas de Roma, na frente da população. Descoberta a farsa, a papisa e o filho teriam sido mortos pela revolta popular. Muitos historiadores divergem quanto à veracidade da história, tendo aqueles que aceitam Joana como uma personagem real, e outros como lenda, como uma difamação da igreja ortodoxa de Constantinopla contra a igreja de Roma, originada possivelmente de uma sátira. Nenhuma corrente teórica chegou a um acordo, e Joana, a papisa, continua um mistério, fazendo, inclusive, parte das cartas de Tarô, de romances literários e personagens do cinema.
Lady Godiva” é uma lenda inspirada em uma personagem real. Godiva foi esposa do Conde Leofric, que em 1043 fundou a ordem de São Bento, em Coventry. Godiva é a única mulher a ter o seu nome registrado em um livro da época como dona de terras. Viúva de Leofric, teria morrido em 10 de setembro de 1067. Sua lenda marca o ideal medieval, o ascetismo a vencer o luxo, o sacrifício do corpo e da moral em nome do bem dos cristãos. Ao caminhar nua em cima de um cavalo, a lenda de Lady Godiva mescla o pudor religioso da Idade Média com as lendas profanas dos gregos antigos, fazendo dela uma narrativa sublime.

O Judeu Errante

O tumulto levou as pessoas às ruas de Jerusalém. Jesus, filho de José, entrara triunfante na cidade, desafiara os comerciantes e os guardiões do templo, presidira a ceia com os seus apóstolos, transmitira a sua mensagem definitiva no Monte das Oliveiras, para cair, tragicamente nas mãos de soldados, sendo julgado, açoitado, humilhado e condenado a ser crucificado.
As festas da Páscoa em Jerusalém foram interrompidas para que se acompanhasse o martírio daquele que se dizia o Messias, que viera para elevar o seu povo, acabar com os sofrimentos dos judeus. Pelas ruas da cidade, o profeta caminhava humilhado, a levar a cruz nas costas, a mesma que serviria como suplício final. Caminhando enfraquecido, quando se deixava cair, era obrigado a levantar através dos açoites impiedosos dos soldados romanos.
Alheio ao tumulto da cerimônia que precedia à crucificação, Ahasverus trabalhava dentro da sua casa, a preparar o couro que usava para fazer os sapatos que vendia. Era um homem calado, frio e alheio aos dramas e às pessoas à volta. Sua barba espessa escondia as marcas que lhe ia esculpindo o tempo. Não havia Páscoa ou tradições que lhe arrebatasse do cheiro do couro curtido, trabalhado artesanalmente. Fechar um acerto de casamento com uma jovem estava longe de qualquer plano que fizera. A sua solidão latente era o prêmio maior que já adquirira. A sua arte com o couro a realização da alma.
À medida que o supliciado aproximava-se da rua onde Ahasverus morava, o tumulto tornava-se insuportável. Pessoas gritavam, algumas pediam a morte do suposto Messias, outras pediam misericórdia por sua vida. O sapateiro procurou ignorar o barulho. Continuou a recortar o couro curtido. De repente um estrondo bateu-lhe na porta, fazendo com que ela se abrisse. Parte de uma cruz entrou pela sala. Ahasverus viu um homem atormentado, caído na sua porta, com uma coroa de espinhos na cabeça, o rosto coberto de sangue e as costas em carne viva. Ahasverus irritou-se com aquela imagem. Sentiu-se profundamente incomodado, como se aquele homem ensangüentando, a descansar por um momento na sua porta, fizesse com que todos os males da sua alma se lhe fosse revelado. Tomou-se de cólera quando viu gotas de sangue a sujar a sua porta. Deixou os afazeres e aproximou-se do supliciado, que caído no chão, pediu-lhe ajuda para se erguer. Mas Ahasverus não se deixou comover, com o pé direito, empurrou o nazareno, vociferando com arroubo:
-Sai da minha porta! Anda, põe-te a andar! Vá logo!
Naquele momento Simão, o Cireneu, apiedando-se de Jesus, ofereceu-se para ajudá-lo a reerguer-se do chão com a cruz. Antes de continuar o caminho para o martírio, o nazareno olhou profundamente Ahasverus, falando-lhe mansamente:
-Eu vou, mas tu ficarás… Caminharás errante e sem descanso pelo mundo até a minha volta…
O olhar que Jesus, filho de José, lançou para o sapateiro, fez com que ele estremecesse a alma. Sentiu-se paralisado, a ver aquele homem caminhar para a morte, afastando-se da sua tenda, deixando-o com uma maldição eterna. Ainda no fim da tarde daquela sexta-feira, quando o céu escureceu e o nazareno morreu na cruz, Ahasverus viu a barba do seu rosto ficar branca, as mãos envelheceram, sem que tivessem mais habilidade para trabalhar o couro. Ahasverus perdera a juventude e a sua arte. A solidão passou a queimar-lhe o peito.
Lentamente Ahasverus viu o tempo passar, os seus contemporâneos sugados pela morte. Sua alma tornou-se inconstante, peregrina. Uma grande nuvem de poeira bateu-lhe na porta, arrebatando-o e levando-o para as estradas do mundo. Quanto mais envelhecia, mais se distanciava da morte. Ahasverus passou a percorrer cidades com ruas sem fim. Por onde passava, era conhecido como o Judeu Errante, o eterno estrangeiro, sem pátria, sem raízes.
Nas vilas, nas aldeias, nas terras mais distantes, o povo era surpreendido por um redemoinho de poeira, era o Judeu Errante que vinha dentro dele, numa peregrinação permanente, a carregar consigo a maldição por ter sido cruel com o nazareno. Todos, quando viam o redemoinho, fechavam as suas portas e janelas, até que passasse o amaldiçoado, evitando que o agouro entrasse pela casa. O Judeu Errante vaga no meio da poeira, atormentado e solitário, na esperança do dia em que Jesus, filho de José, retorne ao mundo e anuncie o fim da sua maldição e dos tempos.

A Papisa Joana

No princípio do século IX, os ingleses dirigiram-se às terras da Saxônia, conquistada pelos cristãos, para ali, propagarem a fé da igreja romana. No meio dos propagadores da fé estava um padre inglês, que levava consigo uma jovem de doze anos, grávida. Ele a raptara dos pais e para fugir à desonra do ato, seguira para as terras germânicas. A jovem deu à luz em Mayence, a uma menina que foi chamada de Gerberta.
A menina cresceu, tornando-se uma bela jovem. Aprendera com o pai os estudos seculares, enchendo-se de erudição, surpreendendo a todos os doutores com a sua sabedoria. Gerberta interessava-se pelas ciências, mesmo diante das limitações que se lhe impunham por ser mulher, jamais abandonou o aprendizado. Sua alma intelectual só deu uma trégua quando foi seduzida por um jovem frade da abadia de Fulde. A paixão arrebatou aos dois, fazendo com que se entregassem aos prazeres do amor. O frade, de família inglesa, convenceu a jovem que fugisse com ele. Para acompanhar o amante, Gerberta, que passou a ser chamada de Joana, despiu-se da sua identidade e das raízes, vestindo roupas de homem. Em Fulde, viveu com o amante sob o disfarce, enganando a todos.
Mais tarde, os amantes partiram para a Inglaterra. Apresentada como homem, Joana pôde aprofundar os seus estudos, tornando-se ao lado do amante, os maiores eruditos de toda a Grã-Bretanha.
Joana e o amante viajaram por diversos países, buscando a erudição suprema. Passaram pela França, pela Grécia. Por dez anos os amantes viveram a paixão de forma velada em terras gregas. Um dia, o companheiro de Joana foi vítima de uma doença súbita, que lhe consumiu a vida em poucas horas. Solitária e feita em homem, Joana deixou a Grécia, retirando-se para Roma.
Em Roma Joana foi admitida na academia da cidade para ensinar as sete artes liberais. Atraiu para si as honras de monges, padres, ricos senhores feudais e doutores, tamanha era a erudição que trazia. Quando o papa Leão IV caiu doente, Joana foi citada para que ocupasse o seu lugar. Assim, após a morte do papa, aclamada pelos cardeais, diáconos, clero e povo; disfarçada de homem, pela primeira vez uma mulher foi eleita como papa, sentando-se no trono de Pedro, usando o nome de João VIII.
Joana fez um pontificado que foi aplaudido e reverenciado por todas as terras cristãs. Mas a sua verdadeira essência não lhe permitiu viver a farsa por completo. Apaixonada por um oficial da Guarda Suíça, Joana fez dele um amante, revelando-lhe o seu segredo. Nos quartos frios do Vaticano, viveu o seu amor com intensidade, até que ficou grávida. Com as roupas largas que usava, não lhe foi difícil ocultar a gravidez dos olhos do povo e do clero.
Anualmente, os romanos celebravam a festa das Rogações. Era costume que o papa seguisse em frente a uma procissão solene, montado em um cavalo. Joana não fugiu à tradição, montou um cavalo ao sair da igreja de São Pedro. Quando deixou a basílica, a papisa estava revestida com ornamentos pontificais, mostrando a exuberância de toda a pompa da igreja. Dirigia-se à basílica de São João de Latrão acompanhada de um séquito, dos clérigos, nobres e do povo de Roma. Quando caminhava entre a basílica de São Clemente e o anfiteatro Domiciano, o Coliseu; foi arrebatada por fortes dores de parto, tão violentas que fizeram com que caísse do cavalo. Assustado, o povo não se apercebia o que estava acontecendo com o pontífice, que se contorcia no chão. No meio das dores, Joana rasgou os ornamentos e vestes sagradas, expelindo das entranhas, para espanto geral, uma criança.
Humilhada, desmascarada e vencida, Joana sangrava incessantemente, devido à queda do cavalo e ao parto difícil. Tomados pela vergonha e pela cólera, membros do clero cercavam o corpo da papisa para escondê-la da fúria do povo. Diante do choro da criança, um bispo ergueu as mãos para o céu e disse:
-Milagre! Milagre!
Mas o ardil foi em vão. Joana morreu sem que se lhe fosse prestado socorro. Deu um último suspiro e, ainda a sentir-se vitoriosa, partiu para o mundo dos mortos. A criança recém nascida foi sufocada pelos padres. Mãe e filho foram enterrados sem pompas no mesmo túmulo.
Para que não se cometesse o mesmo engano, os sucessores de Joana passaram a ser submetidos à prova da cadeira furada. Após a eleição, momentos antes de ser conduzido ao palácio de Latrão para a tomada de posse, o papa eleito assentava-se em uma cadeira furada no centro, que ficava na capela de São Silvestre, com as pernas separadas, o corpo meio estendido, com os hábitos pontífices abertos, confirmando aos assistentes a prova da sua virilidade. Após ser tocado na genitália por dois diáconos, ouvia-se o grito de um deles:
-Temos um papa!
Joana, a papisa, foi a única mulher da história a presidir a igreja de Roma por quase três anos. A maternidade pôs fim ao seu pontificado!

