O TRIBUNAL DE NUREMBERG

junho 30, 2009
Um dos períodos mais negros da história da humanidade foi o da Segunda Guerra Mundial, que ceifou milhões de vidas em todo o planeta. Marcada não só pela ambição política e ideológica e pelo desejo de expansão geográfica, foi também uma guerra em que se cometeram as maiores atrocidades contra o ser humano, quer por sua condição racial, religiosa ou política.
Após a derrota da Alemanha nazista, o mundo ficou estarrecido diante das revelações de grandes tragédias como o Holocausto e dos seus campos de concentração e extermínio. Para a moral deontológica dos países aliados não bastava a vitória, era preciso punir os crimes de guerra. A idéia desta punição já se cogitava em 1944, bem antes do fim da guerra, por Winston Churchill e seus aliados.
Sob o espectro das atrocidades praticadas contra a humanidade pelo regime nazista, ergueu-se, em 1945, o Tribunal de Nuremberg. Criado por um acordo assinado em Londres, em agosto de 1945, entre os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a União Soviética e a França, o tribunal internacional tinha como finalidade julgar os crimes cometidos durante a guerra pelos nazistas, considerados pelas forças vencedoras os inimigos da humanidade.
O Tribunal Militar Internacional, o MIT (em inglês IMT – International Military Tribunal), resultou em uma série de 13 julgamentos, entrando para a história com o nome de “Tribunal de Nuremberg”, por terem sido realizados na cidade de Nuremberg, na Alemanha, de 1945 a 1949. Entre o julgamento mais famoso, esteve o caso “Tribunal Militar Internacional vs. Hermann Goering”, conhecido como o grande “Julgamento de Nuremberg”. Nos julgamentos, os chefes da Alemanha de Hitler foram acusados formalmente de crimes contra o direito internacional, sendo alguns deles, responsabilizados por provocarem deliberadamente a Segunda Guerra Mundial e cometido atrocidades durante a conquista militar de territórios, oprimindo e matando a população inocente. Quase todos foram acusados além do assassínio, de escravização, pilhagem e extermínio de etnias religiosas, entre eles os judeus, principais vítimas do Holocausto.
O Tribunal de Nuremberg representou um marco no direito internacional contemporâneo, que discutiu juridicamente, pela primeira vez, entre outras polêmicas, até onde o homem poderia ir nas suas experiências científicas com vidas humanas. Responsabilidades foram imputadas aos antigos comandantes nazistas. Do ponto de vista jurídico, princípios e elementos fundamentais do direito penal foram negados, como o da legalidade, pois a incriminação de fatos pretéritos, quando foram praticados pelos nazistas, não eram considerados crimes, portanto a condenação por enforcamento imposta aos acusados, sem direito a qualquer recurso, é vista pelo Direito, como pena arbitrária.
Visto por muitos como um tribunal dos vencedores sobre os vencidos, o que lhe dá um caráter de improviso e arbitrariedade, o Tribunal de Nuremberg não deixou de ser uma conquista jurídica das nações e dos oprimidos, que diante de um regime ou liderança opressora, viu a punição dos seus algozes. Mais do que a revanche dos aliados sobre os inimigos de guerra, Nuremberg representou a justiça da deontologia, que executou a maioria dos seus condenados, justiçando moralmente, milhares de vidas desaparecidas nos campos de batalha, nas prisões nazistas, nos campos de concentração, nas câmaras de gás e nas valas dos esquecidos.
Entre os 24 ex-líderes da Alemanha nazista indiciados, 21 sentaram-se no banco dos réus. Constavam nomes que, em outros tempos, representavam o terror para muitos que viviam sob a sua opressão, entre eles Hermann Goering, Rudolf Hess, Joachim von Ribbentrop, Robert Ley, Wilhelm Keitel, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Rosemberg, Hans Frank, Hjalmar Schacht, Gustav Krupp, Karl Donitz, Erich Raeder, Baldur Von Schirach, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Martin Bormann, Franz Von Papen, Arthur Seyss-Inquart, Albert Speer, Constantin Von Neurath e Hans Fritzsche.

Escolhida Nuremberg, a Cidade dos Comícios Nazistas

Quando o mundo passa por guerra, o valor da vida humana fica diminuído diante da ideologia política que deflagrou o conflito. Não existe lado inocente, existe lado vencedor. Inocente é a população civil, que paga por fomentar e legitimar os seus líderes políticos. Se analisarmos sem maniqueísmos, às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, vamos ver que tanto os aliados como as forças do Eixo foram responsáveis por milhões de mortes. A fúria vingativa com que os soviéticos romperam as suas fronteiras, atravessaram todo o leste europeu e chegando a Berlim, a capital do Reich, constitui uma página sangrenta da guerra, assim como as bombas atômicas que os norte-americanos lançaram sobre o Japão. Se pesarmos responsabilidades, o Tribunal de Nuremberg teria muitos lideres, inclusive dos aliados, sentados no banco dos réus.
Se a culpa por milhares de vidas perdidas durante a guerra recai sobre os dois lados, ela assume a real imputação de culpa diante do regime político de Adolf Hitler, que foi quem a deflagrou pelo mundo, dando aos aliados, a responsabilidade da defesa ofensiva, e, em estado de legalidade, o direito de matar para que se defendesse do inimigo. Uma visão ambígua, mas decisiva para que se perceba o Tribunal de Nuremberg e os seus julgamentos.
Já no final da Segunda Guerra Mundial, quando os aliados invadiram a Normandia, iniciando a contagem final para o fim do conflito e a vitória absoluta sobre os exércitos nazistas, cogitava-se o destino dos líderes do Reich após a sua derrocada. A idéia de um tribunal que os julgasse era menor do que a vontade de executá-los sumariamente.
Findada a guerra, se os aliados fuzilassem todos os líderes nazistas, não encontrariam resistências morais diante das nações, sedentas de uma justiça revanchista, e de vingança diante dos seus mortos. Mas, por mais que a tenha quebrado durante o conflito, a ética de guerra faz-se necessária na hora de reconstruir a paz. Mais complexo do que executar o inimigo, era despertar-lhe a consciência para o que fizera, humilhando-o diante de um tribunal com todas as virtudes burocráticas da lei. Era preciso punir os inimigos vencidos, sendo que para isto, fosse criada a legitimidade dentro da ilegalidade. Era preciso criar um tribunal que servisse de exemplo para as gerações futuras e justiçasse o passado, ainda recente, e que funcionasse segundo as necessidades morais dos vencedores. Assim, um acordo foi assinado em Londres, em agosto de 1945, pelos representantes de quatro países, União Soviética, Estados Unidos, França e Grã-Bretanha, estabelecendo um tribunal internacional para julgar os líderes nazistas e os seus crimes de guerra.
Uma vez criado o tribunal, era preciso um local físico para que se desse os julgamentos. Era preciso um lugar que juntasse a ordem prática com a política. A escolha recaiu sobre a cidade de Nuremberg, dentro da própria Alemanha. Na praticidade, o Tribunal de Justiça de Nuremberg e o prédio adjacente da prisão, foram uma das raras construções intactas após o fim da guerra, constituindo o local ideal para as prisões e realização dos julgamentos.
Politicamente, Nuremberg, cidade preferida pelos nazistas, tinha sido, de 1933 a 1938, o grande palco dos comícios do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP em alemão), mais conhecido como Partido Nazista. A cidade promoveu os maiores desfiles das forças do Reich, sendo declarada por Hitler como sede oficial dos seus comícios. Foi o maior símbolo da megalomania do Terceiro Reich, sendo construídos edifícios monumentais para acomodar aos congressistas do partido.
Foi em Nuremberg que se deu o primeiro sinal da radicalização dos ideais nazistas, com a queima de livros em Hauptmarkt, praça principal da cidade, em 1933. Em 1935, foram ali editadas as “Leis de Nuremberg” (“Lei da Cidadania” e “Lei da Proteção da Honra e Sangue Alemão”), primeiras leis anti-semitas do regime nazista, que determinavam a pureza do sangue ariano. Na noite de 9 para 10 de novembro de 1938, 26 cidadãos foram mortos por serem judeus, no episódio que eclodiu por toda a Alemanha e ficou conhecido como “Noite de Cristal”. Os hebreus foram obrigados a vender mais de 150 empresas e cerca de 570 propriedades. A estação ferroviária da cidade, Märzfeld, foi o ponto de partida para a deportação de milhares de judeus para os campos de concentração.
Por todos os fatos relatados acima, Nuremberg tornou-se o local ideal para a realização dos julgamentos dos criminosos de guerra nazistas. Assim, juizes e promotores públicos dos quatro países aliados que criaram o tribunal em Londres, iniciaram, em Nuremberg, em 20 de novembro de 1945, o primeiro julgamento, tendo 21 acusados nazistas sentados no banco dos réus, que culminaria com a condenação e execução na forca da maioria deles, em 16 de outubro de 1946.

Goering Declara-se Não-Culpado

Estabelecida a cidade, Nuremberg tornou-se o centro dos holofotes do mundo, parando a imprensa de então, atenta àquele que seria o maior julgamento de guerra da era contemporânea. 24 nomes ressoantes do Terceiro Reich foram indiciados, tendo 21 deles, ido parar no banco dos réus: Hermann Goering, Rudolf Hess, Hans Frank, Ernst Kaltenbrunner, Joachim Von Ribbentrop, Wilhelm Keitel, Alfred Rosemberg, Franz Von Papen, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Alfred Jodl, Walther Funk, Hjalmar Schacht, Erich Raeder, Fritz Sauckel, Karl Donitz, Baldur Von Schirach, Martin Bormann, Arthur Seyss-Inquart, Albert Speer, Constantin Von Neurath e Hans Fritzsche.
Os acusados foram defendidos por advogados alemães, que sofreram todas as pressões populares e da imprensa, sendo discriminados por exercerem o direito universal de qualquer réu, por mais monstruoso que tenha sido o seu crime, o da defesa. Vale lembrar que os defensores dos réus eram, também eles, sobreviventes do desgaste e das humilhações impostas aos vencidos de guerra, afinal eram cidadãos alemães. Os principais defensores foram Otto Stahmer, advogado de Hermann Goering; Hans Von Marx, defensor de Julius Streicher; Gunther Von Rohscheidt, de Rudolf Hess; e, Fritz Sauter, de Joachim Von Ribbentrop.
Entre os réus, o que mais tinha as atenções voltadas era Hermann Goering, o segundo homem mais importante na hierarquia do Terceiro Reich. Sua participação nos preparativos para a “Solução Final” à questão dos judeus, está registrada em documento, em um memorando por ele assinado, ordenando a Reinhard Heydrich que lhe seja submetido os detalhes práticos da “solução”. Durante as pilhagens aos museus dos países ocupados, Goering acumulou uma vasta e rica coleção de quadros, a maior da Europa. Chefe de todas as forças de segurança da Alemanha, influenciou Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, concebendo a política de terror empregada durante o conflito, resultantes em bombardear e destruir cidades, obrigando os seus habitantes à submissão.
Nascido em 1893, Hermann Goering tinha 52 anos quando enfrentou o Tribunal de Nuremberg. Era conhecido no alto escalão do Terceiro Reich por seu jeito bonachão e por ser viciado em drogas. Com o fim da guerra, quando preso, foi submetido pelos médicos carcerários, a um tratamento intenso para que se livrasse do vício da morfina. O resultado do tratamento fez com que ele chegasse diante do tribunal trinta quilos mais magro.
Goering foi o terceiro réu a entrar no recinto de julgamento. Trazia o uniforme militar despojado das medalhas que costumava ostentar e a saltar-lhe do corpo emagrecido. Otto Stahmer alegou em sua defesa, que apenas cumprira ordens, e que o julgamento era ofensivo ao princípio da legalidade. Para refutar à desculpa que a maioria dos réus alegaram, o de cumprirem ordens superiores, o juiz Biddle bradou:
Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, que estão acima dos deveres nacionais que lhe possa impor um Estado particular”.
Após o longo discurso de Stahmer, ouvido com atenção pela corte e pelos réus, o Presidente do Tribunal refutou todas as alegações, lembrando que o artigo II da Corte que instituíra o Tribunal, no qual a competência do referido não poderia ser contestada nem pela acusação, nem pela defesa. Após este pronunciamento, o juiz Lawrence pediu aos acusados que se dirigissem, um de cada vez, ao microfone e que se declarassem culpados ou não-culpados.
Goering foi o primeiro convocado, tentou argumentar, mas foi interrompido pelo juiz Lawrence, que o pressionou a responder somente à questão que se lhe fora perguntada, ao que o ex-chefe nazista respondeu:
No sentido da acusação, declaro-me não culpado”.

As Opiniões dos Réus Sobre o Tribunal

O processo de acusação contra os réus foi iniciado por Robert Jackson, juiz da Suprema Corte estadunidense. Mediante apresentação de vários documentos, o promotor ressaltou que a civilização mundial esperava que os juízes daquele Tribunal colocassem todos os preceitos do direito internacional, com suas sanções e proibições, ao lado da paz, para que homens e mulheres de todas as nações, pudessem ter a liberdade de viver sem depender da permissão de ninguém. Ao cimo da tribuna, o promotor apontou para os acusados, sublinhando a ferocidade belicosa de cada um, responsável por atos nefandos de atrocidades perversas, que geraram o pânico, o terror, a miséria e a morte de milhares de pessoas. Após um longo discurso que tomou quase o dia todo, o promotor, a olhar para os réus, declarou:
Estes homens, quando eram poderosos, não se baseavam em nenhum processo jurídico, e o seu programa ignorava e desafiava todas as leis humanas. Direito internacional, direito natural, direito alemão, qualquer que fosse o direito, era, para eles, apenas um meio de propaganda sempre ignorado quando se opunha aos seus desígnios“.
Após lida e entregue as acusações aos prisioneiros, diversas foram as suas reações. Cada um enfrentava o seu passado, outrora delineado por uma glória bélica que ambicionara conquistar o mundo e, naquele momento, resumida à humilhação imposta por seus inimigos vencedores. Individualmente, eles interpretavam com visão própria e incrédula, às acusações do tribunal.
Julius Streicher, que se destacara nos comícios de Nuremberg por seus discursos anti-semitas, fundador e editor do jornal “Der Stürmer”, ferramenta que usou para difundir o seu ódio aos judeus entre os seus leitores, declarava, diante das acusações, que o julgamento de Nuremberg era um triunfo do sionismo internacional.
A declaração de Hermann Goering foi a mais emblemática: “O vencedor será sempre o juiz e o derrotado o acusado”. O sentido ético e moral do antigo poderoso da Alemanha nazista estava vinculado à ideologia pela qual lutara e matara durante todos aqueles anos, portanto negava qualquer vínculo do tribunal com a defesa da ética e da justiça, interpretando-o como uma revanche dos inimigos vencedores, como um desfecho natural de uma grande guerra.
Wilhelm Frick, ex-ministro do regime nazista, e a quem tinha sido legada a responsabilidade de proclamar as Leis de Nuremberg; afirmava que toda a acusação do tribunal era baseada em uma conspiração fictícia, em que os réus poderiam escolher os advogados selecionados pelos aliados.
Hans Frank declararia: “Considero o julgamento como um Tribunal determinado por Deus, destinado a examinar e a pôr fim à terrível era de sofrimento sob o domínio de Hitler”.
Alfred Jodl desqualificou o tribunal, lamentando que se pesasse em uma só balança as acusações justificadas e a propaganda política dos vencedores.
Wilhelm Keitel justificou as suas ações como resultado do cumprimento de ordens, declarando a seu favor: “Para um soldado, ordens são ordens”.
Por fim, Walther Funk aprofundava-se no questionamento da sua culpa, isentando-se irônica e filosoficamente: “Se sou considerado culpado por erro ou ignorância, então minha culpa é uma tragédia, não um crime”.
A promotoria norte-americana cumpriu o seu objetivo acusador, conseguindo a condenação dos réus. A atuação dos advogados alemães de defesa às vezes era mais constrangedora do que a dos próprios réus, sem poder anular a veemência fartamente documentada da promotoria, assumiram uma resistência simbólica, no cumprimento exaustivo do dever.

O Julgamento de Nuremberg – O Veredicto

Os veredictos foram anunciados no dia 1 de outubro de 1946. A partir das 15 horas daquele dia, quatro juízes adentraram a Corte, tendo como objetivo o pronunciamento das sentenças. Individualmente, cada réu foi chamado para que ouvisse a sua sentença.
Hermann Goering foi o primeiro a ser sentenciado, tendo o veredicto anunciado pelo presidente da corte, o juiz Lawrence. Com fones no ouvido, Goering não ouviu a sentença, obrigando Lawrence a repeti-la:
Hermann Goering, o Tribunal Militar Internacional, aqui reunido em Nuremberg, vos condena à pena de morte pelo enforcamento”.
Uma a uma, foram lidas as sentenças:
Condenados a morte, por enforcamento – Hermann Goering, Joachim Von Ribbentrop, Wilhelm Keitel, Ernst Kaltenbrunner, Alfred Rosemberg, Hans Frank, Wilhelm Frick, Julius Streicher, Fritz Sauckel, Alfred Jodl, Arthur Seyss-Inquart e Martin Bormann, sendo este último julgado in absentia, já que tinha fugido, sem jamais ser encontrado, sendo acreditado como morto.
Prisão perpétua – Rudolf Hess, Walther Funk e Erich Raeder.
Outras condenações – 20 anos, Albert Speer e Baldur Von Schirach. 15 anos, Constantin Von Neurath. 10 anos, Karl Donitz.
Absolvições – Hjalmar Schacht, Franz Von Papen e Hans Fritzsche.

As Execuções

As execuções dos onze sentenciados foram marcadas para o dia 16 de outubro de 1946. Jornalistas do mundo inteiro vieram para assisti-las, sendo permitido apenas aos escolhidos por sorteio. Vários eram os parentes das vítimas que queriam assistir à cerimônia, mas poucos foram os que tiveram permissão.
Na véspera das execuções, no dia 15, de madrugada, a imprensa que assistiria à cerimônia de execução dos prisioneiros nazistas, foi convocada por um membro do Tribunal, que comunicou ao mundo, Hermann Goering estava morto. Suicidara-se na sua cela, ingerindo uma cápsula de cianureto de potássio. Ninguém foi responsabilizado e jamais se ficou sabendo quem teria fornecido a cápsula ao ex-nazista e onde ele a teria trazido escondida. O corpo inerte de Goering foi fotografado e mostrado ao mundo inteiro.
No dia 16 de outubro, 45 pessoas foram testemunhas oculares das execuções dos criminosos nazistas. Após subir os treze degraus do patíbulo, o réu tinha as cordas postas em volta do pescoço, eram em seguida, colocados em cima de uma armadilha, que se abria. O condenado caía em um piso tapado por um pano, para que se lhe ocultasse o que iria suceder. Dois médicos americanos foram postos para que se examinasse e confirmasse a morte dos executados.
Do momento da execução, um dos registros mais significativos foi o de Joachim Von Ribbentrop, que ao ser inquirido por um oficial se tinha uma última declaração a fazer, teria respondido: “Deus salve a Alemanha! Faço votos para que o leste e o oeste se irmanem e que a paz possa reinar no mundo”.
Consecutivamente, cada condenado foi enforcado, até o décimo homem. A cerimônia das execuções foi encerrada com o corpo de Goering, que se suicidara algumas horas antes, sendo suspenso na forca. Final tétrico e vingativo, para um tribunal que se proclamara como justiceiro de milhões de mortos pelo terror nazista.
Consumado o cumprimento das sentenças, os corpos dos ex-nazistas foram postos em ataúdes de madeira, rústicos e sem pompas. Foram levados para um dos fornos crematórios onde milhões de prisioneiros, em sua maioria judeus, tinham sido incinerados, sendo ali cremados, tendo as cinzas espalhadas pelo rio Isaar. Estava encerrada uma das páginas mais negras da história da humanidade.

Os Processos de Nuremberg

Após os julgamentos que condenaram os líderes do Terceiro Reich, União Soviética, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, as quatro nações que ocupavam a Alemanha, decidiram que os outros julgamentos de crimes de guerra deveriam ser realizados em cada uma das zonas de ocupação. Foram realizados os Processos de Guerra de Nuremberg, acontecidos no Tribunal Militar Americano, que oficialmente levaram em conta os demais processos contra juristas, médicos e importantes pessoas de apoio ao governo nazista.
De 1946 a 1949, doze julgamentos foram realizados em Nuremberg, na zona norte-americana, estando divididos em três julgamentos de chefes militares, três dos principais oficiais das SS, três de industriais que se utilizaram dos serviços escravos dos prisioneiros, um julgamento de diplomatas e funcionários do governo, um de juízes nazistas e um de médicos que praticaram experiências letais com seres humanos nos campos de concentração. Muitos foram sentenciados , a maioria à prisão e uns poucos à morte, alguns foram absolvidos.
Fazendo um sumário geral, podemos classificar os processos contra os criminosos de guerra nazistas realizados em Nuremberg em:

Julgamento de Nuremberg:

Tribunal Militar Internacional vs. Hermann Goering – Processo contra os principais criminosos de guerra nazistas, 20 de novembro 1945 – 1 de outubro de 1946.

Processos de guerra de Nuremberg:

Caso I – Processo Contra os Médicos, 9 de dezembro de 1946 – 20 de agosto de 1947.
Caso II – Processo Milch, 2 de janeiro de 1947 – 17 de abril de 1947.
Caso III – Processo Contra Juristas, 17 de fevereiro de 1947 – 14 de dezembro de 1947.
Caso IV – Processo Pohl, 13 de janeiro de 1947 – 3 de novembro de 1947.
Caso V – Processo Flick, 18 de abril de 1947 – 22 de dezembro de 1947.
Caso VI – Processo IG Farben, 14 de agosto de 1947 – 30 de julho de 1948.
Caso VII – Processo de Generais no Sudeste da Europa, 15 de julho de 1947 – 19 de fevereiro de 1948.
Caso VIII – Processo RUSHA, 1 de julho de 1947 – 10 de março de 1948.
Caso IX – Processo Einsatzgruppen, 15 de setembro de 1947 – 10 de abril de 1948.
Caso X – Processo Krupp, 8 de dezembro de 1947 – 31 de julho de 1948.
Caso XI – Processo WilhelmstraBen, 4 de novembro de 1947 – 14 de abril de 1948.
Caso XII – Processo Contra o Alto Comando, 30 de dezembro de 1947 – 29 de outubro de 1948.

Apesar de todas as polêmicas e controversas, os julgamentos de Nuremberg representaram um avanço dentro das leis internacionais. O Tribunal de Nuremberg contribuiu de forma indelével para a evolução do Direito penal internacional, que pela primeira vez responsabilizou criminosos de guerra diante de um tribunal jurídico. Se os ex-líderes nazistas foram arbitrariamente condenados e executados, eles próprios usurparam os direitos à justiça de milhares de pessoas, matando-as sem sequer dar-lhes o direito a um julgamento digno.

Julgamentos de Nuremberg – Os Acusados e as Suas Penas

Martin Bormann – Vice-líder do Partido Nazista e secretário particular de Hitler. Condenação: morte por enforcamento (in absentia).
Karl Donitz – Supremo Comandante da Marinha; feito por Hitler, em testamento, Presidente e Supremo Comandante das Forças Armadas Alemãs. Condenação: 10 anos de prisão.
Hans Frank – Governador Geral da Polônia ocupada. Condenação: morte por enforcamento.
Wilhelm Frick – Ministro do Interior, proclamador das Leis de Nuremberg. Condenação: morte por enforcamento.
Hans Fritzsche – Diretor Ministerial e ajudante de Goebbels no Ministério da Propaganda. Condenação: Absolvido.
Walther Funk – Ministro da Economia e presidente do Banco do Reich. Condenação: prisão perpétua.
Hermann Goering – Comandante da Luftwaffe, presidente do Reichstag, segundo na hierarquia do Reich e ministro da Prússia. Condenação: Morte por enforcamento (suicidou-se na prisão duas horas antes de ser executado).
Rudolf Hess – Vice-líder do Partido Nazista. Condenação: prisão perpétua.
Alfred Jodl – Chefe de Operações da OKW. Condenação: morte por enforcamento.
Ernst Kaltenbrunner – Chefe do Escritório Central de Segurança do Reich (RSHA), no qual incluía a Gestapo. Condenação: morte por enforcamento.
Wilhelm Keitel – Chefe do Alto Comando das Forças Armadas, a Wermacht. Condenação: morte por enforcamento.
Gustav Krupp – Industrial que usufruiu do trabalho escravo. Sem condenação.
Robert Ley – Chefe do Corpo Alemão de Trabalho. Suicidou-se na prisão.
Erich Raeder – Comandante chefe da Armada Alemã. Condenação: prisão perpétua.
Alfred Rosemberg – Ministro dos territórios orientais ocupados do Leste e ideólogo do racismo. Condenação: morte por enforcamento.
Fritz Sauckel – Diretor do programa de trabalho escravo. Condenação: morte por enforcamento.
Hjalmar Schacht – Ex-presidente do Reichsbank. Condenação: Absolvido.
Arthur Seyss-Inquart – Líder da anexação da Áustria e Gauleiter dos Países Baixos. Condenação: morte por enforcamento.
Albert Speer – Ministro dos Armamentos e Produção de Guerra. Condenação: 20 anos de prisão.
Julius Streicher – Editor do jornal anti-semita Der Stürmer e Diretor do Comitê Central para Defesa contra Atrocidades dos Judeus e Boicote de Propaganda. Condenação: morte por enforcamento.
Constantin Von Neurath – Ministro da RREE, protetor da Morávia e da Boêmia. Condenação: 15 anos de prisão.
Franz Von Papen – Ministro e vice-chanceler da Alemanha. Condenação: Absolvido.
Joachim Von Ribbentrop – Ministro das Relações Exteriores. Condenação: morte por enforcamento.
Baldur Von Schirach – Líder da Juventude Hitlerista. Condenação: 20 anos de prisão.

 


PROFANA – O LEITE BOM DE GAL COSTA

junho 29, 2009
O ano de 1984 foi um dos mais convulsivos da história do Brasil. O povo brasileiro deixou, em casa, o medo da repressão do regime, vestiu camisas amarelas e saiu às ruas batendo em panelas, pedindo o fim da ditadura e o direito de escolher o seu presidente através do voto direto. Era a efervescência do movimento político que entrou para a história como “Diretas Já”, que pedia que uma emenda constitucional fosse votada no Congresso, trazendo de volta as eleições livres naquele ano. A emenda foi derrotada em abril, mas o Brasil não mais se calou até a queda da ditadura.
Aquele ano foi marcado na MPB pela explosão das jovens bandas de rock, lançando para a fama o Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Metrô, Barão Vermelho e tantas outras. Estava declarada a moda new wave, trazendo cores berrantes de todos os tons, jogadas com intensidade nas roupas, dando uma atmosfera de eterno verão.
Foi neste clima que Gal Costa, que assumira o posto de super estrela e primeira dama da MPB, lançou o mítico “Profana”, álbum que mais traduz os caminhos que a Música Popular Brasileira iria seguir a partir de então. A cantora iniciara o ano com um dos mais aplaudidos shows da sua carreira, “Baby Gal”, que fez a sua estréia em janeiro. O show teve direito a um cultuado programa de fim de ano na TV Globo. Tudo que Gal Costa tocava nesta época, reluzia com o brilho do sucesso. Com “Profana” não foi diferente. Álbum jovial, com um traço tropicalista que lembrava o primeiro a solo, “Gal Costa”, de 1969. Construído sobre as bases da carreira da cantora, que voltava às origens de roqueira, passava por baladas suavemente românticas, indo do forró às marchinhas carnavalescas, tudo alinhavado pela consistência e beleza da voz, cada vez mais técnica, sem perder a emoção interpretativa.
Apesar de ser o álbum que mais evidencia a década de oitenta e o mito Gal Costa como grande estrela, “Profana” não traz traço algum que o torne datado. Sucessos definitivos e marcantes, como “Vaca Profana” e “Nada Mais (Lately)” dão a dimensão perene da beleza inquietante do canto de Gal Costa, atingido, um quarto de século depois, pessoas de todas as idades.
Profana” foi o álbum da MPB que agregou os caminhos joviais que começavam a pulsar, enquadrando o momento histórico que germinava através de novas revelações, como Roberto Frejat, sem perder a essência, as raízes da verdadeira música, renovando-a, dando uma lufada no etéreo.

Gotas de Leite de Talento Sobre Nossos Ouvidos

Lançado no fim do ano de 1984, “Profana” abriria o verão de 1985, com Gal Costa cortando os cabelos, vestindo uma imagem sensual e provocativa, magnificamente registrada pelo programa “Gal Costa Especial”, produção da extinta TV Manchete, com direção de Maurício Capovilla. A cantora exalava sensualidade por todos os poros, ousando como nunca, posando nua para as lentes de Marisa Alvarez Lima, em um ensaio histórico publicado pela revista “Status”, grande ícone na imprensa da época.
O álbum começava a sua provocação histórica pela capa, que trazia a cantora maquiada em um rosto histriônico, diante do espelho, a pintar de batom a imensa boca vermelha, maliciosamente profana. Produzido por Mariozinho Rocha, com quem a cantora dividiu a direção artística, trazia uma concepção gráfica arrojada, com belos encartes e doze canções de ritmos ecléticos, distribuídas por dez faixas.
Vaca Profana” (Caetano Veloso), de onde foi retirado o título, abria o álbum. Canção feita exclusivamente para a cantora, é uma verdadeira ode à Espanha, em especial à Catalunha, com retratos discursivos diretos, formando imagens através da poesia, mescladas nas cores vivas de então. É um roque intenso, com uma poesia visceral, difícil nos refrões que não são iguais na letra e que se repetem a todo instante. A canção registra com primor os movimentos de então, a ascensão da moda new wave (nova onda), as revistas musicais da capital espanhola, “Madrid te Mata”, aqui adaptada para o jogo de palavras “Também te mata Barcelona”. Várias expressões em catalão são usadas, como “Si us plau” – por favor, ou “Orchata de chufa”, uma bebida feita com nozes e bastante apreciada na Catalunha. A canção passa pelas ramblas de Barcelona, desfila pelos movimentos punks de Londres, como num retrato contemporâneo de Picasso, atravessa a bolha de Tel Aviv, desaguando nos caretas de Nova York. Caetano Veloso provoca o tempo todo, a começar pelo título da canção, “Vaca Profana”, que se antagoniza com a “vaca sagrada” de tantos seguidores, caretas ou não. Joga com expressões como caretas e “puretas”, termo que na Espanha da juventude new wave, era usado para definir os que não fumavam haxixe. “Vaca Profana” foi a única canção grandiosa dos anos oitenta feita por Caetano Veloso para Gal Costa interpretar, e também uma das últimas, depois dela, somente em 1993, com “Errática”, a voz de Gal Costa voltou a interpretar uma canção genial do autor. Canção de letra imensa e de palavras difíceis, quase que exóticas aos ouvidos, teve uma interpretação sublime de Gal Costa, com a explosão dos agudos nos florões dos refrões. Momentos únicos na voz desta mulher sagrada, a diluir com requinte a poesia de Caetano Veloso, a jorrar o leite sobre a sensibilidade de todos os ouvintes.

Mas eu também sei ser careta
De perto ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta
A vida que é meu bem/meu mal
No mais, as “ramblas” do planeta
Orchata de chufa, si us plau

Após iniciar explosiva e roqueira, a cantora volta às aves do Brasil, com “Ave Nossa” (Moraes Moreira – Beu Machado), que não lhe deixa esquecer o canto das terras brasileiras. Ela já visitara os gritos da acauã, a tristeza trágica e melancólica do assum preto, agora percorria com alegria o universo do sabiá, símbolo da saudade dos brasileiros espalhados pelo mundo, exilados das belezas nativas. A canção brinca com o famoso poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, mostrando que todos os desencantos da nação são reduzidos quando canta o sabiá. Moraes Moreira foi uma presença constante na obra de Gal Costa nos anos oitenta, que fez dos seus frevos grandes sucessos populares, como “Festa do Interior“.

Emoções Dilacerantes na Voz da Cantora

Na terceira faixa, “Nada Mais (Lately)” (Stevie Wonder – versão Ronaldo Bastos), Gal Costa mergulha num dos mais belos momentos do seu canto. Começa intimista, suave, submissa, triste e indefesa, terminando dilacerante, no agudo final e apoteótico quando canta a palavra “jamais”, emocionando o ouvinte, deixando-nos sem fôlego. Ronaldo Bastos havia preparado duas belíssimas versões de canções de Stevie Wonder, “Lately” e “Black Orchid” (Orquídea Negra), sendo esta última preterida à primeira. “Nada Mais” tornou-se um dos grandes sucessos da carreira da cantora. Gal Costa tira qualquer resquício de versão da canção, transformando-a em algo inédito e sublime. A interpretação é romântica sem ser melodramática, é suave sem perder a intensidade, é um dos momentos mais belos do disco e da sensibilidade da cantora.

Vão dizer que são tolices
Que podemos ser felizes
Mas tudo que eu sei não dá pra disfarçar
Dessa vez doeu demais
Amanhã será jamais

Gal Costa, adoravelmente tropicalista, deixa o romantismo da terceira faixa, rasgando o frevo “Atrás da Luminosidade” (Teca Calazans – Luiz Carlos Sá). Leve e solta, debruça-se na alegria contagiante que tem em cantar, convidando os ouvintes para que saiam literalmente do chão, e percorram os sentidos do frevo da cidade, porque a vida traduz-se na força da dança e da juventude com os seus cordões foliões de felicidade instantânea.
O disco, concebido no molde do long-play (LP), encerrava o lado A com a existencialista “De Volta ao Começo” (Gonzaga Jr.). O intimismo delicado de Gal Costa suaviza a esperança melancólica da canção. A poesia de Gonzaguinha muitas vezes atingia ao âmago da existência do sofrimento, saindo dele como quem emerge para a vitória dos medos. Gal Costa traduz com uma serenidade lírica esta travessia. Ela própria voltava, neste álbum, ao começo de si própria, mais tropicalista, como há anos não ousava sê-lo.

Dueto com o Rei do Baião

Profana” iniciava-se no lado B com uma velha marchinha de carnaval, “Onde Está o Dinheiro” (José Maria de Abreu – Francisco Mattoso – Paulo Barbosa), já preparando um sucesso inevitável para o carnaval de 1985. Desde 1979, quando gravara “Balancê” (Alberto Ribeiro – João de Barro), Gal Costa trouxera brilhantemente de volta à MPB as velhas e tradicionais marchinhas carnavalescas, ritmo que a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália encerrara, tornando-o algo velho e fora de moda. Gal Costa provou que velhas tradições musicais podem ser renovadas sempre, atingido novas gerações. Maliciosa, “Onde Está o Dinheiro” toca em um velho problema nacional, a corrupção política e civil, infelizmente continua atualíssima.
Chuva de Prata” (Ed Wilson – Ronaldo Bastos) é uma balada romântica, que na voz doce de Gal Costa transforma-se em uma delícia adolescente, sem compromissos com o intelecto, mas definitiva na sua mensagem proposta. É sem dúvida, a canção mais fácil do disco, pronta para ser um sucesso instantâneo, o que se faz necessário em um repertório com canções tão complexas como “Vaca Profana”. A faixa conta com a participação do grupo Roupa Nova, que a cantora convidara para a versão de “Baby” (Caetano Veloso) do seu disco anterior, “Baby Gal” (1983). Com o tempo, “Chuva de Prata” sofreu a rejeição dos puritanos e “caretas” mais jovens, mas quando lançada, foi cantada pelos populares e pelos intelectuais, na perfeita sintonia que desenhava a atmosfera da época.
A terceira faixa do lado B renova o disco, mais uma vez, trazendo nada menos do que três canções, “Cabeça Feita” (Jackson do Pandeiro – Sebastião Batista da Silva), “Tililingo” (Almira Castilho) e Tem Pouca Diferença” (Durval Vieira). “Profana” mergulha neste momento, no seu ponto mais alto, trazendo o forró da baiana para alegria dos mais ecléticos. A trilogia veio do show “Baby Gal”, onde ela conseguia uma grande reação do público ao cantá-la. Ritmo tradicional, alegre e carismático, o forró começou os anos oitenta sendo atingido pelo preconceito dos mais novos, mas cantoras como Elba Ramalho, Amelinha e Diana Pequeno impuseram a tradição. Gal Costa não se esquece dele no momento em que o rock leve das bandas emergentes queria apagá-lo. Interpreta com brilho as canções, encerrando a trilogia com a presença histórica de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, num dueto inesquecível. Gonzagão rendeu-se à beleza da voz e à sedução latente da baiana, convidando-a logo a seguir, para um novo dueto, na faixa “Forró nº 1” do seu disco de 1985, “Gonzagão, Sanfoneiro Macho”.

Uma Volta ao Começo

Topázio” (Djavan), é uma daquelas canções enigmáticas do universo de Djavan, que só Gal Costa sabe dar vida, traduzindo a sua beleza numa voz de sereia solitária, perdida entre sombras reluzidas pelo exotismo dos topázios e dos lugares de fuga pelo mundo, não importando se aqui ou em Berlim. A canção dilui a sua essência sem sentido na voz contagiante de uma Gal Costa misteriosa, que encanta ao dilatar na garganta cada melodia.
E “Profana” encerra-se como começou, com um grande rock, “O Revólver dos Meus Sonhos” (Roberto Frejat – Waly Salomão – Gilberto Gil). Outra canção difícil, mas que une toda a proposta do disco, sendo uma das faixas mais significativa e emblemática. A própria parceria dos autores é de um simbolismo ímpar, reunindo Frejat, na época com apenas 22 anos e a despontar na carreira com a banda Barão Vermelho; Waly Salomão, velho companheiro da época do apogeu do desbunde; e, Gilberto Gil, um dos mentores da Tropicália. Gal Costa une aqui a estrela da MPB, a musa do desbunde e da Tropicália, fazendo uma retrospectiva contundente da sua carreira em uma só canção. Roqueira, underground e artista Pop, ela encerra com a força da voz, já transformada em mito. A canção tem uma letra que contrasta o passado – “Arembepe, Woodstock, Píer, verão da Bahia”, com o presente vivido “Interfone – Blitz, Joaninha, computador”. Era a Gal Costa tropicalista que reacendia no álbum, sem esquecer o desbunde, a “buzina do vapor barato”. Há muito tempo que ela não voltava a ter uma canção assinada por Waly Salomão em seus discos. Gilberto Gil era a própria raiz do início do mito Gal Costa. A canção era uma das preferidas da cantora neste álbum. Não foi feita para ser tocada nas rádios, mas para encerrar a volta ao começo de Gal Costa, aqui novamente roqueira, tropicalista e infinita na sua pluralidade cada vez mais dilacerante, a desenhar a voz sagrada de uma mulher profana.

O revólver do meu sonho
Atirava, atirava no que via
Mas não matava o desejo
Do que ainda não existia
Interfone, Blitz, Joaninha, computador
O futuro comum de hoje em dia
Que eu cigana já pressentia

Profana” é um álbum que desenha uma atmosfera jovial perene. Um adulto eternamente adolescente no lapso do tempo, atravessando as gerações, mantendo-se intacto, mesmo quando confrontado com o mundo musical do século XXI. Poucas vezes um álbum trouxe letras tão longas e diretas, acentuando e explicando alguns porquês do mito Gal Costa, posta sempre para fora e acima da manada das grandes cantoras.

Ficha Técnica:

Profana
BMG
1984

Produção: Mariozinho Rocha
Direção Artística: Gal Costa e Mariozinho Rocha
Coordenação Artística: Gal Costa e Miguel Plopschi
Direção de Produção: Guti
Técnicos de Gravação: Luís Paulo e Edu
Técnico de Mixagem: Luís Paulo
Auxiliares de Gravação: Julinho e Jackson
Corte: José Oswaldo Martins
Montagem: Dalton Rieffel
Arregimentação: Gilberto D’Ávila
Capa: Noguchi
Fotos: Milton Montenegro
Maquiagem: Guilherme Pereira
Cabelo: Jean
Estúdios de Gravação: SIGLA RJ e Guerenguê RJ (gravação de metais – RJ)

Músicos Participantes:

Arranjos: Paulo Rafael, Marcio Miranda, Paulo Ramiro, Lincoln Olivetti, Cleberson Horst, Luizinho Avelar, Djavan, Severo e Ricardo Feghali
Regências: Cleberson Horst e Nilton Rodrigues
Guitarra: Paulo Rafael, Paulo Ramiro, Urubu, Pisca, Kiko, Zepa e Djavan
Teclados: Marcio Miranda, Lincoln Olivetti, Serginho Trombone, Luizinho Avelar, Cleberson Horst, Ricardo Feghali e Rick Pantoja
Baixo: Jorge Degas, Nando, Pedrão, Sisão e Fernando
Bateria: Jurim, Serginho Herval, Paulinho Braga, Sergio Della Mônica e Teo Lima
Stell Guitar: Rick Ferreira
Bongô: Paulinho
Clave: Paulinho
Acordeom: Severo
Viola: Manasses, Frederick Stephany, Arlindo Penteado, Nelson de Macedo, Antonio Fidelis e Hindenburgo Pereira
Percussão: Feijão
Marimba: Pinduca
Ritmos: João Firmino, Peninha, Ariovaldo, Paulinho, João Gomes, Geraldo Gomes e Melquiades Lacerda Cavalcanti
Spala: Pareschi
Violinos: Aizick, Jorge Faini, Alfredo Vidal, Walter Hack, Carlos Hack, Paschoal Perrota, Michel Bessler, Virgílio Arraes, José Alves, Luiz Carlos Marques, João Daltro, José Lana e Bernardo Bessler
Cellos: Marcio Mallard, Alceu Reis, Luiz Zamith e Jorge Ranesvky
Trombone: Serginho Trombone
Trompete: Bidinho, Paulinho, Don Harris e Nilton Rodrigues
Sax Tenor: José Carlos Ramos
Sax Alto: Mauro Senise
Sax Barítono: Leo Gandelmann
Piston: Paulinho, Nilton Rodrigues e Don Harris
Coro: Cleberson Horst, Ricardo Feghali, Serginho Herval, Nando, Kiko, Regininha, Viviane, Marcio Lott, Luna, Flavinho, Regina e Paulinho

Faixas:

1 Vaca Profana (Caetano Veloso), 2 Ave Nossa (Moraes Moreira – Beu Machado), 3 Nada Mais (Lately) (Stevie Wonder – versão Ronaldo Bastos), 4 Atrás da Luminosidade (Teca Calazans – Luiz Carlos Sá), 5 De Volta ao Começo (Gonzaga Jr.), 6 Onde Está o Dinheiro (José Maria de Abreu – Francisco Mattoso – Paulo Barbosa), 7 Chuva de Prata (Ed Wilson – Ronaldo Bastos) Participação: Roupa Nova, 8 Cabeça Feita (Jackson do Pandeiro – Sebastião Batista da Silva) / Tililingo (Almira Castilho) / Tem Pouca Diferença (Durval Vieira) Participação: Luiz Gonzaga, 9 Topázio (Djavan), 10 O Revólver do Meu Sonho (Roberto Frejat – Waly Salomão – Gilberto Gil)

 


MULHERES DO BRASIL – SOB O OLHAR DE ANTONIO GUERREIRO

junho 28, 2009
A presença da mulher na história do Brasil é constituída de grandes vultos e personalidades que, se fôssemos descrever cada uma delas, teríamos uma longa enciclopédia de biografias instigantes e apaixonantes. Da índia Paraguaçu, que conquistou o coração de Caramuru e à corte francesa, sendo lá batizada como Catarina Álvares, no século XVI, a Xica da Silva, bela negra que de escrava tornou-se a rainha do Tijuco; de Chiquinha Gonzaga a Leila Diniz, personagens que mudaram o conceito de ser mulher à época em que viveram; o Brasil é essencialmente um país feito pela delicadeza bravia das suas mulheres. Nação plural, com uma população formada por várias raças, sem um estereótipo definido, em que a beleza da mulher brasileira é um capítulo à parte na história do país.
Para descrever tão sublime beleza, nenhuma lente foi mais sincera, poética e apoteótica como as do fotógrafo Antonio Guerreiro. Dono de uma sensibilidade estética impar, Guerreiro foi o maior fotógrafo de grandes personalidades brasileiras que despontou nos últimos quarenta anos. Do fim da década de 1960 ao início da de1990, não houve celebridade que não tenha passado por sua objetiva. Surgido na época do desbunde, fazia parte da geração que pregava o amor livre ao cheiro da cocaína, falava de política ao sabor do ácido e sobrevivia à opressão de uma ditadura militar através de uma arte considerada marginal, mas intensa em seu existencialismo apartidário.
No meio da desconstrução estética do desbunde, Antonio Guerreiro andava na contramão, pois as fotografias que fazia dos seus modelos eram a própria perfeição do belo. Longe das imagens do underground do meio que freqüentava, a sua arte representava o glamour e a voluptuosidade dos corpos que retratava, a beleza obsessiva que tal qual um Michelangelo contemporâneo, jamais deixou de buscar. Enquanto os fuzis militares embaçavam o cenário nacional, paradoxalmente a fotografia de Guerreiro traduzia uma beleza infinitamente alegre, mesmo travada em uma atmosfera alienante. As musas de Antonio Guerreiro eram um ópio no sangue dos que eram torturados nos calabouços, era a atenuação de um país silenciado. O retrato de uma geração que ou já morreu ou envelheceu, que não mais existe com o esplendor por ele registrado.
Mulheres do Brasil, por Antonio Guerreiro, retratam um tempo perdido. Aos 61 anos, o fotógrafo vive mais de um passado glorioso do que de um presente artisticamente empobrecido pela arte digital. Este artigo traz algumas divas que constituem um acervo precioso da cultura deste país. Brancas, negras, louras, morenas, todas fotografadas por Antonio Guerreiro, em imagens definitivas, que resistem à morte e às rugas do tempo, todas mulheres imprescindíveis na construção cultural do Brasil.