Lady Godiva

Em Coventry vivia-se um tempo difícil. O sol não aquecera os pomares, fazendo com que as azeitonas e as vinhas não produzissem o suficiente para que se fizesse com fartura o azeite e o vinho. A miséria do povo era tão latente quanto à modéstia de jóias que as mulheres da nobreza traziam sobre o corpo, ou as vestes modestas que faziam dos seus habitantes os menos abastados de toda a Inglaterra.
Como se não bastasse a penúria vivida, a insatisfação assolava os habitantes, cada vez mais empobrecidos pelos altos impostos cobrados pelo conde Leofric, senhor absoluto daquele feudo. Grande parte do alimento colhido naquela estação ingrata, saía da boca do povo para que se pagasse os impostos ao nobre senhor. A fome pairava afoita pelas casas, pelos campos, por Coventry.
O conde Leofric era casado com uma das mulheres mais belas de toda a Inglaterra. Lady Godiva era serena, cabelos sedosos, longos e dourados como os raios do sol. Seus olhos eram azuis como o mar, traziam uma expressão de infinito que seduzia ao marido e todos os súditos em volta. Lady Godiva era de uma bondade imensa. Servos e escravos eram tratados por ela com dignidade. Não se furtava da caridade e de ajudar aos desvalidos e desprovidos da grandiosidade da vida e da sua opulência secular.
Um dia, os servos trouxeram diante do conde um camponês que fora apanhado a roubar nabos da horta de Leofric. Levado diante do conde, o infeliz declarou que cometera aquela imprudência extrema por não ter nada para comer, que os últimos grãos que colhera foram usados para pagar os impostos devidos. Que os cinco filhos pequenos choravam de fome, atormentando-o toda a noite. Ao ouvir os relatos do infeliz, Lady Godiva comoveu-se, convenceu o marido a não punir o infeliz, fornecendo ainda, alimentos para os seus filhos. Mesmo irritado, o conde acedeu com a bondade infinita da mulher.
Depois dos acontecimentos, Lady Godiva andou por todos os cantos de Coventry. Montou em seu cavalo, atravessou as muralhas, rondando por toda a parte. Descobriu que a fome assolava o lugar. Que grande parte dos alimentos colhidos iriam para os impostos do conde. Compadecida com o sofrimento daquele povo, Lady Godiva prometeu a si mesma intervir e a ajudá-lo.
Quando retornou ao castelo, encontrou o marido no estábulo, a supervisionar a alimentação das bestas. Lady Godiva desceu do seu cavalo. A respiração arfava de cansaço. Mesmo assim, encontrou forças para contar ao marido da tristeza e miséria que se abatia sobre Coventry. Falou com tanta ênfase que as lágrimas afloraram-lhe os olhos, derramando-se sobre as faces. O conde ouviu a mulher, que lhe implorava para que abaixasse os impostos. Não se deixou comover, mas as lágrimas da esposa, a sua veemência em defender os oprimidos, fizeram com que Leofric tentasse um ardil. Usando da sua inteligência sarcástica, ele esboçou um sorriso irônico e disse à mulher:
-Muito bem, já que insistes tanto na defesa deste povo, comovendo-me com as lágrimas que destroem a cor do céu dos teus olhos, concedo-te o pedido. Mas para que se realize, imponho-te uma condição, que a próxima vez que fores cavalgar, tu o faças sem roupas, completamente nua pelas ruas de Coventry.
-Tenho a tua palavra de que se o fizer, irás cumprir a promessa?
-Minha amada, se cavalgares nua pelas ruas de Coventry, não só abaixarei os impostos, como perdoarei a dívida aos mais necessitados.
-Que assim seja feito.
Leofric sorriu para a mulher. A promessa fora-lhe fácil fazer, difícil seria Lady Godiva cumprir a condição que impusera. Estava confiante de que ela desistiria e, ao sentir-se culpada, deixar-lhe-ia em paz com aquelas lamúrias.
Mas Lady Godiva trazia no coração uma bondade maior do que qualquer moral estabelecida pela mesquinhez dos homens. Lady Godiva mandou que os seus servos avisassem ao povo do seu sacrifício para salvá-los dos impostos e da fome. Pediu que durante a sua cavalgada penitente, todos os moradores deixassem as ruas e que se fechassem em suas casas. Comovido com a grandiosidade de Godiva, o povo de Coventry aceitou atender-lhe o pedido.
Assim, Lady Godiva desafiou a ironia e mesquinhez do marido. Despiu as vestes no estábulo, montou, completamente nua, o seu belo cavalo. Cavalgou por todas as ruas de Coventry de cabeça erguida, sem que ninguém ousasse observá-la. Somente Jack, o moleiro, não resistiu de contemplar tamanha beleza edênica. Contrariando a todos os moradores, abriu uma fresta da janela da sua casa, ao olhar tamanha beleza nua a desfilar pelas ruas, viu uma grande luz sobre os seus olhos, que foram cegados para sempre.
Ao retornar da cavalgada, Lady Godiva encontrou o conde à espera. Comovido, ele vestiu as roupas à mulher, depois se ajoelhou aos seus pés, reafirmando a palavra dada. Levantou-se e beijou a mulher.Leofric retirou os impostos altos dos ombros do seu povo. Naquele ano as colheitas foram abundantes em Coventry. O azeite jorrou nos lagares, o trigo transformou-se em pães quentes sobre as mesas, e o vinho abençoou as refeições. Lady Godiva passou a ser amada pelo seu povo, até mesmo por Jack, o moleiro, que depois da luz da nudez da mulher sobre o cavalo, não viu mais nada na vida.

Adaptação Livre de: Jeocaz Lee-Meddi


LENDAS DO INTERIOR DO BRASIL

abril 25, 2009
O Brasil é um país continente, rico em tradições e lendas. Grande parte delas estão ligadas aos costumes herdados dos colonos europeus, dos nativos indígenas e dos negros vindos da África. Neste artigo foram reunidas três lendas de partes opostas do país, como a da Mãe de Ouro, típica do Centro-Oeste, que teve a sua história feita em cima do desbravamento dos bandeirantes e das pedras preciosos ali encontradas; do Vaqueiro Misterioso, mítico personagem do interior nordestino, que tem nas vaquejadas uma das festas mais tradicionais do sertão; e, a lenda das Amazonas, que roubada da mitologia grega, deu origem ao nome do maior rio do mundo em águas, o Amazonas, tornando-se parte do folclore do norte do Brasil.
O Vaqueiro Misterioso é o estereótipo do herói da caatinga, à primeira vista um retirante, como grande parte dos habitantes da chamada região da “Civilização do Couro”, mas que se transforma no mais valente dos homens, um autêntico sobrevivente de todas as diversidades do sertão. O herói incansável aparece e desaparece, sem deixar um nome, a sua identidade é o próprio sertão nordestino.
A Mãe de Ouro nasceu da fantasia dos solitários garimpeiros, que em busca da riqueza, construíram o Brasil central. A lenda corre no rio das Garças, que em outros tempos foi rico em pedras preciosas. O fago-fátuo desprendido das ossadas dos animais mortos causava medo aos garimpeiros, ao mesmo tempo eram vistos como os pingos de luz de uma mulher que trazia as riquezas da região, escondidas em suas grutas e no leito dos seus rios.
As Amazonas, lenda da terra das mulheres guerreiras e sem homens, vem da antiga mitologia grega. Em 1542, os espanhóis chegaram a um imenso rio que chamaram de “Mar Dulce”. Frei Gaspar de Carvajal, escrivão da frota espanhola, revela ter sido atacado por mulheres guerreiras, nuas e com arcos nas mãos. Associou-as ao mito das Amazonas, e a partir de então, o grande rio foi batizado de rio Amazonas, sendo a lenda grega transportada para o imaginário brasileiro.

O Vaqueiro Misterioso

O sol do sertão queima sem piedade o solo. Valentes mandacarus resistem imponentes, tornando-se o único verde no meio de toda a caatinga. No meio do cenário agreste, aparecia a figura misteriosa de um vaqueiro. Surgia do nada, ao longe trazia o retrato do sertão cortante e seco, trajando vestes rotas, chapéu cambaio sobre o rosto queimado. Montava a sua égua esquálida, que trazia um ar de cansaço, sôfrego e sem esperança, como o era o mais valente dos retirantes. Quando surgia no horizonte, o Vaqueiro Misterioso era a própria visão do apocalipse sertanejo.
Conforme se aproximava dos povoados e das fazendas, a imagem do vaqueiro transformava a mais incrédula retina, o seu semblante trôpego dava passagem para os gestos rápidos, para uma vitalidade contagiante. A sua égua dantesca deixava os infernos da seca, mostrando-se a mais valente das bestas, um autêntico e indomável corisco.
E o Vaqueiro Misterioso empregava-se momentaneamente pelas fazendas, tornando-se o mais hábil na lida, com a força de dez homens. Embrenhava-se na caatinga atrás do gado fugitivo, trazia no laço quantos se lhe deparassem, sem mostrar qualquer cansaço ou fatiga. Tão logo encerrava as tarefas, recebia a paga e partia, deixando frustrados os fazendeiros que tudo davam para tê-lo ao seu serviço para sempre, pois sabiam, igual a ele não existia homem algum no sertão. Quem era aquele vaqueiro? De onde vinha? Para onde ia? Ninguém sabia ao certo. Por isto era chamada de Vaqueiro Misterioso. Tão afamado ficou, que os violeiros do sertão cantavam o seu “ABC” nas praças dos vilarejos, e os cordéis das feiras ilustravam as suas façanhas.
Finalizada a apartação do gado, o nordeste iluminava-se para a sua festa mais tradicional, a vaquejada. Homens viris mostravam o canto triste de vaqueiro, que chamavam de aboio. Após o som dos aboios, a vaquejada tinha início. Quando os animais eram soltos, surgia do nada, o Vaqueiro Misterioso. Vinha intrépido montado na sua égua branca. De repente reluzia apenas a sua brava imagem, a derrubar pela cauda, os mais valentes bois. Seu corpo trespassava a gravidade, como se voasse no galope do vento, pondo ao chão o mais feroz dos marruás. Sua sombra entrelaçava-se ao corpo, enfrentando o mais bravio dos bois, domando-o e pondo-lhe o tapa-olho, fazendo-o urrar como um cordeirinho.
Aos aplausos, o Vaqueiro Misterioso encerrava a sua atuação. Era o grande herói da festa. Subia ao palanque, onde recebia a fita amarela de campeão, amarrada ao seu braço. Humildemente sorria, jogando a fita à mais bela das donzelas que por ele suspirava. Todas elas debatiam-se para levar a fita de tão viril herói. Muitas entregavam a ele o seu coração, mas a todas o misterioso andarilho ignorava.
Após ser aclamado por todos, ele comia e bebia como nenhum outro era capaz. Cantava ao lado dos violeiros. Dividia com todos a sua alegria fugaz. Depois do rega-bofe, ele guardava um pouco de carne seca na bolsa de couro que trazia, preparava a sua égua e partia, assim como viera, distanciando-se no horizonte. Ainda ouvia atrás de si, quem lhe gritava, a perguntar-lhe pelo nome. Não respondia. Ninguém sabia. Era o Vaqueiro Misterioso, que desaparecia no meio da caatinga, como a chuva que não caiu no sertão.

A Mãe de Ouro

Maria caminhava pelas beiras do rio das Garças. Todas às vezes que olhava para as águas do rio, seu coração sentia o conforto de que seria feliz, como se a felicidade emergisse das profundezas do seu leito. Caminhava desatenta, quando chegou à gruta onde o rio desaparecia. Ali, diziam os seus antepassados, morava a Mãe de Ouro. Maria sorriu para a gruta, como se sorrisse para a felicidade prometida. Seus olhos de donzela sonhadora miraram no horizonte, quando percebeu que a tarde já ia avançada, e o Sol, muito breve, cederia o seu reinado para a Lua.
Maria pensou em voltar para casa, antes que se fizesse escuro. O frescor da tarde trouxe uma nuvem de pirilampos, ansiosos pela noite. No meio da luz dos insetos surgiu, de dentro da gruta, uma linda mulher, que trazia uma vasta cabeleira reluzente. Era a Mãe de Ouro, a sair para o mundo. Sua beleza fulgurante não poderia ser revelada ao Sol, para que por ele não fosse ofuscada. Só saía da gruta ao torpor da tarde, já pronta para o encontro com a Lua, de quem era irmã gêmea.
O rosto de Maria iluminou-se diante do esplendor reluzente dos cabelos da Mãe de Ouro. Deles caiam pingos de luz, que refletiam todas as cores e, ao contacto com o chão, transformavam-se em pedras preciosas. Maria viu a Mãe de Ouro iniciar a sua trajetória pelo céu. Sua luz refletia um imenso arco-íris, os pingos dos seus cabelos assumiam as sete cores do arco. Maria sabia que, ao ver a Mãe de Ouro, se fizesse um pedido antes que um pingo de luz caísse na terra, seria atendida, tornando-se uma mulher feliz. Assim, cerrou os olhos e fez o seu pedido.
Ao fim da visão, Maria retornou para a sua casa. Desde então passara a pertencer à Mãe de Ouro. Nas noites de lua cheia, ao adormecer, ela, silenciosamente, deixava o seu corpo na cama, e era transportada ao palácio da Mãe de Ouro.
No palácio, escondido nas profundezas da gruta, havia uma luz que reluzia as cores de todas as pedras preciosas. Era lilás nos quartos de ametistas, branco reluzente nos de diamantes, vermelhos nos de rubis, verdes nos de esmeraldas, azuis nos de safira, amarelos nos de topázios…
Ao chegar ao palácio, Maria teve o seu corpo coberto por um traje de pedras preciosas, vistoso, rico e translúcido. Ela foi levada para o salão principal, onde se ouvia as mais belas músicas, cantadas por jovens sereias; danças de belas mulheres e gênios travestidos de belos rapazes; o amor e a alegria transbordavam por todos os cantos do palácio.
Maria passou a usufruir todos os encantos daquele mundo. Ao seu lado estavam outras mulheres que, assim como ela, pertenciam à Mãe de Ouro. Viu quando uma, ao falar com outra, transformou-se em carvão. Uma das regras era que, nenhuma mulher poderia falar ou tocar na outra.
No fim da noite, um gênio encantando, trazendo o corpo viril de um homem, amou e possuiu Maria, fazendo-a a mais feliz das amantes. No meio do leito do rio, as suas águas tomaram forma de uma cama nupcial. Maria transbordou de amor.
Por fim o galo deu o seu primeiro canto. As mulheres encantadas saíram da gruta, em forma de um grande nevoeiro de nuvens brancas. Transformada em uma nuvem leve e alva, Maria voltou para a sua casa, retornou ao seu corpo, vestiu a sua pele e despertou, pronta para viver a sua vida normalmente, até a próxima lua cheia, quando os encantos da Mãe de Ouro virão buscá-la novamente.