Ângela Diniz, a Pantera de Minas

Considerada uma das mulheres mais bonitas dos anos setenta, Ângela Diniz era conhecida como “A Pantera de Minas”. Foi daquelas mulheres cridas para uma vida de rainha, com direito a baile de debutante aos 15 anos, para ser apresentada oficialmente à alta sociedade.
Mineira de Belo Horizonte, Ângela Diniz virou uma lenda nos meios sociais da sua época, atraindo para si os holofotes e as paixões desenfreadas tanto dos homens, quanto das mulheres. Era uma mulher que desprezava a sociedade em que vivia, fazendo da sua liberdade uma afronta aos costumes. Do seu casamento com o engenheiro Milton Villas Boas teve três filhos. Mas o seu destino teria o fulgor das aventuras e da tragédia, assim, ela abandonou marido e filhos e foi viver a intensidade do seu glamour no Rio de Janeiro.
Envolvida em um triângulo com o milionário Tuca Mendes e um rapaz de 18 anos, que era caseiro da sua casa, teve a tragédia bater à sua porta pela primeira vez; o caseiro foi assassinado em um crime obscuro, provavelmente movido pelo ciúme; Ângela Diniz assumiu a culpa, talvez para proteger o amante.
E assim foi a vida da “Pantera de Minas”, regada por escândalos envolvendo sexo e drogas, tendo sido presa por porte de maconha; foi constrangida quando espancada em público por um namorado, além de outros escândalos menores.
Em 1976 Ângela Diniz envolveu-se com o bon vivant Doca Street. Na véspera do reveillon daquele ano, os dois foram para a Praia dos Ossos, em Búzios, no litoral do Rio de Janeiro. Viveram uma paixão explosiva, com muito sexo, cocaína, champangne e ciúmes. O resultado, quatro tiros desferidos por Doca Street, desfigurando um dos rostos mais belos do Brasil e matando uma das mulheres mais controversas da alta sociedade. Doca Street foi a dois julgamentos, sendo condenado apenas no último. Com a condenação, morria no Brasil o conceito de que era válido matar a mulher em defesa da honra masculina. Infelizmente a violência contra a mulher prevalece até os dias atuais.
Sob as lentes de Antonio Guerreiro, percebe-se a beleza trágica e inconquistável de Ângela Diniz. O fotógrafo dissimula do seu rosto a malícia fugaz, esculpindo-lhe uma beleza bíblica a contrastar com a verdade profana da Pantera de Minas.

Sandra Bréa, Símbolo Sexual de uma Época

Atriz, cantora, dançarina, Sandra Bréa foi uma artista completa, poucas como ela reuniram tantos predicados, tantos dotes artísticos. Dona de uma beleza clássica, talvez tenha sido a mulher mais fotografada nua na década de setenta, o que lhe rendeu o título de símbolo sexual, fazendo-a uma das mais desejada de um Brasil reprimido pela liberdade de pensamentos e pela moral e pelos bons costumes impostos pela ditadura.
Após protagonizar algumas novelas da TV Globo, entre elas a histórica “O Bem Amado”, de Dias Gomes, a atriz encontrou o auge da sua carreira no programa musical “Sandra e Miele”, em 1976, ao lado de Luiz Carlos Miele. O programa tornou-se mítico, e um dos mais bem concebidos daquela década.
Casada durante alguns anos com Antonio Guerreiro, foi fotografada por ele em todo o seu esplendor, revelando-se como uma estátua nua para todo o Brasil. Assim como as mulheres transgressoras do seu tempo, a atriz sofreu os revezes dos preconceitos, mas jamais se deixou intimidar por eles, pagando com sangue e vida o direito de ser mulher independente e livre.
Nos anos noventa, Sandra Bréa foi contaminada pelo vírus da Aids, sendo a primeira mulher no Brasil a assumir a doença publicamente. Desde então foi isolada, encerrando a carreira e o glamour. A estrela apagou-se em 2000, vítima de um câncer no pulmão, fugindo ao estigma que tanto temia, o de morrer em conseqüência da Aids. Nos últimos anos de vida, teve o belo físico transformado pelo tratamento que fazia com os retrovirais para combater a doença. O legado que nos deixou não foi apenas a coragem de transgredir, mas o de um talento digno de uma grande brasileira.
Nesta fotografia, “Woman in Red”, deparamos com um facho de luz no expoente de um dos olhares que mais se cruzou com as lentes de Antonio Guerreiro, formando uma cumplicidade eterna, presa no tempo e na memória.

Betty Faria, Talento e Beleza

O seu nome confunde-se com o da teledramaturgia do país. Foi levada para a televisão pelas mãos da amiga Leila Diniz, que a apresentou a Daniel Filho. Nunca mais saiu, construindo para o Brasil, uma bem sucedida carreira, intercalada com o teatro e com o cinema.
Betty Faria viveu durante anos, personagens secundárias, às vezes antagonistas da heroína da trama. Foi elevada à estrela global em 1975, sob a direção do então marido, Daniel Filho. Na televisão interpretou personagens inesquecíveis como a Lucinha da primeira versão de “Pecado Capital” (1975), de Janete Clair, e a fogosa protagonista de “Tieta” (1989).
A atriz também brilhou no cinema nacional, em clássicos como “A Estrela Sobe”, “O Cortiço”, “Bye Bye Brasil”, “Romance da Empregada” e “Lili Carabina, a Estrela do Crime”.
Na sua beleza morena e sensualidade à flor da pele, Betty Faria conquistou ao longo da carreira, uma galeria diversificada de fãs, entre eles o escritor Jorge Amado, que praticamente exigiu a atriz para protagonizar a novela “Tieta”, baseada em sua obra literária. Foi a primeira viúva Porcina de “Roque Santeiro”, em 1975, que censurada pela ditadura militar, jamais foi ao ar. Em 1985, quando a telenovela foi finalmente liberada, a atriz recusou o papel.
No inicio da carreira foi casada com o ator Cláudio Marzo, de quem teve uma filha, a atriz Alexandra Marzo. Depois se casou com o diretor Daniel Filho, gerando com ele um filho, João. Esta é Betty Faria, feita de acertos e erros, de talento e beleza, altos e baixos em uma carreira tão longa e empolgante.
Antonio Guerreiro soube explorar bem a beleza morena da atriz, envolvendo-a em brilhos que contrastam com a pele branca e com a vasta cabeleira negra. Guerreiro enfeitou-lhe de adereços e glamour, como se preparasse a mulher que saltaria de dentro de um luxo concebido. Um registro que foge ao tempo e entra para a galeria das grandes personagens culturais do nosso país.

Tonia Carrero, Uma das Maiores Belezas do Brasil

Tonia Carrero é uma das mulheres mais bonitas que nasceu em solo brasileiro. Mesmo com as marcas que lhe esculpiu o tempo, ela jamais perdeu a essência do belo e dos traços de deusa grega.
Mais belo ainda, é a sua trajetória artística. Assim como as mulheres do seu tempo, foi preparada para o casamento, ato que assumiu muito bem, só iniciando a carreira artística depois de casada. Sua estréia aconteceu ao lado de outro gigante do cenário artístico brasileiro, Paulo Autran. Juntos, partiram para o infinito das artes e do talento arrancado do âmago da grandiosidade artística.
Tonia Carrero foi a grande musa do cinema brasileiro na época dos estúdios da Vera Cruz, considerada a Hollywood brasileira, vivendo clássicos como “Tico-Tico no Fubá” (1952). A beleza etérea do seu rosto iluminava as salas de cinema. A atriz sabia-se dona desta beleza rara, assumindo-a sem preconceitos, mas sem se deixar levar por ela, atirando-se a desafios tanto no cinema como no teatro.
Mulher talentosa e inteligente, trabalhou com mestres como Ziembinski e Adolfo Celli, diretor e ator de cinema italiano, com quem foi casada.
Também brilhou na televisão, protagonizando várias telenovelas da TV Globo no início da década de 1970, como “Pigmalião 70” e “A Próxima Atração”. Cansada de viver as eternas ricas sofisticadas das novelas, ela procurou evitar desgastar a imagem, declinando de fazer televisão constantemente.
Até o fim da década de setenta e início da de oitenta, Tonia Carrero era tida pelas mulheres como o símbolo de beleza feminino ideal, mesmo a atriz já estando na época com sessenta anos, posição que o tempo e as suas marcas, foram lhe tirando aos poucos.
Antonio Guerreiro revela aqui, a beleza madura da atriz, ainda com traços delineados com perfeição. Os olhos, diminuídos por uma intervenção cirúrgica corretiva, voltam a brilhar sem medo de olhar para as lentes do fotógrafo. Longe da moda das bocas carnudas de agora, Tonia Carrero deslumbra com os seus lábios finos e clássicos. A beleza do rosto entrelaça-se com a da mão, terminada em unhas perfeitas, no glamour de uma mulher elegante e inteligente. A imagem de Guerreiro registra o que o tempo roubou à atriz, fazendo-a infinitamente presa à beleza.

Regina Duarte, a Namoradinha do Brasil

Uma das mulheres mais amada pelo público brasileiro, Regina Duarte iniciou a carreira na extinta TV Excelsior. Com o fim da emissora, foi contratada pela TV Globo em 1969, de onde nunca mais saiu.
Dona de uma voz doce e intensa, de um sorriso angelical, ela logo se destacou como protagonista de sofridas heroínas. A terna e carismática Patrícia de “Minha Doce Namorada”, novela de Vicente Sesso, de 1971, conferiu-lhe o título de “Namoradinha do Brasil”. Vinculada a esta imagem, a atriz viveu personagens afins, emplacando grandes sucessos como “Selva de Pedra” (1972) e “Carinhoso” (1973).
Cansada de viver a eterna heroína sofredora, Regina Duarte quis deixar a televisão em 1974, mas a direção da Globo não deixou, dando-lhe dois anos de férias. A primeira atitude da atriz foi interpretar uma prostituta no teatro, na peça “Reveillon”, algo incompatível com a imagem imposta pela televisão.
Quando voltou às novelas, negou-se a representar os mesmos papéis. Veio o seriado “Malu Mulher” (1979) e a imagem da namoradinha esvaiu-se por completo. Quando interpretou a fogosa e inesquecível viúva Porcina de “Roque Santeiro”, em 1985, já não havia resquícios da heroína virginal de outrora.
Antonio Guerreiro descobre, neste retrato, toda a sensualidade da atriz antes da televisão o fazer. Ele capta a doçura da estrela, sem apagar a mulher. Revela-nos uma beleza angelical preste a romper, fazendo emergir a mulher sensual, como se fosse saltar dos olhos expressivos do anjo. Os cabelos da atriz revelam o seu glamour, a sensualidade contida, mas latente, pronta para pulsar. Guerreiro descobre um lado impar de Regina Duarte, revelando, com exclusividade, uma mulher quente e ardente, que de namoradinha, transformara-se em “Amante do Brasil”.

Zezé Motta, Exótica Beleza

Dona de uma beleza exótica, exalada da sua pele negra, como um ébano nobre, uma rainha secular, Zezé Motta foi a primeira atriz a dizer não aos papéis medíocres e limitados que as telenovelas reservavam para os atores negros. Recusou-se a voltar no papel da eterna empregada doméstica, denunciando abertamente o preconceito, que até então, fazia-se velado.
Longe das limitações da televisão, transformou-se em rainha no cinema, vivendo a mítica Xica da Silva no filme homônimo. A película rendeu-lhe a consagração definitiva da carreira, e grande prestígio do público e dos críticos.
Se o seu olhar desperta uma mulher silvestre, o tom da voz é doce, de uma meiguice insinuante. Zezé Motta, além de grande atriz, é uma excelente cantora, tendo gravado três discos, menos do que os que o seu talento vocal merece.
Foi a primeira atriz a viver um papel de destaque que mostrava o amor entre raças na novela “Corpo a Corpo”, de Gilberto Braga, em 1985. Na época, ao fazer cenas tórridas com o ator e diretor Marcos Paulo, por quem nutriu uma paixão de juventude, sofreu preconceitos de um público ainda incipiente e preconceituoso, não habituado a ver a beleza das cores mescladas pelo amor. Zezé Motta foi a primeira atriz negra do Brasil a adquirir o estatuto de estrela. Há quem diga que a música “Pérola Negra”, grande sucesso de Luiz Melodia na voz de Gal Costa, foi inspirada na atriz-cantora.
Antonio Guerreiro fez a fotografia da capa de um disco da cantora, além de fotografá-la nua para vários ensaios. Sob as lentes de Guerreiro, a sua beleza exótica salta dos olhos, invadindo o corpo silvestre, exalando todos os desejos de quem lhe admira a imagem. A negritude da pele é ressaltada pelas luzes usadas, dando uma atmosfera que lembram o cetim e o bronze, transformando-a em uma reluzente estátua renascentista.

Fernanda Montenegro, Grande Dama do Teatro

O nome de Fernanda Montenegro dispensa apresentações. Considerada a grande dama do teatro brasileiro, é uma das poucas unanimidades que o Brasil possui. Fernanda Montenegro transmite aquele ar inteligente que os intelectuais trazem na alma. Mesmo quando fala, revela-se uma atriz nos gestos, nas pausas da voz, no olhar, nos movimentos das mãos. É a mulher que dispensa títulos de estrela, sendo a atriz.
Nos palcos viveu quase todos os papéis possíveis, registrando sucessos memoráveis como “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” e “Os Dias Felizes”. No cinema foi indicada para o Oscar, em 1999, pelo filme “Central do Brasil“.
Ao longo da carreira, procurou evitar a exposição desgastante da televisão, mas as poucas vezes que emprestou o seu talento para a pequena tela, deixou momentos memoráveis, em comédias como “Guerra dos Sexos” (1983), e, “Cambalacho” (1986), novelas de Silvio de Abreu; e interpretações dramáticas em “Baila Comigo” (1981), de Manoel Carlos e “Brilhante” (1981), de Gilberto Braga.
Fernanda Montenegro foi casada com o ator Fernando Torres, de quem ficou viúva em 2008, tendo com ele dois filhos, a atriz Fernanda Torres e o cenógrafo e diretor Cláudio Torres. É uma das atrizes mais querida do Brasil, dona de um público cativo e de fãs que se vão acumulando ao longo das décadas de uma carreira brilhante.
Antonio Guerreiro fotografou a atriz ao lado do marido e da filha, Fernanda Torres, quando esta ainda era criança. Neste retrato aqui mostrado, o fotógrafo acentua os olhos decididos da dama do teatro, instigando-lhe o ar inteligente, sem esquecer a mulher por debaixo da atriz. Guerreiro tem destas magias, revela primeiro a mulher, para depois se curvar diante da celebridade. Fernanda Montenegro é na imagem, essencialmente uma mulher, captada no momento exato que se prepara para vestir à atriz, mas que as lentes de Guerreiro intercedem no lapso de tempo da metamorfose. O braço debruça-se sobre a sutileza da mão feminina, despojando-se dos gestos do drama. Nunca a atriz interpretou tão bem a mulher como aqui.

Marina Montini, Musa de Di Cavalcanti

A nova geração de brasileiros não se lembra dela. Uma injustiça, pois a mulata Marina Montini foi um dos maiores símbolos da beleza da mulher genuinamente brasileira. Fez imenso sucesso como modelo no Brasil e na Europa, onde viveu em diversos países, como Alemanha e Itália. Na década de setenta atingiu o auge da fama, posando para as lentes dos maiores fotógrafos do país. Foi capa de grandes revistas, como a “Manchete”, além de fazer belíssimos ensaios sensuais de nu artístico para a revista “Playboy”. Como atriz, fez pequenas participações no cinema nacional. Era uma modelo cultuada pelos intelectuais da época, tida como o retrato fiel da verdadeira beleza da mulher brasileira.
Mas foi como a musa inspiradora do pintor Di Cavalcanti que Marina Montini foi imortalizada. A sua beleza exuberante atingiu de forma indelével o pintor, que encontrou a estética exata da sua inspiração, passando a tê-la como modelo por sete anos. A modelo aparece nas principais obras do pintor feitas na década de setenta, entre elas, “Mulata Com Pássaro”. O estigma de musa de Di Cavalcanti acompanhou Marina Montini por toda a vida. Encerrado o apogeu da carreira, a modelo passou a ter dificuldades financeiras e a saúde fragilizada por uma cirrose, vendo-se obrigada a morar no Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá, vindo ali falecer em 2004, aos 58 anos de idade, isolada e esquecida.
Não é fácil competir com a pintura genial de Di Cavalcanti, mas Antonio Guerreiro não decepcionou ao fotografar a sua musa inspiradora. Neste retrato primoroso, tem-se a noção exata das formas de Marina Montini, em um dos mais fiéis registros à personalidade da modelo. Marina Montini não era uma mulher comum, como pode ser vista no retrato. Sua cor é uma exclusividade da mulher brasileira, raramente encontrada em outras terras. Sua boca carnuda inundava a imaginação dos mais apaixonados e fervorosos admiradores. Sua altura, 1,80 metro bem distribuídos entre curvas insinuantes e proporções voluptuosas, era rara para uma mulher da sua geração. Se Marina Montini viveu para ser eternizada por Di Cavalcanti, no retrato de Antonio Guerreiro adquiriu o perfil exato da lembrança da sua verdadeira imagem.

Dina Sfat, Magnitude e Talento

Dina Sfat pertence a uma geração de atrizes que surgiu com o teatro engajado no início dos anos sessenta. Mulher inteligente, de um magnetismo pessoal envolvente, tornando-a uma personalidade marcante e inesquecível. Estreou-se no teatro em 1962, dirigida por Antonio Abujamra. Descoberta pelo mítico Teatro de Arena, Dina Sfat marcou com unhas de grande atriz os palcos de então.
No Teatro de Arena a atriz conheceu o ator Paulo José, com quem esteve casada por 17 anos, tendo com ele três filhas: Bel Kutner, Ana e Clara. Era uma mulher reservada, sem deixar jamais de participar da vida pública do país.
Em 1970 fez o mítico filme “Macunaíma”, vivendo a guerrilheira Cy. O papel abriu-lhe as portas para protagonizar uma novela de Dias Gomes, “Verão Vermelho” (1970), a partir de então, tornou-se uma grande estrela da TV Globo, participando de sucessos inesquecíveis da teledramaturgia brasileira: “Selva de Pedra” (1972), “O Astro” (1978) e “Eu Prometo” (1983), todas de Janete Clair, sendo uma das atrizes preferidas da autora. Dias Gomes, todas às vezes que lhe foi possível, teve-a em suas novelas, entre elas “Assim na Terra Como no Céu” (1970) e “Saramandaia” (1976). A atriz jamais se furtou de viver diferentes personagens, sem nunca se ater às limitações da imagem geralmente imposta pela televisão aos seus ídolos. Interpretou prostitutas, heroínas, assassinas, loucas, enfim, uma galeria de personagens inesquecíveis que viveu com maestria.
Mulher dinâmica, Dina Sfat corajosamente disse em público, a um militar do governo, que tinha medo dele. Filha de judeus poloneses, jamais abandonou às raízes. Um câncer matou-a precocemente aos 50 anos, em 1989, encerrando uma das maiores carreiras deste país, além de uma das suas mais contundentes personalidades.
Na fotografia de Antonio Guerreiro, Dina Sfat é vista na sua essência, olhos grandes, de um olhar que penetrava na alma de quem se lhe pusesse na frente, gestos inteligentes, sem jamais esconder a mulher ardente que emanava. Dina Sfat trazia um certo mistério a ser desvendado, um lugar recôndito na alma que não se furtava em mostrar para quem tivesse coragem e personalidade para tentar penetrá-lo. Os olhos, a boca, os dedos, as mãos, tudo nela era expressivo, a sua beleza era moldada a partir da personalidade. Dina Sfat duela com a objetiva de Guerreiro, absorvendo-lhe a manipulação da imagem, sendo exatamente ela, bela, inteligente e infinita.

Vera Fischer, Um Ícone do Brasil

Uma das personalidades mais controversas do Brasil, Vera Fischer conquistou o seu lugar ao sol mediante grande perseverança e personalidade impar que só o verdadeiro talento pode revelar. Veio de Santa Catarina para desabrochar como Miss Brasil em 1969, quando o país atravessava um dos momentos mais delicados da sua história, com presos torturados e mortos nos porões da ditadura e guerrilheiros de organizações de esquerda nas ruas. Surgia singela, bela e sem explicar para o que tinha vindo, sem que se lhe pudesse imaginar aonde iria chegar.
Na primeira metade da década de setenta, notabilizou-se por participar de inúmeras pornochanchadas de sucesso, tornando-se a rainha delas. Menosprezada por um público mais consciente e inexistente para a crítica, Vera Fischer fascinava pela beleza desnuda do seu corpo nas telas do cinema. Em 1976 estava decidida a romper com esta imagem, fazendo um filme de conteúdo tido como sério, “Intimidade”, dirigida pelo então marido, Perry Salles. O filme passou despercebido, sem maiores conseqüências para a sua carreira.
Em 1977 foi contratada pela TV Globo, para viver uma personagem inspirada nela própria, na novela “Espelho Mágico”, de Lauro César Muniz. A novela não alcançou grande sucesso de público e a estréia valeu como curiosidade na sua carreira. O sucesso começou a vir em “Sinal de Alerta” (1978), de Dias Gomes, e Vera Fischer começou a demonstrar um talento incipiente, mas em franca ascensão. Em 1980 viveu a primeira protagonista, em “Coração Alado”, novela de Janete Clair, culminando com a novela “Brilhante”, de Gilberto Braga, em 1981, onde vivia Luiza, personagem imortalizada na música homônima de Tom Jobim. Desde então Vera Fischer passou a ser uma atriz respeitada e admirada.
A atriz construiu uma carreira muitas vezes afetada pelos altos e baixos da sua vida pessoal, traduzida pelas drogas que consumia e por seus amores tempestuosos. Já foi demitida da televisão, perdeu a guarda do filho, teve internada em clínicas para desintoxicação, tendo a tudo superado, mantendo-se com grande prestígio, bons papéis e dona de uma beleza madura, que parece eterna, longe do crepúsculo dos anos.
Nesta fotografia de Antonio Guerreiro temos uma Vera Fischer extremamente jovem, vestida apenas por sua beleza, sem as marcas deixadas pelo tempo que moldam a personalidade e agregam o amadurecimento existencial. Traz um quase sorriso malicioso, diluído em uma inocência intimista. Guerreiro revela o momento exato em que o mito do cinema sensual dá passagem para a atriz personalizada. Luzes realçam os olhos e iluminam a delicadeza de uma beleza singular. Vera Fischer é aqui, o esboço do mito, é a mulher despida, maquiada pelas lentes da objetiva e pelas luzes do cenário. Sua beleza é o tema essencial da fotografia.

Veja também:
SONIA BRAGA & GAL COSTA SOB AS LENTES DE ANTONIO GUERREIRO
https://jeocaz.wordpress.com/2008/09/08/sonia-braga-gal-costa-sob-as-lentes-de-antonio-guerreiro/

MICHELANGELO BUONARROTI – A OBRA DA PERFEIÇÃO DA BELEZA

junho 27, 2009
Ao longo da história da humanidade a arte andou sempre ao lado do homem, dando emoção e beleza ao cotidiano, não importando o século ou a tendência. A arte gerou muitos artistas através do tempo, mas poucos atingiram a grandiosidade de Michelangelo Buonarroti. Sua obra, de uma beleza estética perfeita, de genialidade e sensibilidade raras, constitui um precioso patrimônio da arte, sublimemente presenteada à humanidade.
De uma força humana avassaladora, as obras de Michelangelo atravessaram o tempo, cinco séculos passados, e continuam a fascinar o mundo inteiro. Suas estátuas atingiram a perfeição da beleza humana, que imóveis contemplam o mundo, como se a qualquer instante fossem falar. Sua pintura pulsa, como se tomada por uma força arrebatadora, encerrando em si, o drama do homem ante à vida, que se lhe mostra inquietante, bela, fiel à proposta do seu autor.
Michelangelo procurou, incansavelmente, atingir à beleza perfeita, à promessa do ideal grego de estética. Tinha uma obsessão latente pela beleza masculina, dilatando-a e explorando-a na mais completa tradução. Por fora o artista trazia cicatrizes no rosto e na alma. Adorador do belo, o mestre viu o seu rosto deformado após ser agredido por um dos seus desafetos. Viu o corpo envelhecer e definhar-se na longevidade de vida que alcançou, quase noventa anos de uma existência angustiada. Viveu dramas políticos e ideais insólitos, amou à terra natal, Florença. Entregou-se às paixões proibidas da sua homossexualidade latente, muitas vezes dilacerando os sentimentos para proteger-se do seu tempo. Michelangelo buscava as respostas das tormentas da sua alma, era um homem instável e de arroubos tempestivos. Quando penetrava dentro de si mesmo, transbordava obras definitivas, de um poder criador magnânimo. De uma inspiração sublime, deixou-nos a melancolia irremediável que emana da “Pietá”; da perfeição humana diante de um “David” fulgente; ou do Cristo vingador e triunfante do afresco da Capela Sistina do “O Juízo Final”. Da construção da catedral de São Pedro, encomendada pelo papa Paulo III, à tumba inacabada da família Médici, a obra de Michelangelo traz a grandeza apaixonante da saga humana, conflitante com a beleza dos corpos e as imposições da alma, dos costumes e de uma sociedade caminhante para a generosidade trágica do viver. Michelangelo deixou, através da sua obra, o retrato das suas angústias, revelado na beleza fascinante de um mundo convulsivamente humano.

Formação na Escola de Lourenço de Médici

Michelangelo Buonarroti nasceu em 6 de março de 1475, em Caprise, na província de Florença. Nasceu em uma família de linhagem aristocrática antiga em Florença. Seu pai, Ludovico di Lionardo Buonarroti Simoni, era um homem violento, fervorosamente religioso. Aos seis anos, Michelangelo perdeu a mãe, sendo cuidado por uma ama de leite.
Já na escola, Michelangelo demonstrava a sua aptidão para as artes, enchendo os cadernos de desenhos, desligando-se das matérias ensinadas. A postura rendeu-lhe a perseguição do pai e dos irmãos, que não suportavam a idéia de ter um artista na família. Por causa dos desenhos, foi muitas vezes espancado, ora pelo pai, ora pelos irmãos. Mas a sua obstinação pela arte foi mais forte e, aos treze anos, venceu à resistência paterna, ingressando como aprendiz, no estúdio de Domenico Ghirlandaio, em Florença.
Ghirlandaio era considerado um mestre da pintura de Florença. A permanência de Michelangelo em seu estúdio foi curta, durando apenas um ano. Os motivos da sua saída seguem duas vertentes narrativas, uma de que teria sido pelo artista considerar as aulas de pintura lentas e limitadas, de preferir a escultura à pintura; outra versão é de que movido pelo ciúme, Ghirlandaio afastou o seu aluno, ao perceber que os trabalhos deste eram melhores que os seus. Nenhuma das versões são confirmadas por documentos históricos.
Ao deixar Ghirlandaio e à sua pintura, Michelangelo entrou para a escola de escultura que o mecenas Lourenço de Médici, o Magnífico, rico senhor e protetor das artes, matinha nos jardins de São Marcos, em Florença. Lourenço de Médici interessou-se pelo talento do novo estudante, hospedando-o em seu palácio. Michelangelo encontrou-se com a plenitude do Renascimento italiano, vivendo em um ambiente de atmosfera erudita e poética, ao lado da elite nobre e intelectual de Florença. Seria no convívio do palácio dos Médici, que Michelangelo assimilaria os alicerces renascentistas que caracterizariam as suas obras, abraçando o apego à natureza e ao ideal do homem perfeito, que deveria ser belo, bom e verdadeiro. Surge o seu primeiro trabalho na pedra, trazendo adolescentes atléticos, de beleza impassível, como deuses olímpicos envolvidos na perfeição dos corpos. Ao produzir “O Combate dos Centauros”, Michelangelo demonstrava a obsessão que o perseguiria para sempre, a de arrancar corpos carnosos e vivos do mármore, projetando dimensões espetaculares. Michelangelo traduzia, desde o inicio, a sua paixão pela escultura.

Do Profano ao Sacro

Michelangelo sempre demonstrou uma inquietude latente, sem muita paciência para o que considerava medíocre. Sua genialidade destacava-o dos demais alunos dos jardins de Lourenço de Médici, o que lhe fazia tempestivo e sem cordialidade com os menos talentosos, a quem ironizava sem diplomacia alguma. O temperamento franco valeu-lhe o confronto com Torrigiano dei Torrigiani, um vaidoso e agressivo companheiro de escola, que ao ver o seu trabalho ridicularizado, desferiu um golpe tão violento no rosto de Michelangelo, desfigurando-o para sempre o nariz. Amante da beleza e da sua perfeição, a deformação no rosto atormentaria Michelangelo para sempre, sem que jamais pudesse deixar de arranhar a sua sensibilidade.
O apogeu renascentista de Florença sofreu um grande golpe, em 1490, quando o monge Savonarola começou uma inflamada pregação mística, apregoando o ascetismo religioso, condenando a arte profana e perseguindo aos seus adeptos. Para piorar a situação, Lourenço de Médici morreu, em 1492, forçando Michelangelo a deixar o palácio. A revolução fanática de Savonarola explodiu em 1494, obrigando o artista, um mês antes, a fugir para Veneza. Ele só retornaria a Florença na primavera do ano seguinte, encontrando um ambiente tomado pelo fervor religioso, assistindo à queima de livros e quadros considerados como vaidades ofensivas à religiosidade. A inquietação rebelde de Michelangelo, fez com que ele, neste ambiente hostil, seguisse na contramão dos preconceitos, esculpindo “Cupido Adormecido”, uma obra pagã.
Diante de uma atmosfera tão conservadora e de fanatismo religioso, Michelangelo deixou Florença, seguindo para Roma, onde esculpiria duas belas obras, “Baco Bêbado” e “Adônis Morrendo”. A lembrança de Florença e do seu esplendor na época de Lourenço de Médici jamais abandonaria o artista.
Com o tempo, Savonarola e os seus seguidores passaram de perseguidores a perseguidos. Em 1498, após desafiar o papa Alexandre VI, o monge é queimado em praça pública. Nesta época Michelangelo já se tornara um homem triste e melancólico, tristeza esta expressada na melancolia sem fim da figura da sua obra “Pietá”. Por um instante, ele deixou o profano, debruçando-se com maestria sobre um tema clássico e religioso. A alegria esvaída não invalida a beleza cada vez mais perfeita de uma obra que parece jamais deixar de atingir um apogeu a cada novo trabalho. Na época da criação da Pietá, ninguém acreditava que um artista tão jovem pudesse conceber uma obra tão intensa, talhada para ser uma das mais belas já produzidas sobre o tema. Um jovem que, precocemente, entristecera a sua alma, mergulhando em um trabalho a vislumbrar obsessivamente a perfeição.

Obras Perfeitas Arrancadas do Mármore

Mesmo com a morte de Savonarola, Michelangelo continuou em Roma, envolto cada vez mais em uma tristeza crônica e numa ansiedade de moldar obras grandiosas, de belezas perfeitas, arrancadas da frieza do mármore, convertidas em figuras pulsantes, quase vivas.
Na primavera de 1501 Michelangelo retornou a Florença, para executar a obra que refletiria o amadurecimento da sua arte. Tomou para si um imenso bloco de mármore abandonado há quarenta anos, pertencente à catedral da cidade. O bloco tinha sido entregue a Duccio, para que nele fosse talhada a figura de um profeta, mas o escultor morrera repentinamente. Michelangelo trabalhou no bloco, modelando a grandiosidade da sua obra monumental. Usou a sua força física, com golpes intensos de martelo, que deixavam o mármore aos poucos, tomar forma de um homem perfeito, de plena exuberância das suas formas, surgia “David”, jovem e vigoroso a vencer o gigante Golias.
A estátua colossal deslumbrou uma comissão de artistas, que incluía Botticelli, Leonardo da Vinci, Perugino e Pilippino Lippi. Cercado pelo fascínio de todos, Michelangelo explicava a sua técnica diante do mármore bruto e da concepção da figura: “A figura já está na pedra, trata-se de arrancá-la para fora.
Ao ser questionado onde que se iria pôr a estátua de David, Michelangelo foi categórico, deveria ficar na praça central de Florença, a Piazza Della Signoria (Praça da Senhoria), em frente ao Palazzo Vecchio (Palácio Velho). Assim foi feito, a estátua ficou neste local de 1504 até 1873, quando foi transferida para a Galleria dell’Accademia, protegendo-a da depredação dos ataques constantes do povo, que consideraram a nudez do David um atentado à moral.

Encontro com o Papa, em Roma

Após o término da estátua colossal de David, concluída em 1504, Michelangelo retornou a Roma, em 1505, chamado pelo papa Júlio II. O pontífice encomendou-lhe um mausoléu monumental, digno da época áurea da Roma Antiga. Entusiasmado, o mestre partiu para Carrara, onde ficou oito meses, a conceber o projeto e a escolher o mármore que nele iria usar. Enormes blocos de pedra foram enviados para Roma, acumulando-se na Praça de São Pedro. Um desentendimento do escultor com Júlio II, fez com que este suspendesse a obra, em janeiro de 1506. No lugar do mausoléu, o papa decidiu reconstruir a Praça de São Pedro, sem consultar Michelangelo. O artista sentiu-se humilhado, além de ter ficado endividado. Sem alternativas, Michelangelo voltou para Florença.
A reconciliação com Júlio II viria algum tempo depois, quando este lhe encomendou uma estátua de bronze para a fachada da Igreja de São Petrônio, em Bolonha. Michelangelo protestou, pois não tinha técnica com o bronze, mas Júlio II insistiu no capricho, e durante quinze meses, o artista trabalhou arduamente na estátua, que seria erigida em 1508. A estátua de bronze de Júlio II teve apenas quatro anos de vida, sendo destruída, em dezembro de 1511, por políticos inimigos do papa, sendo o material usado para a construção de um canhão.
Ao voltar a Roma, Michelangelo teve, mais uma vez um pedido que não lhe agradou, vindo de Júlio II, o de decorar a abóbada da Capela Sistina. O artista menosprezava a pintura, não escondendo a sua paixão pela escultura. Tentou declinar da encomenda do papa, vociferando: “Não sou pintor, sou escultor.” Mas não conseguiu desvencilhar-se do trabalho e dos caprichos do papa. No dia 10 de maio de 1508, ele começou a produzir uma das mais grandiosas obras da sua autoria e da humanidade, os afrescos da Capela Sistina.

Michelangelo Pinta os Afrescos da Capela Sistina

Michelangelo dispensou os pintores que lhe haviam sido dados como ajudantes. Sozinho, começou a executar um trabalho fustigante, que lhe consumiria a alma e a saúde. Tornou-se herói de si mesmo, numa luta árdua entre a sua intuição criativa, a reprodução da criação e os limites do corpo e da existência. Michelangelo mergulhou nas entranhas da sua inspiração, arrancando dela um vasto cenário da existência do homem, com as suas tragédias, esperanças e promessas eternas. Mais do que decorar uma abóbada, ele retratou a própria humanidade, desde o princípio da criação às profecias da existência.
Michelangelo sofreu todas as vicissitudes de quem estava disposto a erigir uma obra grandiosa. Decidiu pintar não só a abóbada da capela, como às suas paredes. O trabalho era lento, exaustivo, quase imperceptível em seu avanço, o que fez com que Júlio II não lhe pagasse um tostão por mais de um ano. Michelangelo foi atormentado pela falta de dinheiro. Sofreu com a cobrança constante de Júlio II, que lhe perguntava, impacientemente, quando teria a capela pronta, aa que ele respondia com ironia: “Quando eu puder!”. Os momentos de tensão foram tão intensos entre dois, que o artista chegou a ser agredido pelo pontífice com golpes de bengala. Diante das animosidades, Michelangelo tentou fugir de Roma, mas foi impedido pelo papa, que lhe pediu desculpas e mandou que lhe fosse entregue a quantia de quinhentos ducados.
Após longos quatro anos de agonia, sofrimento e criatividade única, Michelangelo concluiu a sua obra. No dia 2 de novembro de 1512, o artista retirou os andaimes que encobriam a perspectiva total da obra, permitindo a presença do papa à capela, para que pudesse ver o resultado. A pintura trazia toda a trajetória humana, guiada pela plenitude do Criador. Trezentos personagens do Antigo Testamento desfilavam pela abóbada da capela, de 40 metros de largura por 13 de altura. Figuras dramáticas moviam-se em multidão, umas sentadas, outras que flutuavam. Michelangelo retratava Deus com um corpo vigoroso e retorcido, retesado no ato de criação do universo, a dar o toque vivificador, com a ponta do dedo, em Adão, primeiro ser vivente. Assim, os afrescos traziam os episódios do Gênesis, “A Criação”, “O Pecado” e o “Dilúvio”, acompanhados dos profetas. Nos quatro ângulos, reproduzia a libertação de Israel: a “Serpente de Bronze”, os “Triunfos de David”, “Judite” e “Ester”. Júlio II foi o primeiro a ter a visão de um esplendor criativo de beleza e genialidade jamais pensadas até então, imagem que conquistaria milhões de visões por mais de cinco séculos, atraindo e fascinando pessoas de todas as raças, credos e ideologias.

Esplendor nas Estátuas dos Mausoléus

Após quatro anos de sofrimentos, Michelangelo pôde, finalmente, sentir-se um vencedor diante da excepcional obra da Capela Sistina. Pôde respirar um pouco e descansar o corpo e a sua angústia existencial.
Mas o descanso durou pouco. Com a morte de Júlio II, em fevereiro de 1513, o artista assinou um contrato com a família do papa para executar, em sete anos, o antigo projeto do seu mausoléu. A obra final teria 32 grandes estátuas, constituindo o projeto que Michelangelo mais amou fazer. Logo criou a primeira estátua, “Moisés”, em cujos traços insinuou a fisionomia do papa. “Moisés” é considerada a mais perfeita obra de escultura de Michelangelo. Além desta figura, esculpiu para o mausoléu de Júlio II os dois célebres “Escravos”. Infelizmente a obra ficou inacabada. Sobre ela, Michelangelo falou, quando tinha 67 anos de idade: “Acho que perdi toda a minha juventude ligado a ela.
Michelangelo voltaria a ser chamado pelo papa Clemente VII, para um novo trabalho grandioso, construir a capela e a tumba dos Médici, em Florença. Para executar o trabalho, receberia uma pensão três vezes superior a que ele pedira. Assim, de 1523 a 1531, Michelangelo esculpiu as estátuas de Juliano e Lourenço de Médici, que alegoricamente representavam a Ação e o Pensamento, e as quatro sombrias estátuas de base, “O Dia”, “A Noite”, “A Aurora” e “O Crepúsculo”. Durante este período, Michelangelo interrompeu o trabalho em 1527, quando eclodiu uma guerra contra os Médici, em Florença e o artista ajudou os rebeldes, projetando a defesa da cidade, atitude que o fez fugir para Veneza. Restabelecida a paz, foi perdoado por Clemente VII, e voltou a trabalhar nas estátuas com furor. As obras do mausoléu dos Médici são magníficas, elas refletem a amargura, a perda da juventude e a melancolia calcada na alma do artista ao longo dos anos, das perdas e dos amores diluídos nas mentiras dos preconceitos.