As Amazonas

No Reino das Pedras Verdes, no coração da selva amazônica, contam os índios, vivem mulheres guerreiras, que caçam e pescam os seus alimentos, trabalham na roça, onde cultivam a mandioca, tecem redes e tecidos coloridos, fazem vistosas cerâmicas, adornos de penas para os corpos esbeltos. São mulheres que dividem tudo por igual e, naquele reino, não vivem homens. Elas são as Amazonas.
O Reino das Pedras Verdes é governado por uma rainha. Cabe a ela a pajelança e os rituais de purificação aos deuses da mata. A rainha das Amazonas é quem organiza as festas e as tarefas de trabalho. Seu reinado é curto, dura apenas cinco luas cheias de abril. Por isto, de cinco em cinco anos, o reinado é passado a uma virgem de vinte anos.
Para demarcar o reino, as Amazonas fabricam um amuleto, o muiraquitã, uma raridade que nenhum índio de toda a selva amazônica sabe como é feito. A matéria-prima para fabricá-lo só é encontrada na terra das mulheres guerreiras.
Uma vez por ano, no mês de abril, as mulheres guerreiras recebem os homens, para que assim, possam acasalar, garantindo a prole e as tradições. Na noite de lua cheia de abril, uma grande claridade ilumina as águas límpidas do grande lago Jaci-Uaruá. Refletidas pelos raios do luar, as Amazonas mergulham no lago, indo até as suas profundezas, de onde trazem uma grande quantidade de barro. É deste barro limoso que modelam as figuras de rãs, peixes e tartarugas. O barro tem que ser modelado às pressas, ainda debaixo da água, antes que o luar endureça o limo verde.
Dos animais modelados, a rã, símbolo da fertilidade das mulheres guerreiras, transforma-se em um amuleto de acasalamento, que ao ser perfurado, é posto nos seus pescoços. Elas estão prontas para naquela noite, receberem os mais viris e saudáveis índios das tribos vizinhas. É a noite nupcial do luar de abril.
Após uma noite ardente de amor, as Amazonas estão fecundadas. Para os índios que lhe deram uma filha, elas retribuem com o muiraquitã. Os que lhe deram um filho no ano anterior, terão que levar o menino para ser criado em suas aldeias, posto que no Reino das Pedras Verdes só vivem mulheres, são elas as Amazonas, as mulheres sem maridos.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas


AVES BRASILEIRAS E AS SUAS LENDAS

março 29, 2009

No imaginário popular há certos animais que por sua imponência, são associados ao folclore regional, originando lendas que tentam explicar a natureza, ou mesmo a tornar épica a construção de um determinado povoado. No Brasil imaginário, onças, peixes, cobras e tantos outros animais, suscitaram lendas e crendices que atravessaram os séculos, da colonização à nação, formando a cultura popular transmitida de pai para filho. Em particular as aves, pelo seu canto, pela capacidade de voar, pela beleza das plumagens ou pela falta dela, suscitam muitas crendices populares e as mais magníficas lendas.
Três lendas fazem parte deste artigo, todas elas envolvendo aves, a do urutau, ave noturna dos sertões brasileiros; a da gralha azul, símbolo do Estado do Paraná; e, a do urubu, a mais brasileira das aves, existente em todo o país.
A Festa no Céu é uma lenda que existe não só no Brasil, como em Portugal, o que nos remete a crer que seja de origem lusitana. Envolve a destreza do urubu diante da natureza e a esperteza do sapo, indo contra as limitações do seu corpo. Em outras versões o sapo é trocado pela tartaruga, mas o desejo de alcançar o céu como as aves, prevalece.
O Urutau conta a lenda da mulher que por ser muito feia, foi abandonada pelo homem que amava e transformada nesta ave de canto melancólico, de hábitos noturnos. Famosa entre os sertanejos, a ave é tida como símbolo de sorte para uns e como mau agouro para outros. É uma das aves mais feias do sertão, recebendo vários nomes: jurutaí, mãe-da-lua, jurutau, curiango, bacurau grande ou chora-lua.
A Gralha Azul traz a lenda de uma ave típica do sul. É símbolo da construção do Paraná, do homem que ao colonizar a terra e cultivá-la para a sua subsistência, destrói a sua mata e os pinhais, árvore símbolo daquelas terras. A gralha azul, de cabeça preta, com o seu canto estridente, é a esperança da conservação da natureza, mesmo diante da colonização do homem.

A Festa no Céu

Uma grande festa no céu foi anunciada aos animais. Para desencanto de muitos, só foram convidadas as aves, por possuírem asas e lá poder chegar. Ao saber da festa, o sapo Cururu não se conformava em não ter sido convidado. Mesmo sabendo da impossibilidade de ir ao céu, espalhou por toda a mata que também tinha sido convidado, fazendo com que os outros animais dele risse e escarnasse.
Cururu passava os dias na lagoa, a rebater o escárnio, mantendo sempre a convicção de que iria à festa no céu. Foi quando um dia, o Urubu foi lavar os pés na lagoa. Cururu sabia que ele era o violeiro que tocava nas festas dos bichos, e, como voava, com certeza iria tocar na festa do céu.
-Hoje é o dia da festa no céu. – Falou o Urubu ao sapo, trazendo a viola nas costas. – Venho lavar os meus pés e seguir para lá. Soube que foste convidado.
-É verdade, mais tarde lá estarei e poderei ouvir-te tocar! Quero dançar a noite toda, até que nasça o sol.
O Urubu não se preocupou com Cururu, lavou os pés, bebeu água, sacudiu as penas, sem que se apercebesse que o astuto sapo entrara em sua viola, lá permanecendo silencioso. Ao terminar a sua higiene, o Urubu pegou a viola e voou para o céu, distanciando-se cada vez mais da terra, até que chegou à tão esperada festa.
Foi em um momento de distração do Urubu, que o sapo Cururu saiu de dentro da viola, surpreendendo a todas as aves com a sua presença. O Urubu tocou durante toda a noite, afirmando a sua fama de violeiro dos bichos. Cururu dançou, cantou e comeu todas as delícias da festa. Era a primeira vez que um bicho que não tinha asas participava de uma festa no céu.
Momentos antes de a festa terminar, já o sol nascia, e Cururu voltou para dentro da viola do Urubu, onde permaneceu quieto, refestelado e pronto para voltar à lagoa. O Urubu despediu-se de todos, e de viola nas costas, pôs-se de volta à terra. Como Cururu tinha comido muito, o seu peso aumentara drasticamente, fazendo com que a viola pesasse mais ao Urubu. Desconfiada, a ave sacudiu a viola e viu que dentro dela estava o sapo.
-Mas que grande trafulha e malandro este sapo. Dar-te-ei uma lição, que não me logrará uma outra vez.
Assim dizendo, o Urubu atirou Cururu no ar. O pobre sapo assustado, viu passar diante dos seus olhos a imensidão do vácuo, caindo de costas sobre as pedras. A pancada foi tão forte que ficou marcada para sempre nas costas de Cururu, fazendo marcas que cicatrizaram em forma de desenhos. Desde então, todos os sapos trazem desenhos nas costas, como testemunho de que um dia Cururu foi à festa no céu.

O Urutau

Maria era uma moça sonhadora, que pensava um dia poder conhecer um belo príncipe e com ele se casar. Queria ter filhos e um lar para cuidar e ser feliz. Mas Maria era a mais feia das mulheres da sua terra. Era demasiadamente magra, vesga dos olhos, nariz enorme e olhos esbugalhados.
O aspecto físico de Maria espantava todos os rapazes jovens, que dela fugiam como se fugissem de uma bruxa. As outras mulheres casadoiras chamavam-lhe pelas costas de mãe da lua. Mas Maria o que não tinha de beleza, derramava de bondade, tendo um coração infinito.
Certa noite, após a labuta no campo, Maria voltava para casa, quando se deparou com um rapaz gentil e de voz sedutora. No céu densas nuvens encobriam o luar, trazendo um grande breu à estrada, o que levara o rapaz a se perder. Maria ouviu o jovem perdido, conhecedora de todos os caminhos daquela região, prontificou-se em ajudá-lo a sair do ermo.
Os dois caminharam na noite escura. O rapaz ouvia a doçura da voz de Maria. Na escuridão só lhe via o semblante, que lhe parecia belo e garboso. Apaixonado, segurou na mão de Maria, e assim, caminharam pela escuridão. Cada vez mais apaixonados, juraram amor eterno. Ele era um príncipe honrado, e diante de tanta bondade e doçura na voz, propôs a Maria que se casasse com ele. Maria aceitou. Caminhavam felizes, de mãos dadas, quando a lua saiu do meio das nuvens, cobrindo de luz toda a estrada do sertão. Naquele instante o príncipe pôde ver o rosto da amada. Assustou-se diante de tão horrenda criatura. Arrependido do pedido de casamento que fizera, ele disse à jovem que o esperasse, que já voltava. Sem olhar para trás, distanciou-se dela e jamais retornou.
Maria ficou perdida no meio do sertão, à espera do amado. Esperou… Esperou… Mas a imagem do amado foi tragada pela imensa lua que brilhava no céu. Maria chorava, quando lhe surgiu no caminho uma velha feiticeira. Desesperada, perguntou à feiticeira se tinha visto o belo príncipe que lhe jurara amor e casamento.
-Casar contigo? – Indagou a feiticeira. – Teu coração é gigante, assim como o teu rosto é horrendo. O teu príncipe fugiu do teu rosto, perdendo-se do teu coração…
-Não é verdade, tivesse eu asas e voaria pelo céu, até encontrar o meu príncipe!
Compadecida, a feiticeira pôs as mãos sobre a cabeça de Maria, transformando-a em uma ave, assim ela poderia voar em busca do seu príncipe. Maria, metamorfoseada em ave, saiu voando pelos céus, atrás do seu príncipe. Voou toda a noite, quando o dia raiou, os seus olhos, acostumados à escuridão, não se mantinham mais abertos diante do sol. Maria procurou o oco de uma árvore a ali se aninhou, fazendo daquele buraco o seu novo lar.
Maria tornou-se uma ave que foi chamada de urutau. Passa o dia a dormir, saindo à noite em vôos tristes e silenciosos. Quando a lua surge no céu, o urutau deixa o oco das árvores e começa a cantar. Solta um canto triste, pungente, como se fosse um grande lamento. Quem ouve o urutau, não sabe que por trás do seu canto melancólico e crescente está Maria, que com a sua lamúria em voz de ave, repete pungentemente: “Foi… foi… foi…”