O Juízo Final de Michelangelo

Com a morte de Clemente VII, em 1534, Michelangelo deixou Florença. O ódio que o Duque Alexandre de Médici lhe dedicava, impediria-o de retornar a Florença, sem que jamais pudesse rever à terra natal.
Após vinte anos de ausência, Michelangelo regressou a Roma, onde viveria até a sua morte. Era um homem de quase 60 anos, longe da juventude e sem saúde. Vivia amargurado, numa solidão cortante, sem a vitalidade e o prazer que dantes retirava da criação da sua arte.
Em Roma, travou amizade com Tommaso dei Cavalieri e com a Marquesa Vittoria Colonna, que lhe deu um certo alento diante da solidão à qual agarrara-se com fervor. Foi neste período que aceitou a oferta do papa Paulo III, que o nomeou, em 1535, arquiteto-chefe, escultor e pintor do palácio apostólico, passando a idealizar um novo planejamento para a Colina do Capitólio, em Roma, obra que jamais concluiu.
Sob o pontificado de Paulo III, Michelangelo pintou, entre 1536 e 1541, um grande afresco na parede do altar da Capela Sistina, o “Juízo Final”. Na obra, um belo e vigoroso Cristo aparece no plano superior, ladeado pelos escolhidos, trazendo consigo a vingança implacável contra os seus inimigos, Maria, assustada, não ousa a contemplar a cena; os anjos travam uma luta imarcescível contra os condenados. No plano inferior, os que não se salvaram caem nos domínios infernais. Todos os movimentos da humanidade estão retratados neste afresco, feito para ser um retrato religioso, mas que traz um sabor profano, já que o autor só pintou nus. Este fato causou tanta polêmica, que se chegou a cogitar a destruição da obra, pensada pelo papa Paulo IV. Felizmente, o pontífice decidiu-se por mandar o pintor Daniel de Volterra obscurecer os órgãos dos nus mais ousados. Só em 1993, quando o afresco foi restaurado, que a nudez original voltou a imperar, deixando algumas figuras ainda cobertas como registro histórico.
Cansado e envelhecido, Michelangelo continuou a esculpir obras, mesmo já avançado na idade. Durante toda a vida foi perseguido pela família de Júlio II, que através de inúmeros contratos assinados, exigiam o término do seu mausoléu. A obra, jamais acabada, consumiu anos do artista.
No fim da vida, Michelangelo voltou-se para o misticismo religioso, negando o mundo e o profano, perdidos no tempo, como a sua juventude. Passou os últimos anos a dedicar-se às cenas da paixão de Cristo. Aos 88 anos, elaborava uma nova “Pietá”, mas uma doença prendeu-o definitivamente à cama, onde se iria definhar. No leito de morte, ditou com absoluta lucidez, um comovente testamento, pedindo para regressar, ainda que morto, à Florença, sua terra natal, inesquecível palco da sua juventude e aprendizado. Em 18 de fevereiro de 1564, Michelangelo doou o seu corpo à terra e a alma a Deus, morrendo em Roma. Homem feio, de rosto desfigurado, Michelangelo reproduziu externamente a beleza que tinha interiormente, transformando as dores humanas em um idílio visual. Além de pintor e escultor, era um poeta, registrando em seus poemas uma sublime linguagem homoerótica. Viveu imerso nas angústias e no trabalho, próximo da morte registrou em um poema: “Na verdade, nunca houve um só dia que tenha sido totalmente meu”. Os dias de genialidade criativa de Michelangelo foram doados à humanidade, através da beleza universal das suas obras.


ZEUS, PAI DOS DEUSES E DOS HERÓIS

junho 26, 2009
Ao derrotar os Titãs e os Gigantes, destronando o pai Cronos (Saturno), Zeus (Júpiter), tornou-se o senhor absoluto do mundo e dos deuses. O seu reinado, comandado do alto do Olimpo, pôs fim à desordem do universo, antes governado pelas divindades primordiais, que traziam as forças desordenadas, como os vulcões e os terremotos, ou como a de Cronos, o deus do tempo, que a tudo devora e destrói. Zeus faz triunfar a ordem e a razão, que equilibra os instintos selvagens e as emoções desenfreadas dos deuses primitivos.
Zeus é o rei do Olimpo e dos deuses. Na sua relação de divindade com o homem, é quem abre a ele o caminho da razão, é quem passa para a humanidade o ensinamento e a descoberta do verdadeiro sentimento, obtido através da dor, da justiça e do merecimento. Zeus compadece-se com os sofrimentos dos mortais, mas não se deixa levar por eles, pois como senhor dos deuses e dos homens, mesmo quando magoado pelas emoções, não pode deixar de refletir a imagem da verdadeira justiça e da razão. Zeus não interfere quando os mortais ou os deuses faltam com a razão, mesmo que lhes sejam especiais.
Zeus é considerado o pai dos deuses e dos homens. Mesmo casado com Hera (Juno), sua irmã , ciumenta deusa que não lhe perdoa as traições, pois ela representa a visão de uma Grécia que se tornava monogâmica; Zeus como senhor absoluto do universo, trai e fecunda deusas, ninfas e mortais. Mais do que o sentido da fidelidade, Zeus obedece à função de fecundador, de pai de uma extensa prole de deuses e de heróis. Na Grécia antiga, as principais cidades contavam em suas crônicas históricas e nas lendas, que os seus fundadores, na maioria, eram filhos de Zeus.
Em Roma, Zeus foi relacionado a Júpiter, senhor absoluto dos deuses e protetor dos cônsules e dos imperadores. Assim como o Zeus grego, também ele é o pai da maioria dos deuses olímpicos, representante da razão e da ordem. É o deus da terra, dos raios e dos trovões, demonstrando assim, ser a mais poderosa de todas as divindades, sejam do Olimpo, dos mares ou do Érebo. Zeus é o pai do poder dos homens e das suas cidades.

Zeus Escapa de ser Devorado por Cronos

As lendas mais antigas apontam Zeus como o mais jovem dos crônidas (filhos de Cronos). Diante de uma profecia de sua mãe, a deusa Gaia (Terra), de que um dos filhos usurpar-lhe-ia o trono, Cronos vivia atormentado. Todas às vezes que Réia (Cibele), sua esposa, dava à luz a um filho, ele devorava-o logo a seguir.
Réia sofria com a perda dos filhos, cinco deles já tinham sido devorados pelo marido. Para proteger o sexto filho que o seu ventre gerava, Réia pediu auxílio a Gaia, que lhe ajudou a engendrar um plano. Momentos antes do parto, a deusa iludiu a vigilância de Cronos, indo dar à luz em uma caverna distante. Nasceu-lhe Zeus, que foi entregue às Ninfas e aos Curetes, jovens sacerdotes de Réia.
Ao voltar para junto do marido, a deusa pôs em prática o plano de Gaia. Apanhou do chão uma pedra, envolveu-a em grossas faixas, entregando-a para Cronos, como se fosse o filho. Na voracidade de devorar aquele que lhe poderia usurpar o poder sobre os deuses, Cronos engoliu a pedra a pensar ser o filho recém nascido. Zeus estava salvo, e voltaria para cumprir a profecia de destronar o pai.
O local de nascimento de Zeus segue duas vertentes da lenda, a mais corrente é a de que teria nascido na ilha de Creta, sendo citada ora no monte Ida, ora no Aégon ou ainda, no Dicteu. A segunda vertente aponta para a Arcádia como o local de nascimento de Zeus. Quanto ao local no qual cresceu e foi educado, todas as lendas convergem para Creta, onde o deus viveu aos cuidados dos sacerdotes da mãe, os Curetes, e das Ninfas.
Quando adulto, Zeus partiu para o confronto com o pai, disposto a cumprir a profecia que lhe apontava como o futuro rei dos deuses. O jovem imortal levou consigo um frasco com uma beberagem, preparada por Métis (a Prudência), que tão logo chegasse às estranhas de Cronos, provocar-lhe-ia uma convulsão tão profunda, obrigando-o a vomitar os filhos devorados.
Diante de Cronos, Zeus impôs a sua força, obrigando o pai a ingerir a bebida mágica. As entranhas de Cronos foram estremecidas, e de dentro dele surgiram os filhos devorados quando nascidos. Estavam todos vivos e adultos. Aos olhos de Zeus desfilaram os irmãos, a casta Héstia (Vesta), o taciturno Hades (Plutão), a loira Deméter (Ceres), o impetuoso Poseidon (Netuno), e a bela Hera (Juno). Segundo algumas versões, Hera, assim como Zeus, também tinha sido poupada de ser devorada pelo pai e criada aos cuidados de Tétis e das Horas.

Zeus Torna-se o Senhor dos Deuses e dos Homens

A partir da libertação dos crônidas das entranhas do pai, a luta de Zeus pelo poder começou a ser configurada. Poseidon e Hades juntaram-se ao irmão na imensa guerra gerada entre os deuses. Astuciosamente, Zeus desceu ao Érebo e libertou os Ciclopes, hábeis forjadores das armas, e os Hecatônquiros, monstros de cem braços, todos aprisionados por Cronos. Do lado de Cronos ficaram os Titãs e os Gigantes.
Os Ciclopes prepararam as armas dos desafiantes de Cronos. Para Poseidon fabricaram o tridente, para Hades o capacete mágico que o fazia invisível e para Zeus, o raio. A seguir, foi travada uma guerra violenta e sangrenta pelo poder, que duraria dez anos. Ao lado dos irmãos, Zeus destronou Cronos. Ao fim da guerra, Cronos e os seus irmãos, os Titãs, juntamente com os Gigantes, foram encerrados, para sempre, no Érebo.
A vitória de Zeus trouxe a paz entre os deuses e a harmonia ao universo. As divindades que traziam consigo as forças da desordem tinham sido vencidas. Zeus deflagrara a era da razão e da justiça para os homens e para os deuses. Após a vitória sobre Cronos, o poder foi dividido entre os três irmãos, a Poseidon coube o reino dos mares; a Hades o reino dos mortos, e a Zeus, o reino do céu e da terra, sendo responsável pelos fenômenos atmosféricos.
Com a evolução do mito, Zeus passou a ser descrito como o primogênito de Cronos, condição que lhe conferia o poder absoluto, assim como acontecia aos reis das cidades gregas. O primogênito, herdeiro legítimo, tinha os poderes ilimitados. O mesmo acontecia com o senhor dos deuses. Quando Homero (século IX a.C.) chamou Zeus de “pai dos deuses e dos homens”, descreveu-o como o pai dos gregos e do poder que se estabelecia através da evolução daquela civilização, que evoluíra as suas aldeias para imponentes cidades, que originaram os estados. A autoridade das cidades era exercida pelo rei, que impunha a sua soberania aos núcleos de famílias, que por sua vez eram submissos à figura do pai. Assim, Zeus representava a autoridade de rei dos deuses e dos homens, e dos pais, em uma civilização patriarcal. Como o deus absoluto, era ele quem estabelecia a disciplina e a ordem entre os súditos, protegendo-os e distribuindo a justiça. As funções de Zeus confundiam-se com as dos próprios reis de toda a Grécia, excetuando os seus poderes como divindade.

Zeus, Cultos e Imagens

Na Grécia, Zeus era o deus por excelência, era o pai e o rei, ambos absolutos. Por ser o altíssimo, o senhor de todos os deuses, era cultuado no alto das montanhas. Os templos erigidos em sua honra estavam no monte Olimpo, na Macedônia; no monte Ida, em Creta; no Helicão, na Beócia; nos montes Parnes e Himeto, na Ática; no Pélion, na Tessália; no Pangeu, na Trácia e, no Liceu, na Arcádia. O mais antigo santuário de Zeus estava situado em Dodona, no Epiro, encontrando-se ali, o mais famoso oráculo do deus.
No culto à divindade, vários epítetos foram atribuídos ao senhor do Olimpo, entre eles, Zeus Xênios, que protegia os estrangeiros, os mendigos, os desterrados e os aflitos. É o Zeus Xênios que é louvado por Homero em “A Odisséia”. Era o deus que condenava os que não sabiam ser hospitaleiros, os impiedosos e os implacáveis. Zeus Herkeios era o protetor das casas e das cidades, tendo a sua força sobre o poder pátrio. Zeus Ktésios era quem trazia aos devotos a prosperidade e maiores riquezas.
Zeus tinha a sua imagem representada com a fronte adornada por cabelos longos e ondulados; rosto majestoso, de homem maduro, cingido por uma longa barba crespa. A sua imagem foi inspirada na famosa estátua de Fídias (500?-432? a.C), que além das características descritas, trazia 13 metros de altura; o deus aparecia sentado em um trono feito de ouro, ébano, bronze e marfim; na fronte trazia uma coroa de ramos de oliveira como adorno; na mão direita segurava a vitória; na esquerda portava um cetro encimado por uma águia. A estátua de Fídias serviu como modelo para representações futuras, que costumavam mostrar Zeus envolto em um grande manto, com o braço direito e o peito descobertos. Nas imagens mais primitivas do deus, ele era representado nu, sem o manto real.

Pai de Deuses e Heróis

Ao tornar-se o senhor do Olimpo, Zeus tomou a irmã Hera como esposa. Com ela divide o reinado. Hera representa a mulher fiel, ciumenta e pouco tolerante com as amantes do marido. Do casamento real nasceram Ares (Marte), o deus da guerra, Hebe, símbolo da juventude eterna e, Hefestos (Vulcano), o deus do ferro e do metal, que nasceu disforme e coxo, uma alusão dos gregos aos casamentos entre irmãos e aos filhos geneticamente prejudicados com esta união.
Limitado por apenas três filhos no casamento, Zeus representa a realeza consumada pelo poder pátrio. Se a força vem de tal poder, ser pai é mais importante do que ser fiel a Hera. A força criadora do deus dos deuses faz com que se una às diversas mulheres, mortais ou imortais, fecundando-as com a sua prole divina e especial. O mito fecundador de Zeus fazia com que as cidades mais importantes da Grécia tomassem como patronos ou fundadores um filho de Zeus.
Mas a função procriadora de Zeus não é aceita por Hera. Impossibilitada de castigar o marido, devido à força de deus supremo, Hera vinga das amantes e dos filhos bastardos. Zeus assume para si não só o ímpeto da paixão, como o dever de proteger as amadas, assim como a sua imensa prole, da ira vingativa de Hera. Para que não seja reconhecido pela mulher enquanto ama e fecunda as amantes, o senhor do Olimpo assume várias formas e disfarces. Com a bela Dânae, ele assumiu a forma de chuva de ouro, quando a amou e fecundou, gerando o herói Perseu. Com Europa, o deus assumiu a forma de um touro, raptando a donzela fenícia, levando-a para Creta, onde, sempre usando a forma animal, amou-a e fecundou-a, gerando com ela três filhos, entre eles o famoso rei Minos. Com Leda, Zeus assumiu a forma de um cisne, gerando os gêmeos Helena, a mulher mais bela da Grécia, responsável pela Guerra de Tróia, e Pólux, que ao lado de Castor, foi transformado na constelação de Gêmeos. Com Antíopa, o deus transformou-se em um sátiro, gerando os gêmeos Anfião e Zeto. Com a ninfa Egina, Zeus transformou-se em uma labareda, gerando Éaco, que era a imagem da piedade e da justiça.
Vale ressaltar que os filhos de Zeus fora do casamento com Hera, foram mais brilhantes do que os legitimados pela união. Entre os deuses gerados com as amantes estão os gêmeos Apolo e Ártemis (Diana), Dioniso (Baco), Hermes (Mercúrio), Perséfone (Prosérpina), Atena (Minerva); os heróis Héracles (Hércules), Dárdano, Iasião, Épafo, Radamanto, Sarpedão, Lacedêmon, Britomártis, Argo, Pelasgo e Tântalo; alem das Musas, Graças, Horas, Moiras e Astréia.

Zeus é Assimilado a Júpiter

O mito de Zeus chegou a Roma muito antes da cidade ser transformada na capital de um grande império, e da sua expansão pelo mar Mediterrâneo. Muito antes de Roma conquistar a Grécia, assimilando a cultura helênica. Os romanos cultuavam os seus deuses locais, quando em contacto com as divindades helênicas, essas entidades locais passaram a ser identificadas com as dos gregos.
Zeus representava a figura do deus pai, do deus supremo e absoluto, divindade existente em todas as mitologias indo-européias, portanto era fácil assimilá-lo em diversas civilizações antigas. Em Roma teve a sua identificação local com Júpiter, antiga entidade do Lácio.
O mito mais antigo de Júpiter no mundo latino era o de Júpiter Latial, divindade de origem obscura, que tinha o seu santuário erguido nos montes Albanos. Júpiter Latial teria dado origem ao mito de Júpiter Capitolino, velha entidade da região do Lácio. Os carvalhos do monte Capitólio eram consagrados a Júpiter Capitolino. Foi este Júpiter que se identificou com o Zeus grego.
Senhor dos deuses romanos, Júpiter estendia o seu poder pátrio aos poderosos da cidade, tido como protetor dos cônsules durante a República Romana. Era costume que um cônsul dirigisse preces ao deus quando assumia o poder. Júpiter tornou-se esplendoroso com o fulgor do Império Romano. Quanto mais Roma atingia o seu apogeu como império do mundo, mais a divindade de Júpiter assumia a imagem do imperador, refletindo o retrato de cada um deles. Ao assimilar-se à imagem do imperador, Júpiter perdeu grande parte do seu sentido como divindade, passando a ser descrito pelos poetas romanos como um deus impetuoso e apaixonado, tornando-se um perseguidor volúvel de ninfas e mortais.
Os cultos a Júpiter em Roma, eram responsabilidade dos sacerdotes feciais, que tinham a sua autoridade suprema na figura do flamine dialis. O casamento de um flamine com uma flamínica, a sacerdotisa da deusa Juno, mulher de Júpiter, jamais poderia ser dissolvido. Tal casamento entre sacerdotes, simbolizava a união de Júpiter e Juno na terra.

 


JAMES BOND – DAS PÁGINAS LITERÁRIAS PARA O CINEMA

junho 25, 2009
Há quase seis décadas que a personagem fictícia James Bond, agente secreto britânico, conhecido pelo código 007, vem conquistando legiões de fãs pelo mundo inteiro. Criado pelo escritor britânico Ian Fleming, James Bond surgiu pela primeira vez, na novela “Cassino Royale” (Casino Royale), publicada em 1953. Em 1962, James Bond chegou ao cinema, através do filme “O Satânico Dr. No” (Dr. No), transformando-se em um ícone das galerias dos heróis do mundo contemporâneo. Desde então, as suas aventuras jamais deixaram as telas de cinema, sendo interpretado por diferentes atores.
O sucesso literário e cinematográfico transformou a personagem em uma grande franquia. Mesmo após a morte de Ian Fleming, as suas aventuras continuaram a ser escritas por vários escritores. No cinema , a franquia continua a produzir grandes sucessos, sem arranhar a imagem do agente secreto, ou mesmo levá-la ao desgaste, façanha só possível pela genialidade criativa dos roteiros e a renovação constante dos intérpretes.
James Bond fascina pela inteligência e astúcia, charme carismático, aventuras perigosas e exóticas, pelas conquistas às mais belas mulheres. De humor sagaz e cavalheirismo incondicional, James Bond é fruto da Guerra Fria. Suas aventuras eram construídas na eterna luta ideológica entre o ocidente e a extinta União Soviética. Cabia a ele, sempre a serviço da rainha da Grã-Bretanha, de quem era súdito devotado, salvar o seu país e o mundo dos tentáculos dos espiões vindo do leste, do perigo comunista sobre o mundo capitalista e, principalmente, da paranóia iminente que assolava a mente de todos, trazendo o medo de uma guerra nuclear entre as potências antagônicas que desenharam os campos de batalhas da Guerra Fria. Por várias vezes James Bond, sozinho, salvou o mundo de uma catástrofe nuclear ou de tramas de espiões sem escrúpulos. Herói absoluto, deveu-se a ele a sobrevivência dos sonhos burgueses do mundo ocidental, e mesmo, da sobrevivência de regimes seculares, como o do Império Britânico.
Com a queda do muro de Berlim, em 1989, e o fim da Guerra Fria, James Bond parecia destinado a pedir a aposentadoria, e ser esquecido diante da globalização. O cinema levou quase meia década para criar fôlego e fazer dele um sobrevivente da extinção da Guerra Fria. Após a queda do regime dos países do leste europeu, 007 só voltaria às telas em 1995; revigorado e pronto para salvar o mundo dos novos inimigos, os terroristas, os detentores das tecnologias daninhas, enfim, os sucessores dos comunistas. Ainda há muitos perigos que ameaçam a segurança da existência humana no planeta, o mundo está longe de ser perfeito, e 007, com a sua sedução e charme, continua a aparar as arestas dessas imperfeições, salvando sozinho, o planeta, os seus governos e habitantes.

James Bond Torna-se o Agente 007

A saga de James Bond começou através de livros de bolsos, da autoria de Ian Fleming, publicados na Grã-Bretanha na década de 1950. Desde a publicação de “Cassino Royale”, em 1953, as aventuras do agente secreto caíram no gosto dos britânicos, fazendo muitos adeptos desta leitura.
Em seus livros, Ian Fleming descrevia James Bond como um homem viril, moreno, alto e de porte atlético, olhar penetrante e de carisma sedutor. Personagem contemporâneo, tinha entre 33 a 40 anos (quando do lançamento do livro, em 1953), o que se deduz ter nascido em 1920. As datas dão o perfil da personagem de Fleming, nascido após a Primeira Guerra Mundial, passará a infância no prelúdio de paz entre as guerras. Desaguou a juventude na Segunda Guerra Mundial, conflito que deixou profundas feridas na Grã-Bretanha. O pai trabalhava para um fabricante de armas, o que revela os meandros sombrios antes da guerra. Além de vender armas, o pai de Bond gostava de aventuras, sendo morto em um acidente, quando escalava montanhas com a Sra. Bond, uma mulher nascida na Suíça. A origem escocesa do pai de Bond, reza a tradição, teria sido uma homenagem de Fleming a Sean Connery, o primeiro ator a interpretar James Bond no cinema, nascido na Escócia.
Órfão aos onze anos, James Bond passaria por várias escolas tradicionais da Inglaterra, tendo alistado-se na Marinha Real durante a Segunda Guerra Mundial. Este fato reforça a data do seu nascimento citada acima. Será na marinha que Bond ascenderá ao posto de comandante. A passagem de Bond pela Marinha Real não deixa de ser uma lembrança romanceada da vida do próprio Ian Fleming, que teve as carreiras de jornalista e diretor interrompidas pela guerra, fazendo-o parte da reserva de voluntários da Marinha Real, em 1939. Mais tarde, exerceu um cargo administrativo na Inteligência Naval, onde realizava, algumas vezes, missões de campo, como invadir locais para fotografar documentos importantes. Tais experiências foram fundamentais para inspirar Fleming na criação da personagem de James Bond.
Uma outra peculiaridade que diz respeito a James Bond, seria a sua iniciação sexual, aos dezesseis anos de idade, quando perdeu a sua virgindade em Paris.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo foi divido entre duas potências, as ocidentais capitalistas lideradas pelos Estados Unidos e Europa Ocidental, e as comunistas, lideradas pela União Soviética. É neste período que James Bond passará a trabalhar para o Serviço Secreto de Inteligência Britânico (SIS, em inglês), fazendo parte dos serviços de espionagem da Sexta Divisão do Diretório da Inteligência Militar, o MI-6. Feito agente secreto, teve como primeiras tarefas o assassínio de inimigos da Inglaterra, o que lhe deu a designação permanente de agente 00, com licença para matar. Como era o sétimo agente, passou a ser conhecido pelo código 007.