A Gralha Azul

Numa fria manhã de inverno, a gralha ainda dormitava no galho do pinheiro, quando foi surpreendida por um súbito e seco barulho. Assustada, ela pôde ver um homem a desferir o machado no tronco do pinheiro. A gralha ouviu os gemidos agudos do pinheiro, enquanto que a seiva de dentro dele transbordava em dor.
Com tristeza, a gralha viu os golpes do machado, cada vez mais intensos, a cortar sem piedade o majestoso pinheiro que por muitos anos deu-lhe abrigo, tornando-se um amigo. Sabia que o destino de tão bela árvore, que por décadas a natureza tecera o porte que apresentava, seria o de uma serraria, transformada em madeira morta para servir aos caprichos humanos.
Impotente diante da tragédia que se abatia sobre o pinheiro amigo, a gralha voou em direção ao infinito, subindo muito além das nuvens, de modo que não pudesse ouvir os gemidos de dor causados pelo corte fatal do machado. Já na imensidão do céu, a pobre ave pôde ouvir uma voz terna a ecoar:
-O coração das aves é misericordioso, revoltando-se com as dores da mata! Bendita sejas tu, avezinha! Tua bondade faz-te digna do mundo. Volta para os pinhais, a partir de hoje tu serás a minha ajudante. Transformarei a tua plumagem em azul, da cor do céu. Quando voltares para os pinhais do Paraná, vais plantá-los, para que se renove e jamais se extinga.
-Sou apenas uma ave negra, a chorar a dor dos pinheiros mortos.
-Já não serás uma ave negra, já te disse, terás a cor do céu. Quando comeres o pinhão, tirar-lhe-á a cabeça, para com as tuas bicadas, abrir-lhe a casca. Nunca te esqueças de antes de terminar a tua alimentação, enterrares alguns pinhões com a ponta para cima, já sem cabeça, para que não apodreça antes que surja um novo pinheiro dali nascido. Do pinheiro, árvore da fraternidade, nascerá a pinha, da pinha nascerá o pinhão… do teu bico cairá a semente que fertilizará o solo.
Ao ouvir a voz, a gralha viu-se no topo do céu. Olhou para o seu pequeno corpo de ave e apercebeu-se que as penas negras tinham ficado azuis. Até onde os seus olhos pudessem avistar, tornara-se uma ave azul, ao redor da cabeça, onde não podia enxergar, continuou com a plumagem preta.
Ao ver a beleza das suas penas, a avezinha retornou para os pinhais. Encontrou os galhos de todos os pinheiros abertos, a convidar-lhe para pousar em seus galhos, assim ficariam perenemente. Tão alegre estava a gralha com a sua nova plumagem, que o seu canto passou a ser como um alarido a lembrar crianças a brincar. Assim a gralha, ao voltar, iniciou o seu trabalho de ajudante celeste, ajudando aos pinheiros a renascer dos seus pinhões.
Ainda hoje, quem passa pelas florestas do Paraná, consegue ver bandos de gralhas azuis matracando nos galhos dos frondosos pinheiros, comendo os pinhões que alegram as festas do povo do lugar.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas


LENDAS LUSITANAS

fevereiro 23, 2009

Portugal é o país mais ocidental da Europa, sendo também um dos mais antigos em suas fronteiras. A conquista do território foi feita aos muçulmanos (chamados de mouros), que dominaram a península Ibérica por quase mil anos. Antes da formação da nação portuguesa, vários povos habitaram o lugar, entre eles os lusitanos, pescadores e camponeses primitivos, que enfrentaram bravamente o domínio e a opressão dos romanos.
Sendo um país tão antigo, foram muitas as lendas que se criaram para contar tão extensa história. Lendas medievais, lendas ainda mais antigas; chegaram aos nossos dias as mais belas narrativas que contam a saga de um povo e da sua nação, formadora de uma cultura lingüística que se estendeu pelos quatro cantos do mundo. Da antiga Lusitânia ao Portugal de hoje, chaga-nos um acervo de personagens maravilhosas, algumas trazidas das páginas de Homero, outras do imaginário medieval, das páginas cantadas pelos trovadores.
Olisipo, a Cidade de Ulisses” é uma das lendas mais cultivadas pelo povo português. É a história da fundação de Lisboa, que segundo a tradição lendária, teria sido feita pelo herói homérico Odisseu (Ulisses), que na sua trajetória errante após o fim da guerra de Tróia, perder-se-ia por vinte anos pelos mares europeus. O herói grego teria atravessado as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), alcançando a desembocadura do rio Tejo, deparando-se com o reino de estranhas criaturas metade mulheres, metade serpentes. Olisipo, a cidade mítica de Ulisses, seria mais tarde Lisboa, a bela capital portuguesa.
A Dama Pé de Cabra” resgata o período de conquista das terras lusitanas aos muçulmanos, chamados de mouros. A luta por esta conquista foi sangrenta, o que fazia o povo cristão a sentir que efetuava uma guerra santa, cada mouro morto por sua espada, significa recompensa na terra e nos céus medievais. Esta lenda traz a figura do diabo, tão temida e tão comum no cotidiano do homem medieval. Entre as guerras e os medos dos demônios, surgia uma nação jovem, cristã e destinada à expansão através do mundo.
O Galo de Barcelos” retrata um dos símbolos mais populares de Portugal. Várias são as versões da lenda, mas todas elas remetem para um único final: a ressurreição de um galo assado, que com o seu canto vivo efetuaria a justiça e repararia a injúria diante dos injustiçados. É uma lenda sucinta, mas com forte teor de se ver através dela o cumprimento de todas as leis, fundindo-se entre as leis sacras e as leis dos homens, tornado-se um uno inquestionável.
Três lendas de beleza universal, que nos remete para diversos momentos de uma história imaginária e repleta de aventuras seculares, que fariam dos lusitanos grandes navegadores e descobridores de mundos diversos, infinitos aos olhos humanos.

Olisipo, a Cidade de Ulisses

Há muito tempo atrás, em um ponto remoto do calendário, existia um promontório que recebia o desembocar do Tejo. Era um reino inóspito, muito além das Colunas de Hércules, conhecido pelo nome de Ufiusa, a terra das serpentes. Este reino formado por serpentes, tinha como rainha um estranho ser, metade mulher, metade serpente, que trazia um rosto belíssimo, dona de um olhar feiticeiro e de uma voz quase de criança.
Senhora absoluta do seu reino, a rainha mulher-serpente costumava visitar o alto de um monte e gritar ao vento as palavras que ecoavam por todo o Tejo:
-Este é o meu reino! Só eu governo aqui, mais ninguém! Nenhum homem atrever-se-á pôr aqui os pés. Ai do que ousar! As minhas serpentes não o deixarão respirar um só minuto!
Assim correram os anos. Até que um dia surgiu errante, com os ventos, o grego Ulisses (Odisseu). O rei da Ítaca, herói da Tróia destruída, tão logo terminara a guerra, por um capricho dos deuses, navegava perdido pelo Mediterrâneo sem fim. Um dia os barcos de Ulisses foram soprados para muito além das Colunas de Hércules, vindo a entrar pela desembocadura de um imenso rio ao qual chamavam de Tejo, aportando no reino de Ufiusa. Tão logo chegou àquelas terras, o grego deslumbrou-se com a sua beleza, com a suavidade das suas brisas, o sabor das suas frutas e o gosto doce das águas do Tejo. Ofuscado por tanta beleza, Ulisses reuniu os seus homens, declarando potente a todos eles:
-Aqui, onde a natureza mostra-se tão pródiga, edificarei a mais bela cidade do mundo! Dar-lhe-ei o meu nome… será Ulisseia, capital das belezas do mundo!
Assim foram edificados os primeiros alicerces da sua cidade. Mas a terra que tanta beleza trazia aos olhos do grego, mostrou-se traiçoeira diante das serpentes que deslizavam por elas. Muitos dos homens da tripulação tombaram envenenados por picadas das serpentes, outros desapareciam, vitimados por armadilhas traiçoeiras. Cada vez mais o inimigo oculto ladeava Ulisses. Diante de estranhos inimigos, o valente rei da Ítaca clamou:
-Por todos os deuses do Olimpo, eu vos desafio, inimigo invisível e traiçoeiro. Aparecei das sombras, mostrai a vossa face e desafiai-me corpo a corpo!
Mas o inimigo continuou oculto, Ulisses só continuava a ouvir os silvos das serpentes, que vinham como uma sinfonia noturna. Assim o perigo rondava Ulisses e os seus homens, que cada vez mais tombavam envenenados. Irritado, Ulisses bradou com todas as suas forças:
-Traiçoeiro inimigo, podeis tentar tudo o que quiserdes, mesmo assim não abandonarei esta terra sem aqui deixar a mais famosa cidade edificada que se tenha notícia!
Foi então que a rainha das serpentes, profundamente atraída pelo valente guerreiro, revelou-se a ele. Surgiu do disfarce de uma rocha, com a sua voz de criança e formosura na sua face de mulher, escorregadia na sua metade serpente.
-Bem vindo ao reino das serpentes, conhecido por Ufiusa! Sois valente e ousai a enfrentar aos súditos deste reino, do qual sou a rainha soberana e absoluta!
Ao ver a revelação da rainha, Ulisses apercebeu-se da face do misterioso inimigo, finalmente revelada. Uma vez revelado-lhe o inimigo, o grego já não o temia. Viu na voz doce da mulher o sibilar das serpentes, refletida no olhar amargo.
Já apaixonada por Ulisses e por sua valentia, a rainha percebeu que a sua rendição não iria acontecer. Não mais esperava por ela, pelo contrário, decidira que queria o guerreiro para sempre em seus reinos.
-Durante dias esperei por vossa rendição. A vossa coragem foi superior, o que atraiu a minha admiração! Sei do vosso sonho de aqui edificardes uma cidade! Pois bem, eu vos permito a realização desse sonho, com uma condição: a de cá ficardes para sempre!
Enigmático, Ulisses sorriu-lhe, sem jamais lhe dar uma resposta com palavras, meneando a cabeça, como se concordasse. Com o consentimento da rainha das serpentes, Ulisses passou a edificar a sua cidade, erguendo-se jardins, casas e ruas. As serpentes já não atacavam os homens, que cada vez mais ali aportavam. Enquanto os homens trabalhavam, as mulheres serpentes cantavam para que a labuta lhes fosse mais suave.
Erguida a cidade de Ulisses, que passou a ser conhecidas como Olisipo, uma brisa suave inundou tão soberba obra. Mas o coração de Ulisses pertencia a Ítaca e a Penélope, a sua mulher, que há muitos anos esperava por sua volta. Assim, mesmo deslumbrado com a sua obra, o grego só pensava em partir, navegando até que aportasse na sua terra natal. Mas a paixão da rainha serpente impedia que Ulisses partisse, tornando-o prisioneiro da sua própria cidade.
Sabendo-se prisioneiro da rainha, Ulisses encheu-se dos mais falsos carinhos e de amor ardente e traiçoeiro, enquanto desenhava o seu plano de fuga. Por fim chegara a noite da tão esperada fuga. Combinara buscar a rainha para um passeio ao luar. Em vez de comparecer ao encontro, Ulisses enviou um dos seus homens, que tinha a mesma estatura do que ele e ao longe, poderia ser confundido com ele. Assim, enquanto Ulisses fugia navegando pelas águas do Tejo em direção ao Oceano, o seu fiel companheiro, muito bem disfarçado, foi buscar a rainha, levando-a para longe do rio.
Durante o passeio, só a rainha falava, mostrava para o companheiro o futuro da sua Ulisseia, ou Olisipo. De repente a mulher inquietou-se com o silêncio do amado. Ao olhar para aquele que estava ao seu lado, percebeu que os olhos eram outros. Ao perceber o engano, a rainha soltou um grito de indignação. Ao ver-se traída, furiosa, ela mordeu o impostor, envenenando-o com a sua peçonha. Antes de morrer, o infeliz murmurou que o seu amo já deveria ir longe, a navegar pelo grande Mar Oceano, rumo às terras gregas.
Desesperada, a rainha tentou ir além de todas as suas forças, estendendo-se sobre a cidade de Ulisses, na ânsia asfixiante de alcançar o mar. Foi tamanho o seu esforço de alcançar o amado, que onde ela estendeu o corpo de serpente, das suas contorções desenhou-se sete colinas sobre Olisipo. Mas Ulisses já estava longe, e a infeliz rainha não resistiu, morreu após tamanho esforço.
Sem a sua rainha, as serpentes fugiram da cidade. No antigo reino de veneno e morte, ficou edificada altaneira, a cidade de Ulisses, erguida sobre as suas sete colinas. Ulisses jamais retornou, mas Olisipo tornou-se a principal cidade às margens do Tejo. Muitos anos mais tarde a cidade de Ulisses passou a ser conhecida como Lisboa.