Paralelo Entre James Bond e Ian Fleming

O nome James Bond não foi uma criação original da mente genial de Ian Fleming. Na biografia do autor, reza a tradição que James Bond era como se chamava o autor de “Birds of the West Indies”, livro predileto da esposa de Ian Fleming, e, que falava sobre a ornitologia dos anos 1950. No filme “Um Novo Dia Para Morrer” (Die Another Day), de 2002, há uma alusão ao fato, James Bond (Pierce Brosnan), em uma cena, segura o livro nas mãos.
Após o lançamento de “Cassino Royale”, em 1953, Ian Fleming escreveu anualmente, até a sua morte, quatorze livros tendo James Bond como protagonista, sendo doze novelas completas e dois livros de contos.
Muitas evidências fazem da personagem uma versão romanceada da vida do autor, acrescida de outras pessoas conhecidas. Nomes que se tornaram ícones do universo de James Bond são comuns na biografia de Fleming. Um exemplo era a sua casa na Jamaica, onde se refugiava para escrever os livros com as aventuras de 007, chamada de “GoldenEye”, nome utilizado pelo cinema no filme de 1995, que marcou a estréia de Pierce Brosnan como o quinto James Bond.
Ter um destino aventureiro sempre acompanhou a vida de Ian Fleming. Não se furtou às aventuras quando saiu da marinha, escalando montanhas, nadando com Jacques Cousteau, esquiando, sendo repórter e organizando expedições com amigos para lugares exóticos. Aventuras refletidas nas páginas que desvendavam 007, e as suas missões ao redor do mundo, em lugares exóticos, perigosos e paradisíacos. De Paris à Índia, de Tóquio ao Azerbaijão, passando por ilhas vulcânicas, James Bond percorreu o mundo para viver as suas aventuras, assim como o seu criador, Ian Fleming.
O James Bond dos livros de Ian Fleming traz uma atmosfera mais obscura, com uma visão mais realista da vida, distanciando-se da petulância e charme espontâneo da personagem vista no cinema. Traz um corpo atlético, complementado com as suas perícias em artes marciais. O Bond das páginas dos livros gosta de beber vodka e martini batidos, jamais mexido; não dispõe das grandes armas e dos complementos tecnológicos e científicos dos filmes, utilizando principalmente, a inteligência; é um exímio atirador e, apesar de não gostar de matar, não se sente intimidado ou arrependido quando o tem que fazer, cumprindo sem traumas ou complexos, às missões em que tem a licença para matar.

Os Livros de James Bond Escritos por Outros Autores

Foi na sua casa na Jamaica, que Fleming escreveu “Cassino Royale” e todos os livros com as aventura de Bond. Ali, retirava-se uma vez por ano para criar uma nova aventura do agente secreto mais famoso do mundo. Assim seria até 1964, quando Fleming morreu, vitimado por um ataque cardíaco. Tinha deixado doze livros. Após a sua morte, seus herdeiros publicaram dois livros sobre James Bond, “O Homem com Revólver de Ouro” (1965) e o livro de contos “Octupussy and The Living Daylights” (1966).
Com a morte de Ian Fleming, 007 tornou-se uma personagem de franquia. Seus herdeiros deram licença para que outros escritores criassem novos livros com as aventuras de James Bond. Assim, Kingsley Amis, amigo de Fleming, escreveu, sob o pseudônimo de Robert Markham, “Colonel Sun”, em 1968. Em 1973, John Pearson fez um livro como se fosse uma biografia do agente secreto, “James Bond: The Authorised Biography of 007”. John Edmund Gardner tomaria para si a missão de manter as aventuras de Bond, escrevendo quatorze livros de 1981 a 1996, aposentando-se por problemas de saúde. Raymond Benson deu seqüência à saga, escrevendo seis novelas e três contos, publicados em nove livros, de 1997 a 2002. Em 2008, devido às comemorações do centenário do nascimento de Ian Fleming, foi autorizado um novo livro sobre James Bond, escrito por Sebastian Faulks, “A Essência do Mal”, lançado em maio de 2008.

Os Vilões e os Aliados

O mundo que James Bond transita é complexo, movido pelos meandros dos jogos políticos e da espionagem estratégica. A vida do agente secreto é entrelaçada às missões e a diversas personagens, entre elas os aliados de trabalho, os mais temíveis vilões e as mais belas mulheres.
Se James Bond é um espião especial, além do comum, os seus inimigos ou aliados, não lhe ficam atrás. Entre os vilões mais expressivos, inesquecíveis do imaginário de 007, podemos destacar:
Ernst Stavro Blofeld – Líder da organização SPECTRE (Executiva Especial para Contra-Inteligência, Terrorismo, Vingança e Extorsão), sonha em dominar o mundo. É um homem calvo, com uma grande cicatriz na face. Apesar de uma fisionomia invulgar, Blofeld é mestre em disfarçar o rosto com maquilagens, máscaras, e até cirurgias plásticas. É reconhecido pelo seu apego a um gato persa. Foi este vilão o responsável pela morte de Tereza di Vicenzo, única mulher de James Bond.
Dr. Julius No – Cientista especializado em bombas atômicas, não possui as mãos, perdidas em um acidente.
Auric Goldfinger – Um dos mais cruéis vilões da saga de 007. É um reles contrabandista internacional e, simultaneamente um membro da SMERSH, uma agência de espionagem russa. Ao contrário dos agentes ocidentais, fiéis ao governo do seu país, os vilões comunistas das aventuras de Bond vendem a fidelidade à pátria pelo poder e glória do dinheiro. Goldfinger é obcecado por ouro e tem como comparsa o terrível Oddjob.
Max Zorin – É um perverso psicopata criado com a engenharia genética.
Dente de Aço – Um dos inimigos mais exótico e perigoso, dono de uma força incomum e ferocidade exacerbada. Traz dentes de aço na boca.
006 – Antigo agente do MI-6, que se vendeu para os inimigos da Rainha, traindo o seu país e os companheiros. Tornou-se um grande inimigo de 007.
Deixando os inimigos, vamos encontrar diversos aliados, cada um mais especial do que o outro, dotados de inteligência e segurança complementar, que ajudaram Bond a concretizar positivamente as suas missões. Entre os principais aliados estão:
M – Chefe do MI-6. Durante as aventuras de Bond, ele já trabalhou com vários Ms, que já foi um homem, outras vezes uma mulher. Trazem sempre o mesmo perfil, admiram James Bond, apesar de achá-lo frívolo e irresponsável em sua vida e hábitos pessoais.
Q – Chefe do Escritório Q, a divisão de pesquisa, tecnologia e desenvolvimento do MI-6. Q era o responsável pelos artefatos geniais que James Bond utilizava em suas missões. Ele sempre reclamava ao agente, para que não estragasse os seus sofisticados, caros e originais experimentos, no que nunca foi atendido. Durante anos Q foi único, só sendo substituído após a sua morte, por seu assistente R.
Money Penny – Assistente direta de M, é uma mulher recatada, embora fascinada por James Bond e por suas aventuras com as mulheres. Está sempre a duelar e flertar verbalmente com 007, mas nunca ultrapassa os limites de colega de trabalho do agente, exercendo com eficácia as suas obrigações profissionais.
Felix Leiter – Principal ajudante de Bond em suas missões de campo, tendo prestado os seus auxílios ao agente em cerca de oito missões.

James Bond no Cinema

Quando saltou das páginas dos livros para o cinema, James Bond tornou-se a personagem mais duradoura e de sucesso da sétima arte, constituindo uma mítica com várias tradições, exigidas sempre pelos milhões de expectadores que formam o seu público por todo o mundo.
A primeira aparição do agente secreto 007 diante de uma câmera foi numa fracassada série de televisão, que não passou do piloto. “Cassino Royale”, baseado no livro de Ian Fleming, foi produzido em 1954, pela CBS, tendo Barry Nelson como James Bond.
Em 1962, Ian Fleming teve o seu agente secreto adaptado para o cinema. Produzido por Harry Saltzman e Albert Broccoli, “O Satânico Dr. No” (Dr. No), estreou com grande sucesso. Trazia Sean Connery como James Bond, a personagem colar-se-ia a pele do ator, estigmatizando-o por quase uma década. Os produtores eram donos da produtora EON (Everything or Nothing), mediante o sucesso do primeiro filme, tornaram-se detentores dos direitos cinematográficos de quase toda a obra escrita por Ian Fleming. Os filmes de James Bond produzidos pela EON são os únicos considerados oficiais. Apenas três filmes não foram produzidos por esta produtora, sendo classificados como não oficiais: “Cassino Royale”, piloto para a televisão, feito pela CBS. Em 1954; “Cassino Royale”, uma paródia de 1967, e, “Nunca Mais Outra Vez”, de 1983, refilmagem de “007 Contra a Chantagem Atômica”.
Albert Broccoli e Harry Saltzman já são falecidos. Em 1975, Saltzman abandonou a franquia dos filmes. A filha de Albert Broccoli (falecido em 1996), Barbara Broccoli, e o seu meio irmão, Michael G. Wilson, passaram a produzir os filmes de James Bond a partir de 1995.
Desde a estréia no cinema, James Bond foi interpretado, nos filmes oficiais, por seis atores diferentes: Sean Connery (1962-1971, com intervalo em 1969), atuou em seis filmes (o sétimo, em 1983, não pertence aos filmes oficiais).; George Lazenby (1969), atuou em apenas um filme; Roger Moore (1973-1985), atuou em sete filmes, sendo o que ficou mais tempo a viver a personagem; Timothy Dalton (1987 – 1989), fez apenas dois filmes; Pierce Brosnan (1995-2002), atuou em quatro filmes; e, Daniel Craig, interpretando o papel desde 2006, já com dois filmes feitos. De Sean Connery a David Craig, cada ator adaptou a imagem e o corpo de James Bond ao tempo em que o interpretaram, sem jamais perder a essência do seu charme sedutor.
Houve ainda, a atuação de David Niven, em “Cassino Royale”, como James Bond, em 1967, produção que não faz parte dos filmes oficiais. Ironicamente, David Niven era o ator que Ian Fleming queria para interpretar a personagem por ele criada, devido ao seu porte de eterno cavalheiro.

Características Imprescindíveis dos Filmes de James Bond

Quando lançado, em 1962, “O Satânico Dr. No”, o primeiro filme de James Bond, teve uma aceitação instantânea. Aconteceu no ano em que a Guerra Fria quase chegou a uma catástrofe nuclear, com a crise deflagrada entre os Estados Unidos e a União Soviética por causa dos mísseis de Cuba. Nada mais oportuno do que um filme no qual o herói salvava o mundo do perigo atômico. Sean Connery, até então, um ator pouco conhecido, foi transformado em um ícone do cinema dos anos 1960.
A euforia causada pelo primeiro filme, moldou as características que os todos os outros viriam ter, tornando-se imprescindível sofisticá-las, sem nunca abandoná-las.
A primeira marca da filmografia de 007 vinha logo na abertura do filme, com uma vinheta inovadora, que apresentava dentro de um círculo James Bond de perfil, caminhando tranqüilamente, a vestir elegantemente um terno e a trazer um chapéu. De repente ele saca de uma arma, olha de frente e atira, sendo a imagem coberta por um efeito gráfico de uma cor vermelha. Esta vinheta persiste até os dias atuais. George Lazenby é o único que ao virar-se de frente, ajoelha-se e atira. James Bond perde o chapéu em 1973, com Roger Moore. Pierce Brosnan caminha mais apressado, fica totalmente ereto, sem arquear as pernas quando atira. O desenho gráfico da vinheta alterou-se significativamente com Daniel Craig.
Um filme de James Bond traz sempre uma ação acelerada, que após a vinheta, inicia-se veloz, com perseguições e saltos ousados, mostrando 007 a safar-se de um grande perigo, antes de desaguar na bela canção de apresentação dos créditos. O agente secreto salta do alto de montanhas, dos prédios, combate corpo a corpo, escapa aos tiros, tem pontaria certeira quando acossado pelo inimigo, com saídas espetaculares de último instante, ajudado por um artefato tecnológico de Q (ou R), dado logo no início. Combates mortais, perseguições de automóveis, barcos ou aviões, tudo serve para manter a tradição da ação. Bond é capaz de destruir toda uma cidade dentro de um tanque, e sair penteado, elegante, sem um arranhão ou poeira que lhe venha a ofuscar o charme.
A beleza visual reflete-se nos ternos elegantes que o agente usa, nos carros de luxo que ele dirige, que podem ser uma Ferrari ou uma Lótus Esprit. Dirige por estradas sinuosas e de belas paisagens, como as da riviera francesa e italiana, ou por exóticos locais tropicais. Freqüenta luxuosos hotéis e cassinos, assim como praias de raras belezas. Esteticamente, tudo é belo nos filmes de James Bond, das roupas ao agente, dos locais às mulheres. Só os vilões são feios, mas exóticos.
James Bond não se preocupa com a política ou com as ideologias do mundo, tem apenas que cumprir a missão para a qual foi destinado, fazendo-o com um humor sofisticado e irônico, fundamental para a composição do seu caráter. É sedutor e lânguido, causando impacto nas mulheres que conquista, com insinuações sexuais verbais, sem nunca ter cenas mais quentes de sexo e nudez, tudo é sugerido, jamais explorado explicitamente.
Além dos vilões exóticos e aliados eternos, um verdadeiro filme de James Bond traz a sua opositora, aquela que lhe fará tremer, causando-lhe grandes problemas quando estiver irremediavelmente atraído por ela. É a bond-girl, com quem o herói dividirá a aventura e o romance do filme. Ser uma bond-girl traz sempre prestígio para a atriz que a interpreta, o que suscita grande expectativa diante da escolha de uma intérprete, sendo tão importante quanto à escolha do próprio ator que viverá um novo James Bond. A bond-girl será o elo do agente secreto com a sensibilidade, tornando-o terno e apaixonado. As mais famosas bond-girls foram vividas pelas atrizes: Ursula Andress, Diana Rigg, Jane Seymour, Honor Blackman, Kim Basinger, Barbara Carrera, Mary Stavin, Maryam D’Abo, Halle Berry e Teri Hatcher.
As trilhas sonoras dos filmes de James Bond constituem grandes momentos, principalmente com a canção tema, que gerou clipes míticos, muitos inesquecíveis.

Os Intérpretes de James Bond

Sean Connery foi o primeiro a interpretar James Bond. Ian Fleming era contra que o ator fizesse o papel, vendo no britânico David Niven, o ator perfeito para dar rosto à personagem que criara nos livros. Sean Connery, um ator escocês, trazia uma sensualidade máscula que sabia impregnar muito bem na composição de James Bond. Foi a personagem de Fleming que fez de Sean Connery um astro. A vinculação da imagem do ator com a da personagem limitou, por muitos anos, que ele representasse papéis diferentes. Sean Connery, que tinha maiores ambições para a sua carreira, sentiu-se incomodado em fazer sempre a mesma personagem. Após fazer cinco filmes, ele deixou a série, sendo substituído por George Lazenby, em 1969. O público rejeitou o novo intérprete, e Sean Connery voltou a interpretar 007 em 1971, no mítico “Os Diamantes São Eternos”. Após o filme, deixou de vez a pele de James Bond, prometendo não mais interpretá-lo. Sean Connery tornou-se o intérprete de James Bond mais cultuado pelos fãs, que não se conformavam por ele ter abandonado a série. Em 1983, voltaria a viver, pela sétima vez, James Bond, no filme “007 – Nunca Mais Outra Vez” (Never Say Never Again), o título era um trocadilho irônico com as palavras de Sean Connery, que no passado tinha dito, “nunca mais” a James Bond. Nada mais era do que uma nova versão de “007 Contra a Chantagem Atômica” (Thunderball), que o próprio Connery protagonizara, em 1965. Esta volta atendeu a uma grande expectativa dos fãs. O filme não foi produzido pela EON, sendo considerado apócrifo à série, tendo, na época, gerado grande polêmica por causa dos direitos autorais. A imagem envelhecida de Sean Connery, o ator já estava calvo, tendo que usar peruca, quase arranhou a mítica que se gerara ao seu redor como o intérprete favorito de James Bond. Desde então, jamais se pediu para que o ator voltasse a viver James Bond. O tempo e a idade, convenceram os fãs de James Bond-Sean Connery, de que era hora de aposentá-lo. O agente secreto de Sean Connery era bem próximo à personagem descrita nos livros de Ian Fleming, com a exceção do humor que o ator emprestou ao agente, tornando-o menos obscuro.
George Lazenby, um ator australiano, foi escolhido para substituir Sean Connery, em 1969, no filme “007 a Serviço Secreto de Sua Majestade” (On Her Majesty’s Secret Service). O ator tinha na bagagem apenas um filme italiano desconhecido e algumas aparições em comerciais de televisão. Foi escolhido pela semelhança com Sean Connery, que vista à luz do tempo, é praticamente inexistente. Acostumados com o James Bond de Connery, os fãs de 007 rejeitaram George Lazenby, ridicularizando-o. O ator, segundo algumas versões, não quis fazer o filme seguinte, alegando que James Bond era anacrônico diante do mundo que se desenhava, como o do festival de Woodstock, ou ainda, estaria preso a um contrato de quatorze filmes, e não queria viver a mesma personagem tantas vezes . Outra versão, a mais aceita e comentada, aponta para os produtores, que não ficaram satisfeitos com o resultado de bilheteria alcançado pelo filme, dispensando o ator logo a seguir. George Lazenby desapareceu do mundo do cinema desde então, destacando-se em papéis pouco marcantes na televisão. Apesar de ser o James Bond menos apreciado pelos fãs, a interpretação de George Lazenby é perfeita, em um filme demasidamente longo, mas com uma das melhores histórias de James Bond no cinema.
Roger Moore, em 1973, assumiria o papel de James Bond, sendo o interprete que demorou mais tempo a viver a personagem. Há versões de que Moore era o ator cotado para interpretar James Bond antes da escolha recair sobre Sean Connery, em 1962, mas ele, por compromissos com outros trabalhos, não pôde aceitar na época. O ator tirou a ironia impregnada por Sean Connery ao agente de sua majestade, transformando-o em um homem mais bondoso, com uma atmosfera de maior felicidade. Perdeu um certo cinismo insinuante do primeiro intérprete de 007. O longo tempo que Roger Moore interpretou James Bond, até 1985, deixou marcas indeléveis na personagem, provocando-lhe um desgaste na imagem, que perdia o prumo diante do envelhecimento a olhos vistos do ator. Roger Moore deixou a série aos 58 anos de idade, o que roubou todo o frescor juvenil da personagem. Nesta época os efeitos especiais sofisticavam-se, e com eles, a ousadia dos roteiros, como utilizar mais elementos da ficção científica. 007 entrou, na época, no mundo das aventuras espaciais, seguindo a tendência do mercado de filmes da segunda metade da década de 1970.
Timothy Dalton tornou-se, em 1987, o quarto James Bond. O ator tirou as rugas da personagem, impregnadas por Roger Moore e Sean Connery, na sua volta em 1983. Era a volta às origens literárias de James Bond, visto que Roger Moore descaracterizara-o ao viver aventuras cada vez mais distantes das propostas por Ian Fleming. Timothy Dalton, um ator britânico de formação shakespeareana, era um profundo conhecedor da obra de Fleming, o que lhe ajudou na composição da personagem. Num primeiro plano, o ator deu uma lufada na imagem de Bond, emprestando-lhe um certo aspecto sombrio e cínico. Estreado em 1987, “007 Marcado para a Morte ” (The Living Daylights), deparava-se com a época em que o mundo era assolado pela calamidade da Aids, doença que ainda não tinha tratamento e ceifava milhares de vida. Para seguir uma linha politicamente correta, o filme trazia um 007 menos envolvido em aventuras amorosas promíscuas. Poucas insinuações ao sexo foram feitas, pois o lema do momento era ser mais fiel, pois a Aids existia. Timothy Dalton atuou em dois filmes, sendo o segundo, de 1989. Foi nesta época que a Perestroika começava a fazer ruir o império soviético, cair muro de Berlim e extinguir a Guerra Fria. Os novos ventos da história traziam 007 de volta ao ocidente, sem função, praticamente aposentado, não havia mais comunistas para combater. Os filmes do agente ficariam parados por seis anos.
Pierce Brosnan foi, em 1995, o escolhido para viver James Bond, retomando a saga dos seus filmes, parada desde 1989. Uma das causas desse intervalo prolongado seria por causa da franquia, que se emperrara nos direitos autorais. Mas a verdade é que James Bond era fruto da Guerra Fria, com o seu fim, era preciso revigorá-lo, traçar-lhe um novo rumo e objetivos que lhe dessem sentido às aventuras. Pierce Brosnan era o ator favorito de Albert Broccoli para substituir Roger Moore, mas um contrato prendia o ator a uma série de sucesso na televisão, “Remington Steele”, da NBC, obrigando-o a declinar do convite, em 1987. Pierce Brosnan conquistou os fãs mais jovens de 007, que não viveram a idolatria a Sean Connery, tornando-se o ator preferido como intérprete de James Bond. O ator aflorou o sorriso cínico e inteligência mordaz de 007, desenvolvendo a personagem aos moldes da sua imagem, sem perder o caminho original dos livros de Fleming. Pierce Brosnan interpretaria James Bond quatro vezes, permanecendo até 2002. Foi poupado de uma possível decadência física na pele do agente secreto britânico. É o preferido dos fãs mais jovens de 007.
Daniel Craig tornou-se, em 2006, o sexto ator a interpretar James Bond. A escolha de Craig causou grandes protestos e a indignação dos fãs do agente, visto que o ator é loiro, e de baixa estatura. Apesar dos protestos, “Cassino Royale” foi um grande sucesso. O primeiro James Bond louro não arranhou a imagem do herói, o que deu passaporte para Craig viver, em 2008, a sua segunda aventura na pele de James Bond, no filme “Quantum of Solace”. Daniel Craig teria assinado contrato para fazer três filmes. Deu à imagem de 007 um ar frio, sem que lhe fosse tirado o prumo e cavalheirismo perene.
James Bond venceu não só diversos vilões, como a limitação do tempo em que foi criado, ultrapassando as tramas que envolviam a Guerra Fria, atualizando-se, sendo modernizado pelos roteiristas, tornando-se uma personagem do século XXI, apesar de moldar-se nas características do passado. Foram-lhe criados novos inimigos, arrancados das novas conjeturas ideológicas que se debruçam sobre o mundo, sem que se lhe elimine os elementos fundamentais e intocáveis. Se os seus intérpretes envelhecem, 007 tem o fascínio sedutor da juventude eterna, afinal ele é “Bond, James Bond”.