A Dama Pé de Cabra

Esta história é do tempo que os cristãos lutavam com os mouros pelo domínio do oeste da Ibéria e pela formação do reino cristão de Portugal. Dom Diogo era um bravo cristão que tinha como missão a expulsão dos mouros daqueles reinos. Destemido e arrojado, o fidalgo gostava de montar o seu cavalo branco e sair pelos bosques e montes a caçar veados, javalis, lobos e ursos. Fizesse sol ou chuva, fosse inverno ou verão, lá estava o inquieto fidalgo longe do seu castelo, em caças perigosas a animais silvestres ou aos mouros infiéis.
Foi a perseguir um javali em um monte agreste e coberto de silvas espinhentas, que o valente fidalgo um dia deparou-se com o mais belo canto que já ouvira. O canto ecoava pelo ar, fazendo que o javali ficasse manso e esperasse pela sua lança, como se encontrasse a redenção. Embriagado por tão bela e aguda voz, dom Diogo correu com os olhos em direção a um pedregulho que se lhe aparecia à frente, ao cimo encontrava-se, sentada, a mais formosa das mulheres. O coração do fidalgo disparou. Aproximou-se da mulher e perguntou:
-Quem sois vós, encantadora senhora? Quem sois vós que me cativou com o vosso belo canto?
Ela riu, do riso saltava-lhe a mais bela feição, rimando com o olhar vindo de duas contas cristalinas, seus cabelos dourados dobravam-se ao vento, sua face gentil reluzia o dia de sol, suas mãos brancas traziam uma pele macia como a neve.
-Sou uma dama tão nobre quanto sois vós.
Ao ouvir-lhe as palavras, dom Diogo não se conteve, aproximou-se com o coração a arfar-lhe cada mais, descompassado de amor.
-Formosa senhora, se casardes comigo, ofereço-vos as minhas terras e os meus castelos, além do meu coração que já vos pertence!
-Guarda as tuas terras que precisas para cavalgar a tua inquietude da alma.
-Que posso oferecer-te então para que sejas minha?
Numa malícia que se traduzia em constrangimento, a mulher baixou a cabeça, a demonstrar um fulgurante pudor. A olhar com um encanto de serpente para o homem, pronunciou as palavras com a mais doce das vozes:
-A única coisa que me interessa, não ma podes dar, porque foi um legado da tua mãe.
-E seu te amar mais do que à minha própria mãe?
-Então tens de jurar que não tornas a fazer o sinal da cruz que ela te ensinou quando eras pequeno.
Por alguns instantes, dom Diogo hesitou ante tão estranho pedido, que lhe pareceu coisa do diabo. Olhou-a com estranheza, mas ao deparar-se com tamanha beleza, com aquele sorriso tão puro, afastou as dúvidas e os pensamentos obscuros. Já se apaixonara irreversivelmente por ela. Questionou-se para que serviam as benzeduras? Chegou à conclusão que se deixasse de benzer, continuaria a ser o mais puro dos cristãos. Para compensar esta omissão, decidiu que mataria duzentos mouros e todos os pecados ser-lhe-iam perdoados.
-Que assim seja, minha amada!
Movido pela paixão, arrebatou-a nos braços, esporeou o cavalo e partiu a galope para o castelo. À noite, quando se deitaram, embriagados de amor, dom Diogo apercebeu-se que a dama tinha pés de cabra. Mas o seu coração apaixonado não deu importância àquele defeito, pois o corpo da amada era esbelto, esguio, os cabelos eram lisos e perfumados, a pele fina como a seda.
Durante alguns anos o casal viveu em paz, felizes e apaixonados. Da união nasceu um menino que chamaram Inigo, e uma menina que deram o nome de Sol. Assim correram os anos, Diogo continuou inquieto em suas caças, mas com a certeza que ao final delas, encontraria a paz que precisa nos braços da amada e no aconchego da família.
Numa noite, durante a ceia, Diogo reparou que o seu melhor cão de caça dormitava junto à lareira, enquanto que uma feroz cadela, pertencente à mulher, andava inquieta de um lado para o outro, com um rosnar estranho. Por algum motivo dom Diogo não gostava da cadela. Para afrontá-la, pegou um grande pedaço de osso, atirou-o para junto do focinho do cão que se encontrava próximo à lareira, e disse:
-Toma lá tu, Silvano, valente caçador, precisas te alimentar. À cachorra não dou nada, porque não pára quieta!
Satisfeito e agradecido, Silvano abocanhou tão generoso osso, mas não teve tempo de comê-lo, pois a fúria da cadela fez com que se atirasse ao cão, abocanhando-lhe mortalmente a garganta. Ao ver o seu cão preferido morto no chão, dom Diogo levantou-se furioso, entornando o vinho sobre as tábuas. Com a ponta da bota, virou o corpo do cão e viu a sua garganta dilacerada.
-Maldita cadela! Por minha fé cristã, jamais vi coisa assim! Por cá andam artes de Belzebu…
Ao dizer tais palavras, dom Diogo esqueceu-se do juramento que fizera à mulher alguns anos antes, benzendo-se repetidas vezes. Foi quanto bastou para que a mulher emitisse urros pavorosos. Aos olhos apavorados de dom Diogo, a mulher parecia desmanchar-se em outra, a pele branca e sedosa tornou-se áspera e negra, os olhos reviraram, a boca ficou torta. A mulher tornara-se um animal horrendo, que se erguia no ar, leve como uma pena. Debaixo do braço esquerdo levava a filha, dona Sol, o braço direito alongava-se para o filho.
-Santo Deus! Jesus Cristo! – Bradava o fidalgo. – A minha mulher é o diabo!
Antes que o braço direito da mulher alcançasse Inigo, o fidalgo agarrou o filho e fez vários sinais da cruz. A mulher soltou um último e horripilante grunhido, desaparecendo de vez por uma fresta próxima ao teto, levando consigo a menina. Desde àquela noite, ninguém no castelo tornou a pôr os olhos em cima da mãe, da filha e da cadela. Desapareceram entre as artes mágicas.
Mesmo a saber que a mulher talvez fosse o diabo, dom Diogo Lopes sofreu a dor da sua perda, vivendo muito tempo cabisbaixo, triste e aborrecido com a vida. Para esquecer a dor que sentia no coração, decidiu partir para a guerra. Entregou ao filho Inigo o governo dos castelos. Os servos desenferrujaram-lhe as armas, preparando-lhe o cavalo. Partiu assim, para lutar contra os mouros e ajudar na formação do reino cristão de Portugal.

O Galo de Barcelos

Há muitos anos, em tempos remotos, aconteceu em Portugal um crime de morte, que, por mais minuciosas investigações feitas, jamais se descobriu o assassino.
Tempos depois, quando tudo parecia já estar esquecido, surgiu na povoação de Barcelos um galego peregrino, que se dirigia para Santiago da Compostela. Diante da figura do romeiro, alguém levantou perante as autoridades uma questão, aquele homem era o autor do crime há tempos ali acontecido. Diante da acusação, houve quem garantisse que o romeiro estivera no local do crime no dia do assassínio. De frente com as evidências, as autoridades deram o caso como solucionado, aprisionado o romeiro.
Mesmo diante de grande tortura e suplício, o galego afirmou-se sempre inocente. Mas todas as evidências e coincidências apontavam o homem como o verdadeiro assassino. Sem provas que lhe garantissem a inocência, foi julgado e condenado à morte, através da forca.
Finalmente chegara o dia do suplício do pobre homem, que jamais deixou de jurar estar alheio e inocente ao crime. Tudo em vão! No meio do povoado erguera-se a forca. Como último desejo, o infeliz pediu que fosse levado à presença do juiz. O malogrado romeiro foi encontrar o juiz em uma grande ceia, ladeado de vários amigos e admiradores. Diante do juiz e de todos os presentes, o galego voltou a afirmar a sua inocência, pedindo pela fé cristã que dele tivessem misericórdia e que o não enforcassem. Mas o magistrado, homem que aprendera as leis em Salamanca, apesar de ficar confuso diante da veemência com que o infeliz proclamava-se inocente, nada pôde fazer, pois já acontecera o julgamento e a condenação à morte, portanto era preciso que se cumprisse a sentença.
Vendo que todos faziam escárnio das suas palavras, e continuavam a comer e a beber; o pobre galego, a olhar para um frango assado em cima da mesa do magistrado e dos seus amigos; clamou para São Tiago, o santo que iria visitar quando fora interrompido em sua romaria:
-Oh São Tiago, sabeis que estou tão inocente que, antes de morrer, esse galo que está em cima da mesa, morto e assado, cantará!
Todos riram das palavras de clamor do galego. O magistrado ordenou que o condenado fosse levado à forca e que se cumprisse à sentença. Assim foi feito. Passado o mal estar, todos continuaram a comer e a beber normalmente. Por uma estranha superstição, ninguém ousou a tocar no galo assado que indicara o sentenciado. Todos estavam ansiosos para que se desfechasse o suplício do galego, cumprindo-se finalmente, a justiça.
De repente, diante do espanto geral de todos os presentes, o galo assado passou a ter penas, transformando-se em uma bela ave, tão viva quanto eles, que passou a cantar alegremente!
O espanto foi geral. O juiz e os seus convidados correram ao local que se erguera a forca. Encontraram o galego suspenso no ar, com a corda no pescoço solta. Com grande espanto, descobriram que ele ainda estava vivo! Imediatamente libertaram o supliciado, deixando que ele seguisse viagem até Santiago da Compostela, para que cumprisse a sua promessa de romeiro.
Meses depois, o galego regressou da sua romaria, já com a promessa cumprida. Em sinal de agradecimento aos que atestaram a sua inocência, mandou que se erguesse um padrão, tendo de um dos lados São Paulo e a virgem, o sol, a lua e um dragão. Do outro lado o Cristo crucificado, um galo e São Tiago sustentando um enforcado! A justiça fora feita através do canto do galo ressuscitado, que se tornaria o símbolo de Barcelos.


LENDAS INDÍGENAS 2

janeiro 17, 2009

A necessidade do homem em explicar os mistérios da vida e da natureza que o cerca, gera, através dos séculos, as mais belas lendas. Quanto mais rica a cultura de um povo, maior o número de lendas inspiradoras que justificam os seus costumes e tradições milenares.
O folclore dos índios brasileiros perdeu, com a civilização cristã impostas a eles, muitos dos seus rituais e muitas das suas crenças, as suas lendas estão cada vez mais difundidas e mescladas com as lendas catequizadoras trazidas pelos homens brancos.
Aqui mais três lendas indígenas, duas delas (“Como Nasceram as Estrelas” e “A Criação do Homem”) vindas das terras do Mato Grosso, e uma terceira originada das tribos da região do mítico rio Amazonas (“A Vitória Régia”).
Como Nasceram as Estrelas é uma lenda extraída da tribo de índios do Mato Grosso conhecidos como Bororos. Forma poética e simples que a tribo encontrou para descrever o surgimento das estrelas no céu, tidas como vigilantes da dor e símbolos do castigo perene às crianças que desobedecem aos pais.
A Vitória Régia traz a lenda de uma das plantas mais exóticas do mundo. De uma beleza rara, esta planta tem as raízes submersas no rio, e quando adulta, surge no seu centro uma das mais belas flores da natureza. Nativa da região do Amazonas, a vitória-régia desperta com a sua beleza ímpar, o mais curioso dos homens. Tão singular planta, assim como as flores da mitologia grega, nasceu, como conta a lenda, da transformação de uma bela mulher, da metamorfose dos seus sonhos, que se deslumbram em cores e fantasias.
A Criação do Homem está ligada com o mito do herói Maivotsinim, figura criadora aclamada por várias tribos do Alto Xingu. Se na lenda dos índios Carajás, habitantes do norte de Goiás e do Tocantins, o índio já surge criado, habitando a escuridão do ventre da terra, de onde emerge e através da figura do urubu-rei vê a criação do mundo, aqui o mundo está criado, mas faltam os homens. Só Maivotsinim existe, e cabe a ele criar a humanidade. Esculpido numa madeira chamada cuarupe, o homem surge no seu esplendor, aos raios do sol. A lenda deu origem ao ritual do Alto Xingu, o Cuarupe, praticado até os dias de hoje.

Como Nasceram as Estrelas

A vida na tribo dos índios Bororo seguia os passos e os ensinamentos dos seus antepassados. No céu da aldeia a noite era escura, iluminada apenas pela imensa lua, que crescia ou diminuía de tamanho, conforme o ciclo dos dias. Quando a lua se escondia, um terrível breu fazia-se sobre as malocas.
Durante o dia os homens bororos iam caçar, enquanto que as mulheres cultivavam e coziam o milho e as crianças brincavam. Num dia normal na tribo, em que os homens embrenharam-se na mata para cassar, as mulheres foram colher o milho para preparar o alimento d e todos. Quando chegaram na roça de milho, com tristeza encontraram pouquíssimas espigas. Não percebiam o que tinha acontecido. Colheram desoladas, umas míseras espigas.
Horas antes das mulheres chegarem à roça de milho, as crianças, fugidas das mães, tinham colhido as espigas. Vestidas da malícia infantil de quem cometia uma desobediência, ali mesmo, na roça, elas socaram o milho, levando os grãos para a aldeia. Na maloca encontraram a mulher mais velha da tribo. Um dos meninos pediu à velha índia que preparasse um bolo para ele e para os amigos. A boa mulher, sem saber que as crianças colheram o milho sem a ordem das mães, com muito sacrifício fez o bolo que eles pediram. Já sem forças pela idade, a velhinha sentiu-se deveras cansada depois de todo o trabalho que tivera para fazer o bolo, retirando-se para a oca, repousando o corpo cansado sobre uma rede.
Os meninos deliciaram-se com o bolo. De repente o papagaio da aldeia, que tudo vira, ameaçou contar a verdade para as mães dos meninos, quando elas retornassem. Maldosamente os curumins cortaram a língua do papagaio, para que silenciasse o que eles fizeram.
Os pequenos bororos sentiam-se refestelados depois de comerem tanto bolo de milho. Mas ainda não estavam satisfeitos em desafiar o mundo. Olharam para as nuvens e a imensidão do céu, decidindo que para lá iriam subir. Embrenharam-se na mata e capturaram um beija-flor. Amarraram no bico da pequena ave a ponta de um cipó, ordenando-lhe que voasse para o mais alto infinito, e lá no céu, prendesse a ponta do cipó. O pequeno pássaro obedeceu às crianças, voando cada vez mais alto. Enquanto o beija-flor rumava para o céu, os pequenos bororos emendaram várias cordas ao cipó, agarrando-se a elas. Assim, levados pelo beija-flor, foram subindo, subindo… até o infinito do céu.
Quando as mulheres voltaram da roça, trazendo os grãos de milho que socaram das poucas espigas que encontraram, estranharam o silêncio dos filhos. Perguntaram por eles à velhinha, mas não tiveram resposta, posto que a pobre mulher dormia pesado de tão cansada que estava. Perguntaram ao papagaio guardião da aldeia, mas com a língua cortada, a pobre ave silenciou o que vira.
Desesperadas, as mulheres puseram-se à caça dos filhos. Foram encontrar no meio da mata, um cipó suspenso na direção do céu. Não se lhe via a ponta. Concluíram que as crianças subiram para o céu. Aos prantos, começaram a gritar para que as crianças voltassem. Lá do alto, mesmo a ver o choro das mães, os meninos bororos decidiram não voltar, seguindo sempre o beija-flor, que se distanciava da terra cada vez mais. Partiram rindo-se do choro das mães.
Já no alto do céu, quando tentaram voltar, os meninos não conseguiram, foram castigados pela desobediência e pela ingratidão às mães, condenados a viver lá em cima, e todas as noites, a olhar para a terra, para ver se suas mães ainda deles se lembravam e continuavam a prantear por eles. Para ver as mães, os olhos dos desobedientes meninos bororos transformaram-se em estrelas, iluminando todas as noites do mundo, mesmo quando a lua retirava-se do céu.

A Vitória Régia

O rio Amazonas abrigava às suas margens várias tribos de índios. Das águas do grande rio uma das tribos tirava o peixe para o seu sustento. Vários igarapés delimitavam as ilhas que se formavam ao redor do rio, e neles as moças da aldeia cantavam as mais belas canções, e sonhavam os mais belos sonhos. Dentre os sonhos das cunhãs, o de tocar a lua e as estrelas era o mais persistente.
Na aldeia as mães contavam para as filhas que quem tocasse a lua ou uma estrela, teria o brilho delas sobre o corpo, transformando-se em uma. Assim as jovens cunhãs sonhavam em tocar a lua. Suspiravam quando ela mostrava-se majestosa no céu, em sua fase plena.
De todas as cunhãs, Neca-Neca era a mais bela, a mais sensível e a mais sonhadora. Seus longos cabelos negros exalavam um perfume doce e embriagante. Os homens da aldeia sonhavam em conquistar o seu coração. Mas Neca-Neca só pensava em alcançar a lua e tocá-la, aprisioná-la entre os dedos e embriagar-se na sua luz redentora. A jovem índia sonhava em ser uma estrela, e poder iluminar todos os mistérios do mundo, tendo a lua como amiga.
Várias foram as tentativas de Neca-Neca de tocar a lua. Subiu na mais alta árvore da selva, mas a lua continuava distante. Ao lado de outras amigas, caminhou na direção do mais alto dos morros. Exausta, chegou ao topo da montanha e viu a lua ainda mais distante. Desolada, voltou para a aldeia acometida da mais profunda tristeza. Deitou-se na rede e embalou a amargura de não poder tocar a lua. Um dia ainda seria uma estrela, ou mesmo a própria lua. Adormeceu triste, mas sem deixar de perseguir o seu sonho pertinente.
Numa noite de lua cheia, Neca-Neca pôs-se às margens do grande Amazonas. Ao mirar as águas misteriosas do rio, viu que lá estava a lua, silenciosa, imóvel. A cunhã sorriu vitoriosa. O seu sonho estava próximo. Perseguira a lua nos lugares mais altos da mata, agora ela estava ali, mansa e à mão, a banhar-se nas águas do grande rio, pronta para satisfazer-lhe o sonho. Neca-Neca finalmente tocaria a lua. Sem pensar duas vezes, atirou-se às águas em busca da lua. Quanto mais tentava tocar o astro prateado, mais se afundava e encontrava apenas a escuridão do mundo. Mergulhada no seu sonho, Neca-Neca foi tragada pelo rio Amazonas.
Do alto do céu, a lua assistiu ao embuste que embriagara o sonho da jovem índia. Apiedada da tragédia de Neca-Neca, a lua prateada transformou-a em uma flor. Mas não em uma flor comum, e sim na maior e mais bela de todos as flores do mundo, a vitória-régia.
No meio do rio Amazona, Neca-Neca, transformada na vitória-régia, exala o mais delicado de todos os perfumes, inebriando os homens e os animais que assistem às suas pétalas estiradas à flor da água, pronta para receber os raios da lua. Nas noites de lua cheia, as cunhãs aparecem no meio da flor, dando-lhe um brilho eterno. Nessas noites, o brilho da lua forma um véu prateado a cobrir todas as flores do lago, que são mulheres transformadas em estrelas das águas, sob o feitiço e a piedade da lua, iluminando as noites tropicais.

A Criação do Homem

Maivotsinim corria livre pela mata. Caçava para comer, nadava, dormia, sonhava… Percorria todas as terras do Alto Xingu. Tinha a floresta e os animais como amigos e companheiros. Mas Maivotsinim começou a entristecer, a sentir-se solitário no mundo. Assim como todos os animais tinham uma companheira, também ele sonhava com o dia em que teria a sua.
Um dia Maivotsinim conversou com a onça, contando-lhe a amargura de estar só. A onça ouviu-lhe o lamento, prometendo-lhe contar o segredo de como poderia ter muitas mulheres. A grande onça soprou nos ouvidos do herói o segredo da criação dos homens.
Feliz com a revelação, Maivotsinim pôs em prática o que lhe dissera a onça. Foi até a mata, cortou umas tantas toras do pau vermelho de caniná. Socou os paus no pilão, passando-lhes pimenta, a seguir, quando anoiteceu, ergueu uma fogueira ao redor deles. Nada aconteceu, e ele chorou muito ao não ver o resultado da sua obra.
Mas Maivotsinim não desistiu. Talvez tivesse errado na madeira. Embrenhou-se novamente na mata, cortando toras de uma madeira que se chamava cuarupe. Mais uma vez socou as toras no pilão, passando-lhe pimenta e fincando-as no meio da aldeia. Tão logo anoiteceu, acendeu uma fogueira ao pé de cada tora. Mas a madeira não se transformou em gente. Maivotsinim mais uma vez chorou. Tamanho foi o seu pranto, que adormeceu profundamente.
No meio da aldeia, as toras do cuarupe continuavam fincadas no chão. Quando o sol despontou os primeiros raios, atingindo cada tronco de árvore fincado por Maivotsinim, estes se transformaram, um a um, em gente. Á luz do sol, os índios despertaram e viveram, pulsando-lhes para sempre o milagre da vida.
Tão belos eram os índios, que os peixes saíram das águas para reverenciá-los. Os animais da mata fizeram o mesmo. Maivotsinim viu com alegria o nascimento dos índios. Assistiu à luta dos peixes e das onças a homenagear a sua criação, a qual chamou de huca-hucá.
Ainda hoje, no Alto do Xingu, as tribos celebram o cuarupe (a madeira que deu vida aos homens), lutando a huca-hucá, reverenciando a obra de Maivotsinim e a criação do homem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas

Veja também:

 

Lendas Indígenas

https://jeocaz.wordpress.com/2008/08/13/lendas-indigenas/


LENDAS DE PERSONAGENS POPULARES DA HISTÓRIA

dezembro 14, 2008

Algumas personagens da história construíram à sua volta um misticismo desbravador e pioneiro, que geraram lendas e mitos que muitas vezes superaram os próprios fatos históricos.
Deixando a verdade histórica de cada personagem aqui citado, percorreremos a lenda, o imaginário popular, o fantástico e a veracidade criativa. Três lendas relacionadas com a nossa história, sejam elas às vezes trágicas, às vezes pungentes, mas sempre vistas com ludismo diante dos acontecimentos reais.
Os Pirilampos do Abaré-Bebê, lenda do litoral paulistano, propagada pelo homem caiçara, narra os milagres supostos do padre Leonardo Nunes, jesuíta português que esteve em trabalho missionário no Brasil quinhentista. Do padre muito que se disse, muito que se lhe atribuiu em forma de lenda, como a sua gagueira e a sua incomum agilidade e rapidez nos passos. Como cenário da lenda temos as ruínas do Convento, em Peruíbe, que hoje fazem parte do patrimônio histórico brasileiro.
Antonio Conselheiro Não Morreu, passamos aqui do Brasil quinhentista para o país da jovem República, que na sua inexperiência incipiente, massacrou o arraial de Canudos, em 1897. Canudos tornara-se terra de jagunços e pessoas desvalidas pela sociedade, que chefiados por Antonio Conselheiro, rebelaram-se contra a República e defenderam a monarquia extinta. Na sua confusão mística, Antonio Conselheiro pregava o messianismo do rei português, Dom Sebastião, morto no deserto da África em 1578, cujo corpo jamais foi encontrando, gerando a lenda de que ele não morreu, mas que voltaria a qualquer momento para restituir a glória portuguesa. O próprio Antonio Conselheiro virou uma lenda messiânica para os mais antigos da Canudos reconstruída, que juraram que o velho beato jamais havia morrido.
A Nuvem Branca do Jaraguá relata a saga dos bandeirantes paulistanos, desbravadores do Brasil que quebrou o Tratado de Tordesilhas, expandindo-se para dentro da selva impenetrável. A grande muralha formada pelo morro do Jaraguá era a última fronteira que cercava o Brasil desconhecido do Brasil litoral. Belíssima lenda da gloriosa história dos bandeirantes, amados ou odiados.