James Bond na Literatura

Livros Originais de Ian Fleming

1953 – Cassino Royale
1954 – Viva e Deixe Morrer
1955 – Moonraker
1956 – Os Diamantes São Eternos
1957 – Moscou Contra 007
1958 – 00 Contra o Satânico Dr. No
1959 – Goldfinger
1960 – Apenas Para Seus Olhos (contos)
1961 – Thunderball
1962 – O Espião que me Amava
1963 – A Serviço Secreto de Sua Majestade
1964 – Your Only Live Twice
1965 – O Homem com o Revólver de Ouro
1966 – Octopussy and The Living Daylights (contos)

Livro de Kingsley Amis (Robert Markham)

1968 – Colonel Sun

Livro de John Pearson

1973 – James Bond: The Authorised Biography of 007

Livros de John Edmund Gardner

1981 – Licença Renovada
1982 – Serviços Especiais
1983 – Missão no Gelo
1984 – Questão de Honra
1986 – Ninguém Vive para Sempre
1987 – Sem Acordos, Mr. Bond
1988 – Scorpius
1989 – Vença, Perca ou Morra
1990 – Brokenclaw
1991 – O Homem de Barbarossa
1992 – A Morte é Eterna
1993 – Nunca Envie Flores
1994 – Mar de Fogo
1996 – Cold

Livros de Raymond Benson

1997 – Blast From the Past (conto)
1997 – Zero Menos Dez
1998 – Os Fatos da Morte
1999 – Midsummer Night’s Doom (conto)
1999 – Live at Five (conto)
1999 – High Time to Kill
2000 – Doubleshot
2001 – Never Dream of Dying
2002 – O Homem com a Tatuagem Vermelha

Livro de Sebastian Faulks

2008 – A Essência do Mal

Filmografia de James Bond

Filmes Oficiais

1962 – O Satânico Dr. No (Dr. No) – Com Sean Connery
1963 – Moscou Contra 007 (From Rússia With Love) – Com Sean Connery
1964 – 007 Contra Goldfinger (Goldfinger) – Com Sean Connery
1965 – 007 Contra a Chantagem Atômica (Thunderball) – Com Sean Connery
1967 – Com 007 Só se Vive Duas Vezes (You Only Live Twice) – Com Sean Connery
1969 – 007 a Serviço Secreto de Sua Majestade (On Her Majesty’s Secret Service) – Com George Lazenby
1971 – Os Diamantes são Eternos (Diamonds are Forever) – Com Sean Connery
1973 – Com 007 Viva e Deixe Morrer (Live and Let Die) – Com Roger Moore
1974 – 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro (The Man With the Golden Gun) – Com Roger Moore
1977 – O Espião que me Amava (The Spy Who Loved Me) – Com Roger Moore
1979 – 007 Contra o Foguete da Morte (Moonraker) – Com Roger Moore
1981 – 007 Somente para Seus Olhos (For Your Eyes Only) – Com Roger Moore
1983 – 007 Contra Octopussy (Octopussy) – Com Roger Moore
1985 – 007 na Mira dos Assassinos (A View to a Kill) – Com Roger Moore
1987 – 007 Marcado para a Morte (The Living Daylights) – Com Timothy Dalton
1989 – 007 – Licença para Matar ( Licence to Kill) – Timothy Dalton
1995 – 007 Contra GoldenEye (GoldenEye) – Com Pierce Brosnan
1997 – 007 – O Amanhã Nunca Morre (Tomorrow Never Dies) – Com Pierce Brosnan
1999 – 007 – O Mundo não é o Bastante (The World is Not Enough) – Com Pierce Brosnan
2002 – 007 – Um Novo Dia Para Morrer (Die Another Day) – Com Pierce Brosnan
2006 – 007 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com Daniel Craig
2008 – 007 – Quantum of Solace (Quantum of Solace) – Com Daniel Craig

Filmes Não Oficiais

1954 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com Barry Nelson
1967 – Cassino Royale (Casino Royale) – Com David Niven
1983 – 007 – Nunca Mais Outra Vez (Never Say Never Again) – Com Sean Connery


TIETÊ, NAVEGANDO PELA PAULICÉIA ANTIGA

junho 24, 2009
O Tietê atravessa o estado e a cidade de São Paulo, sendo um dos rios mais famosos do país, com uma importância econômica essencial não só para a região que o seu curso percorre, como para todo o Brasil. Símbolo do desleixo e da incapacidade que governos e populações tiveram, ao longo da história, de conciliar desenvolvimento industrial com o meio ambiente, o rio Tietê trafega pulsante pelo estado mais rico do país, transformando-se em um grande esgoto a céu aberto ao entrar na cidade de São Paulo.
Já dentro da Paulicéia, o rio é margeado pela Marginal Tietê, o principal sistema viário da cidade, por onde se calcula passar mais de dois milhões de veículos por dia. Sua imponência secular é camuflada pela degradação das águas, poluição e estado se salubridade, tornando-o um rio morto, sem peixes ou vegetação, um exemplo de uma grande tragédia ambiental. A partir da década de 1990 foi criada uma organização não governamental, a Núcleo União Pró Tietê, apoiada pela pressão popular que reivindicava um rio mais limpo. Mais de um milhão de assinaturas foram recolhidas em um abaixo assinado gigantesco, para que se recuperasse o rio, como aconteceu com o Tamisa, em Londres. Desde então, certas melhoras e vitórias a favor da recuperação do Tietê vêm sendo feitas, sem passos longos, processadas lentamente, quase arrancadas, mas com efeitos tenazes.
Quem observa o rio Tietê ao longo da cidade de São Paulo, jamais imagina que em um passado, não muito remoto, pescava-se e banhava-se nas suas águas, clubes recreativos eram construídos às margens, efetuavam-se campeonatos de natação, regatas, esportes náuticos; enfim, tudo isto fazia do Tietê uma fonte saudável de lazer e vitalidade dentro da maior cidade do Brasil.
É sobre este tempo que, buscando imagens do passado, extraídas de fotografias e postais antigos, navegaremos neste artigo, pelo leito límpido do Tietê, que um dia esperamos, sair das páginas do passado e constituir um futuro de águas recuperadas e vivas.

Tietê, o Rio dos Banhistas Paulistanos

O rio Tietê tem o seu nome de origem tupi, traduzido como rio volumoso, rio verdadeiro ou ainda, águas verdadeiras. Sua nascente está em Salesópolis, na Serra de Paranapiacaba, a poucos quilômetros da capital paulista, a 1.120 metros de altitude. Desviando das escarpas da Serra do Mar, segue em sentido inverso ao Atlântico, desbravando o interior, atravessando o território paulista, até desaguar no lago da barragem de Jupiá, no rio Paraná, depois de percorrer 1.136quilômetros.
Economicamente, o rio Tietê é um dos mais importantes do estado de São Paulo e do Brasil. Sua história confunde-se com a de São Paulo, foi de grande importância na conquista do interior pelos bandeirantes, sendo utilizado como meio de navegação para que se desbravasse o sertão. Sua nascente teve a flora original destruída, o que obrigou o Estado a tombá-lo, recuperando a área, constituída atualmente, por uma floresta secundária.
Ao cruzar a cidade de São Paulo, o Tietê passou a fazer parte da saga da metrópole, sendo a principal vítima do seu progresso. Até meados do século XX, via-se canoas e jangadas a transportar mercadorias pela capital paulista, e uma grande movimentação pulsante em suas águas.
Por muitas décadas, o Tietê serviu de sustento para os peixeiros, pessoas humildes do interior do estado, que na capital pescavam tabaranas, piabas, bagres e outros peixes pequenos. O peixeiro era uma figura típica, caminhava descalço pelas ruas da cidade a vender o que pescara no rio; trazia os peixes enfiados pelas guelras em um cipó.
A partir do final do século XIX, o Tietê passou a fazer intensamente parte da vida de lazer do paulistano. Com árvores espalhadas por suas margens, frondosas sombras convidavam para passeios de pedestres e a realização de piqueniques. Dentre os costumes burgueses paulistanos, a natação era uma prática bastante apreciada. Os mais abastados aprendiam a nadar nos açudes das fazendas, nas estações balneárias, praticavam o banho no mar de Santos, litoral mais próximo da capital, ou nos clubes às margens do Tietê.
Na época que se tinha como costume nadar no Tietê, as suas águas já apresentavam uma certa poluição. O costume desenfreado da população jovem atirar-se ao rio trazia perigo constante de afogamentos, além de despertar a indignação da moral vigente, visto que muitos nadavam em trajes menores ou sem roupas, refletindo uma nudez desafiadora, o que levou à proibição da natação, que passou a sofrer pressão da vigilância de policiais. Banhar-se no Tietê ou no rio Tamanduateí, tornou-se um hábito de rebeldia provocativa da juventude, ante ao peso da proibição que se fez entre 1880 e 1889. Nesta época era diversão dos jovens despirem-se, atirarem-se ao rio, e quando percebiam a aproximação da polícia, apoderarem-se das suas roupas, depois nadando rio abaixo, ou para o meio dele, fugindo para as matas ao redor, gritando e vaiando os seus perseguidores.
Este costume foi, aos poucos, esvaindo-se, visto que a intensificação da repressão aos infratores inviabilizara a rebeldia, o que encerrou de vez o nado livre nas águas do Tietê.

Os Clubes de Regatas do Tietê

A partir da proibição que encerrou com os banhos simples no rio, surgiram, no fim do século XIX, os esportes náuticos, desenvolvidos a partir dos clubes que foram criados às margens do Tietê, na Ponte Grande. Em 1899 surgiam os clubes de remo, um presente para o lazer dos habitantes da Paulicéia.
A Ponte Grande, construída por volta de 1860, era o principal ponto de referência do rio Tietê. Ao seu redor foi desenvolvido um atraente local de lazer dos paulistanos. Às margens do Tietê eclodiram locais de recreios para piqueniques, passeios de barcos e restaurantes. Um dos principais restaurantes foi o Bella Venezia, freqüentado pela comunidade italiana, que aos domingos promovia passeios de barcos pelo rio. O sucesso dos passeios foi tanto, que motivou um grupo de rapazes a fomentar a idéia da criação de um clube desportivo para a prática de atividades de remo e de canoagem. A partir da idéia, sete jovens italianos praticantes de remo fundaram o Club Canottieri Esperia, que se tornaria um dos mais famosos de São Paulo. O Clube Espéria persiste até os dias atuais, sendo referência na zona norte de São Paulo, em Santana, onde está situado.
A partir do Clube Espéria, foram fundados outros clubes de regatas ao longo do rio. Entre eles o Clube de Regatas Tietê e o São Paulo. Tinham como atrativos principais às práticas da natação e do remo. O Clube de Regatas Tietê atravessou as décadas, ainda existindo atualmente.
Sobre esta época de esplendor do rio Tietê, o francês L. A. Gaffre, que visitou São Paulo, em 1910, escreveria em seu livro Visions du Brésil:
De passagem, um olhar ao rio Tietê, sinuoso e suave, que estende langorosamente suas águas sob belas sombras, permitindo à juventude paulistana entregar-se, em suas margens e em seu leito, aos esportes prediletos.
Os clubes de regatos às margens do rio Tietê tornaram-se famosos pela disputa de provas desportivas aquáticas. Em 1924, o Espéria promoveu, com sucesso, a primeira competição de travessia a nado pelas águas do rio. Não havia o medo de qualquer contaminação por se nadar no maior rio da cidade de São Paulo.

A Degradação do Rio

A decadência do rio começaria com a degradação das suas águas, dantes límpidas. O processo de poluição do Tietê começou sutilmente, na década de 1920. Nesta época as práticas e disputas de provas aquáticas ainda serviam de lazer para os paulistanos. Também os pescadores ainda tiravam peixes das águas do rio. Foi nesta década que a empresa canadense Light, construiu a represa de Guarapiranga, com objetivo de gerar energia elétrica nas usinas hidrelétricas Edgar de Souza e Rasgão, situadas em Santana do Parnaíba. A intervenção afetaria o regime de águas do Tietê, deixando-o com o leito menos sinuoso na área da capital paulista.
O processo de degradação do rio avançava conforme o progresso chegava à Paulicéia. Com a proliferação das grandes indústrias e a explosão demográfica da população, o rio deixou de ser fonte de lazer dos paulistanos, tornando-se o principal receptor dos seus resíduos e esgotos.
O Tietê agonizava, e com ele os clubes de regatas, que aos poucos, tornaram-se inviáveis diante da degradação iminente, sendo condenados a deixar de existirem. A Ponte Grande seria demolida, dando lugar à construção da Ponte das Bandeiras, inaugurada em 25 de janeiro de 1942.
Já em 1933, a publicação oficial “A Capital de São Paulo”, alertava para as transformações ambientais dos rios paulistanos. Na publicação, culpavam ao desaparecimento dos peixes à barragem em Santana do Parnaíba e ao Salto de Itu. Mencionavam ainda, que os resíduos das indústrias corroboraram para um ambiente não favorável aos peixes. Estava decretada a morte do Tietê e os seus clubes de regatas. Os clubes sobreviveriam até a década de 1950, quando a poluição tomou conta das águas do rio, tornando-o um autêntico esgoto a céu aberto, transmissor de doenças e sendo foco de contaminações pestilentas.
Entre as décadas de 1940 e de 1960, São Paulo cresceu vertiginosamente. Sua população saltou, em vinte anos, de dois milhões para seis milhões de habitantes. A política de incentivo à expansão do parque industrial da cidade, permitindo-lhe eclodir sem um planejamento ambiental, fez com que o rio Tietê fosse inviabilizado como abastecedor da população e se lhe retirasse a promoção do lazer e da qualidade de vida. No início da década de 1970, o Tietê estava praticamente morto para os paulistanos. Na década de 1980, o rio atingiu níveis intoleráveis de poluição, mesmo assim, não se gastou verba alguma para a sua recuperação.
Nos tempos atuais, parcas iniciativas vêm sendo feitas para que se recupere o rio. Não recuperar o Tietê é uma situação catastrófica, que no futuro afetará de forma indelével a todos os paulistanos. Não poder utilizá-lo como via fluvial para o transporte de cargas e passageiros acarreta prejuízos à economia da cidade de São Paulo. Não utilizar tão potente gerador de lazer, de áreas verdes, que tanto necessita a metrópole, é subtrair a população de uma qualidade de vida superior, tragada pela falta de educação na preservação ambiental. Recuperar o Tietê é apagar a imagem de decadência da cidade, que ao percorrer a marginal que o ladeia, traz um dos mais deprimentes cartões postais para quem a visita. Quem sabe, um dia, ainda se volte a ver as canoas a deslizar nas águas límpidas do Tietê. Sonho? Utopia? Não, necessidade de que São Paulo sobreviva ambientalmente, e o Tietê renasça das cinzas da sua degradação.


MULHERES GUERRILHEIRAS

junho 23, 2009
Quando os militares marcharam pelas ruas das principais cidades brasileiras, proclamando o golpe de estado, em 1964, foram recebidos de braços abertos pelas mulheres representantes da família e dos bons costumes da moral vigente. Se a presença da mulher foi decisiva na consolidação do golpe militar, ela não foi menor na luta contra a ditadura. Contrariando os princípios estabelecidos pela sociedade do seu tempo, elas abandonaram a vida burguesa para a qual foram criadas, deixaram as salas de aulas das faculdades, pegaram em armas e foram para as ruas das grandes cidades ou para o meio das selvas, combatendo os canhões e fuzis da repressão. Eram as mulheres guerrilheiras.
A maioria delas eram jovens de pouco mais de vinte anos, nascidas nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial ou pouco tempo depois, filhas das ideologias da Guerra Fria. Desabrocharam na década de sessenta, divididas entre a revolução sexual, a liberação feminina e os ideais de esquerdas. Lutaram contra a repressão da sociedade do seu tempo e, fundamentalmente, contra a opressão de uma ditadura sanguinária.
Valentes, destemidas, bonitas, femininas, elas suscitaram as mais controversas opiniões, chegando a ser admiradas e respeitadas pelos seus algozes. Muitas sucumbiram às torturas ou tombaram executadas nas matas. Todas muito jovens, universitárias em sua maioria, vindas da militância do movimento estudantil. Depois da queda da UNE, com as prisões das suas lideranças no congresso de Ibiúna e o decreto do AI-5, elas caíram na clandestinidade. Restou, como um último fôlego, a luta armada.
Não perdiam o seu lado feminino, vivendo amores intensos com os companheiros de luta, muitas vezes transformados em maridos. Mas a grande paixão era a ideologia, o que lhes dava força para continuar quando, muitas vezes, viam o companheiro tombar à frente.
Despidas das vaidades femininas, elas foram para as ruas, assaltaram bancos, seqüestraram embaixadores, empunhando armas e coragem. Além das guerrilhas urbanas, dezesseis mulheres fizeram parte das operações da guerrilha do Araguaia. Doze foram executadas, duas foram presas logo no início e duas outras, grávidas, desertaram.
Mulheres guerrilheiras, com a sua tenacidade heróica, tornaram-se ícones e mitos da história recente do Brasil. Muitas foram friamente torturadas e executadas. Algumas sobreviveram, viram ruir a ditadura, as ideologias que defendiam, a mudança dos tempos. Outras desapareceram em valas comuns, sem nunca serem veladas pelas famílias. Outrora os nomes de algumas delas constavam em cartazes de “procura-se” espalhados pelo país, agora voltaram, sendo homenageadas com nomes de ruas ou de centros acadêmicos. O Brasil democrático deve respeito e admiração a essas mulheres, que mesmo errando, resistiram e gritaram, quando a ordem era silenciar e ajoelhar-se ante as truculências de um regime feito nas casernas militares, longe da participação do povo brasileiro.Vera Sílvia, a Loura Noventa

Nascida em uma classe média alta do Rio de Janeiro, em 5 de fevereiro de 1948, Vera Sílvia Magalhães tinha tudo para desfrutar com tranqüilidade dos benefícios que lhe proporcionava o capitalismo burguês. Bonita, economicamente favorecida, inteligente, ela escolheu caminhar pela esquerda da vida, política e sociologicamente.
Aos onze anos foi presenteada por um tio, com o livro que trazia o “Manifesto do Partido Comunista”, de Marx e Engel. Precoce e ingenuamente, ela assumiu os princípios de ser socialista, distribuindo os seus pertences com os pobres à sua volta. Aos quinze anos, começou a sua militância política através do movimento estudantil. Aos dezenove já pertencia ao comitê central da Dissidência da Guanabara, surgida de um racha do PCB da Guanabara, futuramente chamado de Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Quanto mais envolvida na militância política contra a ditadura militar, Vera Sílvia rompia com a sua vida burguesa, deixando aos poucos, a família, os estudos e os antigos amigos. Quando deu por si, já estava a escrever a linha a ser seguida pelo seu partido, ao lado de Franklin Martins, rompendo com a linha pacifista de 1967, herdada do PCB, transformando-o em um partido militarista, radicalizado pelo esquerdismo e disposto a travar a luta armada contra o regime militar. Seguindo esta linha, foi treinada em táticas de guerrilha, por João Lopes Salgado, na mata da Tijuca. Surgia a valente guerrilheira, que de arma em punho, passou ao lado dos companheiros, a fazer ações de assaltos a supermercados e a bancos.
Nos assaltos praticados, Vera Sílvia aparecia usando uma peruca loura, atraindo para si as atenções, tida no imaginário popular como bela e perigosa. Lendas começaram a girar ao seu redor, passando a ser conhecida popularmente como a “Loura dos Assaltos”, ou a “Loura 90”, uma referência ao mito de que usava nos assaltos, duas pistolas de calibre 45. A própria Vera Sílvia desfez, mais tarde, a lenda, afirmando que mal tinha um velho revólver 38, que de vez em quando falhava nos disparos.
Mas a ação que deu notoriedade a Vera Sílvia foi o seqüestro ao embaixador norte- americano, Charles Elbrick, em setembro de 1969. Sendo a única mulher a participar da ação, passou a ser a mais procurada e odiada pelo regime militar. O seqüestro resultou em uma grande derrota para a ditadura, que se viu obrigada a negociar com os guerrilheiros, trocando prisioneiros políticos pelo embaixador. A partir de então, os militares endureceram na caça aos guerrilheiros. Em fevereiro de 1970, Vera Sílvia sobreviveu a um cerco policial, mas viu o seu companheiro, José Roberto Spigner, a tombar na sua frente.
Em março de 1970, seis meses após o seqüestro do embaixador norte-americano, Vera Sílvia fazia uma panfletagem na favela do Jacarezinho, quando foi cercada e atingida com um tiro na cabeça. Foi levada para o Hospital Central do Exército (HCE), onde teve a sorte de ser atendida por um companheiro de luta, ali residente como médico. Para evitar que fosse torturada naquele dia, o médico simulou uma convulsão na paciente. No dia seguinte, ela foi levada pelos policiais, com a promessa de que “seria torturada como um homem, como Jesus Cristo”, alusão feita já que estavam na semana da Páscoa. Oito homens torturam com perversos requintes de sadismo, à “Loura 90”, aplicando-lhe choques, pendurando-a no pau-de-arara, fustigando-lhe todas as partes de corpos. Debilitada e com uma hemorragia renal, ela foi levado para o hospital, em junho, sem poder andar. Foi nesta ocasião que aconteceu o seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, trocado mediante a libertação de 39 presos políticos. Vera Sílvia tinha o seu nome incluído na lista. De todos que ali estavam, ela foi a única que gerou constrangimentos ao regime militar, visto que estava tão debilitada, que não podia andar, sendo levada em uma cadeira de rodas até o avião que partiria para a cidade de Argel, tendo a bordo os 39 guerrilheiros rumo ao exílio. O caso de Vera Sílvia atraiu os holofotes internacionais, que ao ver o seu estado precário, numa cadeira de rodas e com 25 quilos a menos, confirmou a tortura nos calabouços da ditadura, veementemente negada pelos militares.
No exílio, Vera Sílvia chegou a seguir para Cuba, onde se tratou e fez treinamentos de guerrilhas. Perambulou pelo Chile, Argentina, Suécia e França, onde permaneceu até a Anistia, em 1979. Em 1973, Vera Lúcia deixou definitivamente a militância em organizações guerrilheiras. Costumava dizer que ela e os seus companheiros não amavam a democracia, amavam a revolução, lutavam pela ditadura do proletariado, não pela democracia.
Vera Sílvia morreu aos 59 anos, em 4 de dezembro de 2007, no Rio de Janeiro. Trazia seqüelas da tortura no corpo e na alma. Da beleza da guerrilheira trazia a determinação, movida por um semblante pesado e pela velha ternura obstinada. Em uma reportagem, disse sobre o período que foi guerrilheira: “Valeu. Só não valeu para quem morreu… O que havia de melhor na minha geração fez o que eu fiz.