OS PIRILAMPOS DO ABARÉ-BEBÊ

O bom padre jesuíta Leonardo Nunes, lá por volta de 1549, deixou as terras lusitanas para vir catequizar os brasilíndios. Sua imensa fé converteu um vasto número daqueles habitantes pagãos. Tão bom e amado era o padre, que certos dons passaram a fazer parte da sua vida. Tornou-se o homem mais ligeiro do mundo. Os índios guaranis que habitavam entre Santos, São Vicente, São Paulo de Piratininga, Itanhaém e Peruíbe, desconfiavam que o padre voava, tamanha rapidez que se deslocava de um local para o outro, subindo e descendo as serras da região. Leonardo Nunes passou a ser chamado de Abaré-Bebê, que significava “padre voador”.
Em Peruíbe, Abaré-Bebê e outros jesuítas construíram no cimo do outeiro de São João Batista uma igreja que levou o mesmo nome. Na igreja eram batizados os índios convertidos. Também ali eram enterrados. As suas urnas eram cobertas por ostras, que com o tempo formaram belos sambaquis.
Um dia Abaré-Bebê foi chamado a Roma para dar conta ao Vaticano das missões no Brasil. Foi com grande tristeza que os índios se despediram do padre, que embarcou em um navio, em Santos. Tão logo partiu, uma grande tempestade abateu-se sobre a embarcação, afundando-a em alto mar. Muito empenho teve Abaré-Bebê em ajudar a salvar os náufragos, que acabou por ele mesmo perder a vida. Os que sobreviveram contam que após salvar várias pessoas, o padre rumou para o meio da tempestade com a finalidade de socorrer tantas outras, mas uma onda gigante elevou-se ao seu redor, uma nuvem de pirilampos cercou o corpo do padre, formando uma grande luz que brilhava intensamente no meio da escuridão da tempestade. Com o rosto iluminado pelos pirilampos, o bom padre desapareceu em alto mar, nunca mais sendo visto.
Em Peruíbe, o tempo passou. Um dia espalhou-se que na velha igreja no cimo do outeiro de São João Batista estava escondido um tesouro deixado pelos jesuítas. Uma debanda de caçadores de tesouros rumou para o sítio. Cavaram, derrubaram paredes, transformando a igreja nas Ruínas do Abaré-Bebê. Numa das procuras, um dos caçadores achou um velho baú. Na esperança de ter encontrado o cobiçado tesouro, abriu a arca e viu sair de dentro dela uma grande nuvem de vaga-lumes e pirilampos, que acenderam tanta luz, quase o cegando. Era o dia da data da morte de Abaré-Bebê. Entre a nuvem de pirilampos, as paredes da antiga igreja reergueram-se, no meio do altar surgiu o rosto sorridente do bom padre, que com o seu amor habitual pelos homens, rezou ali mesmo uma missa. Todos os caçadores de tesouro pararam para contemplar o milagre e ouvir a missa de Abaré-Bebê.
Ainda hoje, por volta da data da morte do padre jesuíta, em Peruíbe, quem olha para o outeiro de São João Batista, pode ver surgir milhares de pirilampos, trazendo uma resplandecente nuvem de luz, que ilumina as ruínas, fazendo o templo reerguer-se por inteiro, e no meio do altar, o padre Abaré-Bebê volta das profundezas do mar, a rezar uma missa quinhentista.

ANTONIO CONSELHEIRO NÃO MORREU

A rebelião de Canudos chegara ao fim. Os cinco mil soldados legalistas dão os últimos tiros contra a população do arraial. Entusiasmados, gritam a vitória, adentrado pela Canudos rebelde, tomando-a de vez. Já no centro do arraial, deparam-se com a igreja nova totalmente destruída, cravada de balas. Em pé só encontraram o cruzeiro de pau de aroeira, com os seus três metros de altura, rechaçado de balas, defronte dos escombros da igreja, pingando ainda o sangue quente dos mortos. Os soldados legalistas procuram pelos sobreviventes, para impor e comemorar ante eles a vitória. Após a busca, encontram os sobreviventes: dois homens magros e cansados, um velho avançado nos anos, quase moribundo e uma criança esquálida, com olhar de terror!
Deitado numa esteira, coberto por um lençol branco, com a sua batina azul, e o inseparável crucifixo sobre o peito, jazia Antonio Conselheiro, líder da rebelião, considerado santo e messiânico pelos rebeldes dizimados. Canudos tinha sido destruída finalmente. A criança foi levada pelos soldados. Ainda olhou uma última vez para trás, a despedir-se da desolação sanguinária do arraial. Viu de repente, em frente ao cruzeiro, o beato rebelde: Antonio Conselheiro, de braços abertos, acenava-lhe, mostrando que não morrera.
Muitos anos se passaram, uma nova Canudos foi construída, para lá foi removido o velho cruzeiro de madeira, posto em um lugar que não fosse atingido pelas cheias do rio Vaza-Barris. A criança sobrevivente da guerra cresceu, casou-se e teve filhos. Antes de morrer, ainda pôde ver o Conselheiro aparecer na lua cheia de setembro, a rezar defronte ao cruzeiro. Aos seus filhos foi dado o dom de poder ver a aparição milagrosa nas noites de luar pleno.
Mas o progresso bateu às portas da nova Canudos, que foi mais uma vez destruída, desta vez submersa pela construção do açude Cocorobó. Quando as águas do açude afundaram o lugar, os netos da criança sobrevivente ainda olharam para trás. Lá estava Antonio Conselheiro, de braços abertos, com o seu bastão nas mãos. Sempre a fazer uma oração, a clamar pelo cavalo de Dom Sebastião, que voltava com ele para proteger os oprimidos do sertão, aos poucos foi sucumbindo diante das águas do Cocorobó. Nunca mais se viu a figura de Antonio Conselheiro nas noites de lua cheia.
Na terceira Canudos, a seca era combatida pela fartura das águas do açude. Os seus habitantes jamais esqueceram o beato que se rebelara contra a opressão ao homem sertanejo e contra a própria instituição republicana. Mas um dia a seca voltou a Canudos. E das profundezas do açude, de repente a Canudos esquecida no tempo emergiu, vomitando todo o passado sangrento de outrora. E numa noite de lua cheia de um setembro seco, de repente uma velha senhora, neta da criança sobrevivente da guerra, ela própria a mulher mais velha do local, viu surgir das águas emergidas a igreja destruída. Na beleza da visão, viu o velho cruzeiro brilhar em cada buraco das balas que o perfurara. À sua frente, ajoelhado, a rezar, lá estava Antonio Conselheiro. Ao ver a mulher, o beato levantou-se, apoiando-se no seu bastão. A sua batina azul brilhava à luz do luar, seu rosto era iluminado pelas estrelas. De braços abertos, como se abençoasse a velha mulher, Antonio Conselheiro chamou por el rei Dom Sebastião, já pronto para montar no cavalo do rei menino, pronto para cavalgá-lo sobre as águas quase secas do açude. A velha mulher já poderia morrer aliviada, com a certeza que a morte brutal dos seus antepassados não fora em vão. Antonio Conselheiro, ao lado de Dom Sebastião, vagava pelos desertos secos do sertão do mundo. Se Canudos foi submersa pelo sangue dos seus mortos e pelas águas do Cocorobó, das suas entranhas emergia, seca, sem perdão, as suas ruínas, os clamores dos mortos, as vozes dos fantasmas que não se calaram, e, principalmente, emergia o beato… Antonio Conselheiro não morreu…

A NUVEM BRANCA DO JARAGUÁ

Quando os primeiros colonizadores chegaram à costa sul das terras brasileiras, despertou-lhes atenção especial uma imensa elevação chamada de “Senhor dos Vales”, que mais tarde ficou conhecido como morro do Jaraguá. Os primeiros habitantes da Serra do Mar, viam o Jaraguá de longe, recortando o horizonte azul, imponente e belo, um gigante no meio da selva hostil, ainda desconhecida. Várias eram as informações de que no vale havia grandes jazidas de ouro e pedras preciosas. Misterioso, o morro do Jaraguá era a última fronteira entre o litoral e o sertão desconhecido. O fascínio pela conquista além do morro era a obsessão dos bandeirantes.
Considerada região sagrada pelos índios, o vale era defendido por eles, que constantemente atacavam os moradores de Piratininga. Para penetrar o sertão desconhecido, além da muralha do morro do Jaraguá, foi convocada uma força comandada por Antonio Sardinha, o mais temido inimigo dos silvícolas. Assim, tomando o morro como bússola, começou a penetração do desconhecido sertão. A partir de Antonio Sardinha, várias bandeiras foram organizadas para pear índios, conquistar o sertão e chegar ao interior da colônia, repleto de lendas atemorizantes, que assustavam até mesmo os indígenas nativos da região e suas circunvizinhas.
Outros bandeirantes seguiram, outras bandeiras… outros desbravadores paulistas… Manuel Preto, Belchior Dias Carneiro, Antonio Raposo Tavares, Fernão Dias Pais, Bartolomeu Paes de Abreu… Todos eles partiram em busca do ouro, das pedras preciosas, dos índios, do domínio do interior da colônia. Seguiam a partir do Jaraguá. Podiam avistar o morro por três dias de caminhada, sabendo que por lá deixavam a família, a única certeza da volta era acalentada pelo sonho de enriquecer. Sonho muitas vezes terminado pelas febres da selva, pelo combate com os índios, pela fome do sertão agreste e inóspito.
Cada vez que partiam, os bandeirantes deixavam as mães, as mulheres, os filhos, todos presos à saudade e à ilusão de uma volta que, em muitos casos, jamais aconteceria. Para dar adeus aos maridos e aos filhos que partiam, as mulheres subiam ao pico do Jaraguá, empunhavam lenços e lençóis brancos, amarrados a um mastro, que ao vento, formavam as flâmulas brancas do adeus. Assim, paradas, solitárias, tristes, ficavam a acenar para os seus homens que se distanciavam para dentro da mata desconhecida. Por lá ficavam até a certeza, três dias depois da partida, de que os seus entes queridos já não poderiam vê-las. Era o adeus, o último olhar, a última lágrima, o último momento de proximidade simbólica àqueles que jamais retornariam.
Desesperadas pela espera, muitas lágrimas derramaram aquelas mulheres no pico do Jaraguá. Lágrimas eternas, de olhos que jamais voltariam a ver os seus destemidos e desbravadores homens. A saudade e a tristeza da espera sem fim, faziam com que tão sofridas mulheres definhassem para sempre.
Milhares de bandeiras partiram… Poucas voltaram. Milhares de mulheres subiram o pico do Jaraguá para a cerimônia do adeus. Suas lágrimas foram tantas, que correram pelo morro, evaporadas pelo sol. Das lágrimas, uma densa nuvem branca formou-se sobre o morro. Nuvem construída pela dor do adeus, da esperança e da saudade. Cada gota de lágrima representava um bandeirante que partira. Cada lágrima juntou-se à nuvem branca do adeus, que permaneceria para sempre no topo do pico do Jaraguá.
Mesmo hoje em dia, já distante o tempo das bandeiras, quando chega o mês de maio, época que no passado servia como marco da partida dos bandeirantes, esteja o tempo nublado ou o céu límpido, quem olhar para o morro do Jaraguá, verá em seu topo a nuvem branca formada das lágrimas da tristeza das mulheres dos gloriosos bandeirantes paulistas, desbravadores dos sertões brasileiros. A nuvem branca ainda persiste no céu do Jaraguá, como prova de uma época construída pela dor e pela coragem.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas

Veja também:

 

LENDAS INDÍGENAS: https://jeocaz.wordpress.com/2008/08/13/lendas-indigenas/

LENDAS SERTANEJAS: https://jeocaz.wordpress.com/2008/10/29/lendas-sertanejas/


LENDAS SERTANEJAS

outubro 29, 2008

Quando os portugueses colonizaram o Brasil, encontraram um imenso território para ser desbravado. Adentraram no interior, penetrando o sertão agreste e selvagem. Longe do litoral, a população sertaneja dependia da mata, do rio que corria pelas terras secas. Nos povoados que se formaram, várias lendas ibéricas foram adaptadas pelo sertanejo, tomando a forma e o conteúdo da realidade do imenso sertão brasileiro.
Um país rico em diversidades culturais, também é rico em lendas. As lendas sertanejas buscaram inspiração não só nas tradições orais dos colonizadores europeus, como assimilaram lendas trazidas da África pelos negros e as contadas pelos índios.
Aqui serão contadas três lendas sertanejas:
Caipora, uma espécie de duende tropical, protetor dos animais silvestres, que toma a forma de um menino negro e peludo, atravessa as matas nu, a montar em um porco selvagem, empunhando um ferrão. Também chamado de Caapora, ele assume várias formas em diferentes regiões do Brasil, como a de um homem ou a de uma velha.
Famaliá é uma lenda portuguesa, nas crônicas de São Cipriano ele surgia do ovo de uma galinha preta, e de umas palavras dirigidas a Lúcifer. No sertão mineiro e da Bahia, ele surge do ovo de um galo. Desde o século XVI que a lenda foi transportada para o Brasil. Com o passar dos anos, ele deixou de ser o Familiar das crônicas ibéricas, para ser o Famaliá do caboclo sertanejo.
O Sono do Rio vem das crenças dos barqueiros das regiões ribeirinhas do São Francisco. Se na Europa existe a lenda da Hora Azul, um momento de transição entre o dia e a noite, que dura um segundo, e que há um silêncio entre os seres do dia e os seres da noite, o sono do rio dá-se também, em um único segundo, à meia-noite. Durante o segundo, o mar, o rio e todas as águas adormecem, para um breve descanso. Não se pode acordar o ressonar das águas, para que não insultemos a natureza.
Três belas lendas que trazem um retrato de um Brasil cada vez mais distante no mundo virtual e conectado pela tecnologia. Um Brasil rico em narrativas e imaginação, formando um povo ímpar, de uma cultura plural e inesgotável.

Caipora

Pelas caatingas, pelas matas do sertão, a vida corre solta para os animais silvestres, que diante da maldade dos homens, conta com o espírito indomável do Caipora, sempre atento aos caçadores. O Caipora caça as galinhas nas capoeiras, assusta os cães e os cavalos domésticos, sempre protegendo os animais selvagens.
João sempre ouvira falar do Caipora, mas nunca acreditou que ele existisse. Tornara-se um exímio caçador de porco do mato. O destemido João decidiu, numa sexta-feira, caçar alguns porcos selvagens para salgar a carne e abastecer a sua dispensa. Tomou da sua espingarda e, à tardinha, quando o sol começava a cair no crepúsculo, pôs-se de tocaia atrás de uma pedra na beira do rio. Atento aos movimentos, João ouviu quando uma vara de queixadas aproximava-se. Quando as queixadas puseram-se a beber água, mais do que depressa João deu três tiros certeiros. Viu cair um a um os porcos do mato que caçara, enquanto os outros fugiam assustados. João estava satisfeito. Aqueles animais eram-lhe suficientes. Orgulhou-se de como estava com uma pontaria cada vez mais precisa, sem errar um tiro.
O João já se preparava para retalhar a carne das caças, deixando-lhes só as carcaças, quando se formou um grande remoinho de poeira à sua volta, que lhe cobriu os olhos de terra. No meio do remoinho, o caçador ouviu um barulho de animal a cavalgar. Ouviu gritos e palavras em uma língua estranha. João limpou os olhos, podendo ver que do centro do remoinho surgia um moleque peludo, totalmente nu, sentado em cima de um gigante porco do mato. O moleque trazia uma lança com um grande ferrão na ponta. João ficou quedo, sem poder mover as pernas, paralisadas pelo medo. Aquele estranho moleque só poderia ser o Caipora.
O caçador não ousou a olhar de frente tão temida criatura. O Caipora, ao ver os animais mortos, deu um grito ensurdecedor, lançando na mata toda a sua ira. Em seguida tocou com o ferrão uma das queixadas mortas, dizendo-lhe:
– Levante! Embrenhe-se na mata!
O animal levantou-se e saiu correndo. Repetiu o gesto com outro animal, sucedendo-lhe o mesmo. No terceiro e último porco do mato morto, o Caipora tocou com tanta força o seu ferrão, que este quebrou. A queixada saiu correndo. Irritado, o Caipora olhou para o caçador, dizendo-lhe:
– Por sua causa quebrei o ferrão da minha lança. Sorte a sua, pois o próximo que iria tocar com a lança era você, e ao contrário das queixadas, você nunca mais se iria levantar do chão, cairia morto na mata! Não queira estar aqui quando eu consertar o ferrão!
Dizendo isto, ele deu um imenso grito, fazendo com que disparasse o porco do mato que ele montava, seguido de outros tantos, por fim, desapareceu dentro da mata. João respirou aliviado. Pegou sua espingarda e partiu.
No dia seguinte, João foi visitar o ferreiro do lugar. Antes de começar a relatar a sua história ao amigo, ambos foram surpreendidos por um estranho caboclo, de olhar esgueiro, que despertava pouca confiança. O caboclo dirigiu-se ao ferreiro:
– Preciso que conserte este ferrão. – Ordenou. – Tenho muita pressa.
João olhou para o ferreiro, como se perguntasse quem era o caboclo. Ao olhar para o ferrão, reconheceu que era o mesmo que o Caipora empunhava na mata. O caboclo era o próprio Caipora, que desencantara. João fez um gesto para ajudar o ferreiro a acender a forja e consertar o ferrão. Então ouviu a voz áspera e irritada do estranho caboclo, que lhe disse:
-Não toque no ferrão! Não se esqueça que quando ele estiver consertado, irá disparar sobre aquele que não disparou antes. Quer esperar para ver o ferrão consertado? Então vá embora e nunca mais mate um porco do mato. E nunca conte para ninguém o que você viu!
João largou o ferrão quebrado. Não esperou segunda ordem, fugiu dali antes que o caboclo voltasse a ser o Caipora. Desde então, João nunca mais se embrenhou na mata sertaneja atrás das queixadas.

Famaliá

Com muita tristeza, o fazendeiro enterrou a sua mulher. Após beber a morta com os vizinhos, o infeliz homem voltou para a sua fazenda. Sentou-se em uma cadeira no meio da sala, de frente para o oratório. Ali, dentro do oratório, ele guardava a sua relíquia mais preciosa, dona do seu segredo.
A sala da casa parecia enorme. Dono da maior fazenda do sertão mineiro, o fazendeiro sentia-se sozinho, velho e infeliz. Os filhos migraram para as grandes cidades. Morrera-lhe a mulher. Com os olhos marejados, o fazendeiro repassou a sua vida, impregnada de memórias em cada canto daquela sala. Na distância do tempo, ele encontrou o rapaz pobre e humilde que um dia tinha sido. Na juventude fora um capataz dedicado da fazenda do Mané Lourenço. O patrão, avançado na idade, grato pela dedicação do capataz, no leito de morte revelou a ele o segredo da sua imensa fortuna: era por causa do Famaliá. Mané Lourenço contou ao jovem capataz como conseguir o seu Famaliá.
Tão logo o Mané Lourenço foi enterrado, o capataz foi até o seu galinheiro atrás de um ovo de galo. Procurou, procurou, e não achou a preciosidade. Mas o capataz não desistiu. Todos os dias, durante meses, ele ia ao galinheiro do finado Mané Lourenço atrás do ovo de galo. Já começava a pensar que o patrão zombara da sua fé e ambição. Um dia, lá encontrou um ovo pequenino, do tamanho do ovo de uma pomba. Sorriu vitorioso. Finalmente encontrara um ovo de galo. Pegou o tão precioso ovo e o levou para casa. Seguindo o que lhe ensinara o Mané Lourenço, esperou até a quaresma. Na noite alta da primeira sexta-feira da quaresma, levou o ovo até uma encruzilhada escura, esperou pela viração das horas, pôs o ovo debaixo do braço esquerdo, na axila, pronunciou as palavras secretas que lhe revelara o patrão morto. Assim, com o ovo debaixo do braço, voltou para casa. Estava consumado!
O jovem capataz foi acometido de uma imensa febre, que o fez prostrar-se na cama, ali permanecendo por quarenta dias. A febre parecia queimar o seu corpo. Ao final daqueles dias, sentiu quando o ovo começou a eclodir. De dentro dele surgiu um diabinho de um palmo de tamanho. O jovem pegou o diabinho e o meteu em uma garrafa preta, arrolhou-a com cuidado, guardando-a em segredo, em um velho oratório que recebera de herança da avó.
Com o seu Famaliá na palma da mão, o jovem pediu-lhe riquezas, poder e sedução sobre as pessoas. Não tardou a ser atendido, pois tudo que se lhe tocava, tornava-se próspero. O ex-capataz tornou-se um grande fazendeiro, ainda mais rico e mais importante do que fora o Mané Lourenço. Casou-se, teve filhos, dinheiro, poder, fama, mas nunca a felicidade.
Velho, viúvo e sozinho, o fazendeiro olhava para o oratório. Caminhou até ele, abriu-o. Lá estava o seu segredo. O Famaliá. Nunca ninguém mexera naquela garrafa a não ser ele. Era o seu grande segredo. Pegou a garrafa na palma da mão. Angustiado e triste, olhou para o Famaliá e perguntou-lhe:
– Você me deu tudo, falta a felicidade. Onde está?
– Dei o que você me pediu. Dinheiro, riqueza, poder, êxito. Tudo isto não traz felicidade?
– Não, não traz.
– E o que você queria? Para se ter um Famaliá você fez um pacto com o diabo, não com os santos. Você ganhou, mas o diabo foi o vencedor.
Amargurado, o fazendeiro pôs o Famaliá dentro do oratório. Por quê Mané Lourenço não o advertira sobre a felicidade? Saiu da sala, cabisbaixo, triste e infeliz. Já nenhum poder ou riqueza varria a solidão do seu coração. Guardou o oratório em um porão. Nunca mais o abriu.

O Sono do Rio

Numa noite estrelada, Serafim deslizava o seu barco pelas águas do rio São Francisco. Exibia orgulhosamente a sua nova carranca. Serafim afastara-se dos outros barqueiros. Através das águas do velho Chico adentrava o sertão. Guiava-se pelas estrelas, que lhe revelavam as horas. O silêncio da noite era cortado pelo barulho, ao longe, da cachoeira que estava próxima. Cada estrela iluminava o rosto do barqueiro, tornando-o luminoso.
Já quase próximo da meia-noite, Serafim foi, de repente, acometido por um cansaço extenuante, que trazia uma lassidão ao seu corpo, quase que em forma de encantamento. Vendo as forças a faltar-lhe, o barqueiro deitou-se na barca. Sentiu que uma força magnética conduzia-o pelo rio. Cada vez mais sentia o barulho da cachoeira aproximar-se. Imóvel, viu a barca parar. No céu a estrela guia indicava-lhe que era meia-noite. Quanto mais brilhava a estrela, mais claras ficavam as águas do rio São Francisco.
Serafim continuava imóvel, deitado sobre a barca. Então um silêncio absoluto reinou ao seu redor. A cachoeira cessou o barulho das suas águas. Diante da calmaria silenciosa, o barqueiro lembrou-se que aquele era o dia do Sono do Rio, e que nenhum movimento poderia interromper o momento único, pois ele se dava apenas uma vez no ano. Bem devagar, para não perturbar o Sono do Rio, Serafim tirou dos bolsos um pedaço de fumo cortado. Estendeu as mãos e o pôs sobre a popa. Continuou imóvel. Foi quando viu a imensa mão do Negro d’Água fazer uma grande sombra sobre a barca. Ao ver o fumo cortado sobre a popa, o estranho visitante desistiu de atacar Serafim, apossou-se do fumo e partiu.
O São Francisco continuava a dormir. Serafim permanecia em silêncio, olhando fixamente para o céu estrelado. De repente surgiu a Mãe d’Água, metade peixe, metade mulher. Sentou-se sobre a proa da barca, a pentear os belos e longos cabelos verdes, como se fizesse uma oração ao Sono do Rio.
Serafim sabia que o Sono do Rio durava apenas um segundo, mas tudo parecia eterno durante aquele segundo. As cobras perdiam a sua peçonha, os peixes ficavam imóveis no fundo do rio. De repente o belo canto da Mãe d’Água ecoou, como se velasse o Sono do Rio. Diante do seu canto, o São Francisco abriu o seu abismo hiante, devolvendo todos os homens que em suas águas morreram afogados. Serafim viu os mortos retomando a forma dos seus corpos, flutuando no ar, indo para o céu, guiados pelo clarão das estrelas.
Quando o último homem desapareceu no céu, também a Mãe d’Água sumiu. A cachoeira voltou a correr normalmente. Serafim apercebeu-se que a beleza que vira há pouco tinha findado. Sentiu-se o mais feliz dos sertanejos. As forças voltaram ao seu corpo. Pensou em levantar-se, mas continuou inerte, deitado sobre a barca por mais um minuto, para ter a certeza de que não iria atrapalhar o Sono do Rio.

Ilustrações: José Lanzellotti
Adaptação livre de Jeocaz Lee-Meddi para textos de Brasil, Histórias, Costumes e Lendas

Veja também:
LENDAS INDÍGENAS
https://jeocaz.wordpress.com/2008/08/13/lendas-indigenas/