Iara Iavelberg, Injustamente Enterrada no Vale dos Esquecidos

Bonita, feminina e vaidosa, Iara Iavelberg nasceu em uma família de abastados judeus paulistanos, em 7 de maio de 1944, em São Paulo. Seu destino parecia traçado quando, aos dezesseis anos, casou-se com o médico israelita Samuel Halberkon. Mas as infidelidades do marido e a suas aspirações ideológicas, fizeram com que dele se separasse três anos depois.
Iara Iavelberg estudou psicologia na Universidade de São Paulo, tornando-se professora. Fez parte das mulheres da sua geração que se propuseram a mudar a condição feminina. Quebrou todos os tabus e dogmas do seu tempo; mulher desquitada, militante política de esquerda, seguidora do amor livre que se pregava então, ela foi bem além da proposta do seu tempo, pagando com a própria vida a quebra com os laços.
Alta, loira, olhos claros, era considerada a musa da esquerda. Quando aderiu às guerrilhas urbanas, jamais deixou de cuidar do seu corpo, da sua beleza, jamais perdeu a delicadeza feminina, tão pouco os hábitos de cuidar da aparência física e das roupas que usava, algo esdrúxulo para uma guerrilheira. Sua beleza e jeito de seguir livre atraíram o amor fugaz de vários companheiros, entre eles o líder estudantil José Dirceu.
Mas foi a paixão que seduziu o capitão Carlos Lamarca, o mítico líder guerrilheiro da resistência à ditadura, que fez de Iara Iavelberg uma guerrilheira notória. Lamarca havia enviado a mulher e os filhos para Cuba, quando se viu envolto pelos encantos de Iara. Por sua vez, sendo a mulher do homem mais procurado e odiado pelo regime militar, também ela tornar-se-ia um alvo cobiçado, tendo a sua imagem estampada em cartazes espalhados pelo país, procurada como terrorista.
No início de 1971, Lamarca foi enviado pelo MR-8 para o interior da Bahia, visto ser o homem mais procurado da organização. Iara Iavelberg, alçada à cúpula do MR-8, foi enviada para Salvador. Na capital baiana, vivia com o militante Félix Escobar, vinte anos mais velho, assumindo o disfarce de pai e filha. Seria em um apartamento do bairro da Pituba, que os militares teriam encontrado Iara no dia 20 de agosto de 1971. Vendo-se cercada, ela teria escapado para o apartamento vizinho, trancando-se no banheiro de empregada. Descoberta por uma criança, que assustada avisou aos militares, Iara Iavelberg teria, segundo a versão oficial dos seus algozes, suicidado-se com um tiro no peito. Tinha apenas 27 anos.
Para atrair Carlos Lamarca, os militares mantiveram o corpo de Iara Iavelberg na geladeira do Instituto de Medicina Legal de Salvador. Somente após a execução do guerrilheiro, quase um mês depois, é que os pais de Iara foram notificados da sua morte. O corpo foi entregue lacrado à família, expressamente proibido de ser aberto e de que fosse realizada a sua lavagem pelo rabino, um costume secular entre os judeus. Sob uma forte vigilância, somente a família foi autorizada a comparecer ao enterro.
Seguindo os costumes judaicos, Iara Iavelberg foi enterrada na ala dos suicidas do cemitério judaico do Butantã, em São Paulo, com os pés virados para a lápide. Este costume é a maior humilhação para um judeu, visto que o suicídio é tido como um pecado sem perdão à vida, considerada sagrada e pertencente a Deus, intocável pelo homem.
A proibição de que o corpo de Iara Iavelberg passasse pelo ritual da lavagem, despertou as suspeitas dos seus pais, que viram no gesto a tentativa de evitar uma contestação à versão de suicido. Os militares alegaram que as restrições foram feitas como medida de segurança, sob o temor de que a esquerda roubasse o corpo e tomasse-o como estandarte e prova de tortura.
Inconformados com a perda da filha, e com a desonra com a qual fora enterrada, os pais de Iara Iavelberg jamais deixaram de tentar esclarecer as verdadeiras circunstâncias da sua morte. Para isto, tiveram que esperar que a ditadura fosse extinta. Em 1996 surgiram relatos de pessoas que teriam visto Iara Iavelberg ser presa com vida, o que descartava o ato de suicídio com versão oficial. Diante dos fatos, a família da guerrilheira tentou em 1997, removê-la do vale dos suicidas para outro local, mas foi impedida pelos rabinos. Em 2002 entraram com um pedido na justiça para que o corpo fosse exumado. Os rabinos protelaram o gesto, alegando que o corpo é sagrado, não podendo ser profanado depois de morto. Mas, naquele ano, uma ordem de justiça obrigou aos rabinos a que se deixasse fazer a exumação, o que viria a acontecer em setembro de 2003, quando o cadáver de Iara Iavelberg foi desenterrado da ala dos esquecidos, onde permanecera por 32 anos.
Os resultados da exumação só viriam em 2005, quando foi constatado que o tiro que matara a guerrilheira poderia ter sido dado de longa distância, e não a queima-roupa, como seria em caso de suicídio. Nesta época, os pais de Iara já tinham falecido. Samuel Iavelberg, seu irmão, pôde enterrá-la finalmente, em junho de 2005, na ala sagrada do cemitério, ao lado dos pais. Se os ideais ceifaram-lhe a vida, a verdade da sua morte redimiu-a da desonra ante à família e ao seu povo.

Dilma Rousseff, de Guerrilheira a Ministra de Governo

Dilma Vana Rousseff Linhares, teve uma militância política intensiva na época da guerrilha armada, tendo atuado ao lado de Carlos Lamarca e Iara Iavelberg, de quem era amiga e confidente. Nascida em Belo Horizonte, em 14 de dezembro de 1947, veio de uma família abastada de imigrantes búlgaros. Até os quinze anos, freqüentava um colégio conservador, em que alunos e professores falavam francês entre si. Nesta ocasião, trocou o colégio por um estadual. Foi na escola pública que encontrou manifestações políticas, sendo atingida pelas ideologias de esquerda.
Já como militante de esquerda, ela passou pelos anos sessenta por várias organizações clandestinas, como a Política Operária (POLOP), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Comando de Libertação Nacional (COLINA). Usou vários codinomes, entre eles, Estela, Vanda e Luísa.
A principal ação deflagrada por Dilma Rousseff teria sido o assalto ao cofre pertencente ao ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, em 1969. Ela, ao lado de Carlos Franklin Paixão (que se tornaria o pai da sua única filha), teria sido a coordenadora do plano, que durou 28 minutos, trazendo um cofre com dois milhões e seiscentos mil dólares. O casal coordenou todos os detalhes do assalto, mas Dilma Rousseff não participou fisicamente da ação. Já ministra do governo do presidente Lula, Dilma negou em uma entrevista para a televisão, ter participado na famosa ação da esquerda guerrilheira.
Em outra ação, ela teria ajudado o capitão Lamarca a roubar uma Kombi de dentro do quartel do exército, em Osasco, cheia de fuzis. Segundo depoimentos de companheiros da época, Dilma tinha como função indicar o tipo de armamento que deveria ser usado nas ações, informando onde poderiam ser subtraídos, além de acumular a função de passar as orientações de comando aos companheiros.
Em 1969, Dilma Rousseff teria coordenado e organizado três ações de roubo de armas aos quartéis do Rio de Janeiro. Foi presa em janeiro de 1970, permanecendo no cárcere até 1973, onde conta, ter sofrido várias torturas.
Dilma Rousseff foi empossada como ministra das Minas e Energia do governo Lula, em 2003. Com a queda do então poderoso ministro José Dirceu, ela assumiu o ministério da Casa Civil, tornando-se a mulher mais poderosa do governo. Com a queda das lideranças históricas do Partido dos Trabalhadores (PT), todos envolvidos em escândalos de corrupção, tornou-se a candidata natural à sucessão de Lula na presidência, em 2010. Em 2006 conseguiu que a Comissão Especial de Reparação da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro aprovasse uma indenização pelas torturas que sofrera durante o regime militar.
Dilma Rousseff mantém sempre uma obscuridade de quais foram as suas ações durante a guerrilha urbana, evitando sempre o assunto. Quanto à tortura e militância, jamais escondeu, pelo contrário, sempre soube tirar proveito político do seu passado em organizações de esquerda.

Dina, a Mítica Guerrilheira do Araguaia

A guerrilheira Dina transformou-se um mito da Guerrilha do Araguaia, conhecida como uma mulher de coragem extremada, tornando-se uma lenda na memória do povo daquela região, que contava, teria escapado de uma emboscada dos militares virando borboleta. Dinalva Oliveira Teixeira nasceu no sertão baiano, em Argolim, município de Castro Alves, em 16 de maio de 1945. Dina começou a sua militância no movimento estudantil, participando do congresso da UNE em Ibiúna, que lhe valeu ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional, em 1968.
Formada em Geologia pela UFBA, Dina casou-se em 1969, com Antonio Monteiro Teixeira, mudando-se com ele para o Rio de Janeiro, onde trabalharam no ministério das Minas e Energias. Seria ao lado do marido, que Dina partiria, em maio de 1970, para o Araguaia.
No Araguaia Dina conquistou os habitantes com o seu carisma, desempenhando o papel de professora e de parteira. Foi a única mulher no comando do Destacamento C das Forças Guerrilheiras do Araguaia. Era uma guerrilheira rígida. Em documentos militares sobre a Guerrilha do Araguaia, consta que Dina teria matado o companheiro Rosalindo Cruz Souza, o Mundico, julgado por um tribunal revolucionário, acusado de traição por um caso banal de adultério. Dina teria executado o companheiro com um tiro no peito, acima do coração.
Dina cairia em junho de 1974, presa por uma patrulha do exército em Pau-Preto, localidade entre o rio Gameleira e o igarapé Saranzal, no sul do Pará. Estava ao lado da guerrilheira Luiza Augusta Garlipe, a Tuca, tida como desaparecida. Dina foi levada para Marabá, onde foi interrogada durante duas semanas. A guerrilheira estava há quase um ano sem ingerir açúcar e sal, o que a deixou desnutrida e fraca, deixando de menstruar nos últimos seis meses.
Em julho, Dina foi levada de helicóptero para um ponto da mata, próximo de Xambioá. Assim que pisou no solo, pressentindo que seria executada, Dina perguntou ao sargento do exército Joaquim Artur Lopes de Souza, codinome Ivan, chefe da equipe, “Vocês vão me matar agora?” , ao que Ivan respondeu: “Não, um pouco mais à frente”. Os dois caminharam lado a lado por uns quinze minutos, mantendo uma conversa cordial, testemunhada por mais dois militares que vinham logo atrás. Quando pararam em uma clareira, Dina perguntou: “Vou morrer agora?”, ao que Ivan respondeu afirmativamente: “Vai, agora você vai ter que ir”. Sem demonstrar medo, Dina declarou: “Então, quero morrer de frente”, ao que Ivan retrucou: “Então vira pra cá”. Dina encarou o executor nos olhos, que lhe desferiu um tiro no peito, usando uma pistola calibre 45. A guerrilheira não morreu de imediato, sendo-lhe desferido um segundo tiro na cabeça. Enterraram-na ali mesmo, o corpo jamais foi encontrado.
Ivan gostava de contar aos companheiros de farda que o último olhar de Dina trazia uma honra que superava o medo. Segundo relatos, ele falou da guerrilheira como a mulher mais valente que conhecera. Treze anos depois, em 1987, Ivan morreu de forma violenta, no Rio de Janeiro, tendo a cabeça decepada por pauladas desferidas por assaltantes. Há quem afirme que a morte do algoz de Dina foi uma queima de arquivo.

Lúcia Maria de Souza, a Sônia

Os militares consideravam as guerrilheiras muito mais ferozes e cruéis do que os homens. Tinham um respeito velado por elas. Uma das guerrilheiras admiradas por eles foi Lúcia Maria de Souza, a Sônia. Mulher de origem pobre, nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em 22 de junho de 1944. Passou por grandes dificuldades financeiras, conseguindo depois de muito custo, entrar para a faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Cursava o quarto ano, quando se deslocou para o Araguaia, indo viver próximo de Brejo Grande.
Conhecida por todos como Sônia, ela conquistou a simpatia dos habitantes do Araguaia, trabalhando como parteira. Era tida como uma mulher carinhosa e doce, muito querida pelos companheiros guerrilheiros. Dedicada à causa, superou muitos homens no trabalho físico que consistia derrubar a mata somente com o uso do facão, abrindo trincheiras.
Segundo depoimentos, Sônia teria sido presa na tarde de 24 de outubro de 1973, quando saiu do acampamento, ao lado de um morador da região. Escondeu as botas e foi descalça até um córrego. Quando retornou, não encontrou os calçados, deu de cara com uma patrulha de oito homens, chefiada pelo major Lício Augusto Maciel, codinome Doutor Asdrúbal. Ao receber voz de prisão, Sônia sacou um revólver, mas ferida com um tiro na coxa, desferido por Asdrúbal, deixa a arma cair. Sônia também caiu, enquanto o morador que a acompanhava fugiu. Asdrúbal aproximou-se da guerrilheira, que sangrava no chão. Achou-a bonita, mas, inesperadamente, ela sacou de outro revólver e atingiu-o com dois tiros, um no rosto e outro na mão. Deu um terceiro tiro e atingiu o capitão Sebastião de Moura, o Major Curió, no braço. Mesmo bastante ferida, ela tentou fugir, arrastando-se pelo capinzal, quando foi imobilizada pelos militares. Sônia ainda quis levantar a arma, mas um militar pisou em seu braço. Quando lhe foi perguntado qual era o seu nome, teria respondido:
“Guerrilheira não tem nome, seu filho da puta, tem causa. Guerrilheiro está em busca da liberdade e de um mundo melhor.”
O militar respondeu-lhe: “Nem nome, nem vida”, desferindo-lhe vários tiros de metralhadora. Sônia levou mais de 80 tiros. Seu corpo foi deixado na mata, sem sepultamento. Moradores alegam que viram o corpo definhar, restando-lhe, alguns meses depois, apenas o esqueleto e os cabelos. Jamais foi encontrado.

Maria Lúcia Petit, Gostava de Cantar “Meu Nome é Gal

Maria Lúcia Petit nasceu em 20 de março de 1950, em Agudos, zona rural do interior de São Paulo. Ainda era gerada no ventre da mãe, quando o pai, administrador de fazendas, foi assassinado por subordinados.
Maria Lúcia tinha a alcunha de Pituquinha. Teve uma infância normal, sendo leitora assídua da obra de Monteiro Lobato. Era sensível, sorriso aberto, gostava de escrever poesia, e, de cantar “Meu Nome é Gal”, grande sucesso da cantora Gal Costa naquele ano de 1969. Será neste ano que, influenciada pelos irmãos Lúcio e Jaime, estudantes de engenharia e militantes do Partido Comunista do Brasil (Pc do B), que Maria Lúcia abraçará a causa revolucionária.
Em 1970, após deixar o emprego de professora na periferia de São Paulo, ela parte para o Maranhão, passando quase todo o ano a preparar-se para a guerrilha. Após despedir-se da família, seguiu para o Araguaia, no início de 1971, estabelecendo-se em um lugarejo chamado Caianos, onde trabalhou no campo e dedicou-se ao magistério, alcançando grande popularidade ante a população local. Maria Lúcia passaria a maior parte daquele ano a mapear a mata.
Em 16 de junho de 1972, foi apanhada em uma emboscada, quando buscava alimentos na casa de um simpatizante dos guerrilheiros. Foi executada no quintal da casa, com um tiro no quadril e outro na nuca. Tinha apenas 22 anos. Os irmãos de Maria Lúcia, Jaime Petit e Lúcio Petit, também sucumbiram no Araguaia. Os atestados de óbitos dos dois irmãos foram dados à família somente em 1975, mas os corpos jamais foram encontrados.
Em 1991, duas ossadas do Araguaia chegaram à Universidade Estadual de Campinas, sendo uma delas pertencente a Maria Lúcia. A identificação só foi possível graças às reportagens publicadas no jornal “O Globo”, em 1996, com documentos secretos do Araguaia, entre eles, a fotografia da guerrilheira morta. Através de exames na arcada dentária, Maria Lúcia Petit pôde, finalmente, ser enterrada pela mãe, Julieta Petit, em Bauru, 24 anos após a sua execução. Foi a única dos irmãos Petit a ser identificada e sepultada dignamente. A única guerrilheira morta no Araguaia a ser identificada.

Outras Guerrilheiras do Araguaia

Muitos foram os nomes das mulheres que pegaram em armas e tornaram-se guerrilheiras, combatendo corpo a corpo contra a ditadura. Falar sobre cada uma delas seria escrever páginas e páginas da história, fazendo descobertas fascinantes e inesgotáveis.
Entre elas está Telma Regina Cordeiro Correa, conhecida como Lia. Nascida no Rio de Janeiro, em 23 de julho de 1947, foi estudante de Geografia da Universidade Federal Fluminense, de onde foi excluída em 1968.
Em 1971 deslocou-se para a região do Araguaia, ao lado do marido Elmo Corrêa, indo morar às margens do Rio Gameleira. Telma destacar-se-ia no Destacamento B da Guerrilha. Teria sido presa no início de 1974, em São Geraldo, na casa do Sr. Macário, e, entregue ao engenheiro José Olimpio, que trabalhava para o exército. Passou a noite amarrada no barco de José Olímpio, desnutrida e faminta, sendo entregue no dia seguinte, às autoridades em Xambioá. Segundo dados de um relatório da Marinha, teria sido morta em janeiro de 1974. Desde esta época, é considerada desaparecida. Ainda não tinha 27 anos completos.
Destaque ainda, para Helenira Rezende de Souza Nazareth, nascida em Cerqueira César, São Paulo, em 19 de janeiro de 1944. Dona de uma beleza singela, atlética, foi jogadora de basquete na seleção da sua cidade, além de praticar salto à distância, modalidade que lhe deu várias medalhas no atletismo.
Estudante da Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia, em São Paulo, Helenira destacou-se no movimento estudantil, chegando a ser vice-presidente da UNE, em 1968. Após ser presa, Helenira foi solta sob hábeas corpus, dias antes do AI-5 ser editado. Na clandestinidade, partiu para o Araguaia. É considerada desaparecida desde 1972. Teria sucumbido em 29 de setembro de 1972, aos 28 anos, após ter sido metralhada nas pernas, torturada e morta por golpes de baioneta, sendo enterrada na localidade de Oito Barracas. Durante a guerrilha, após a sua morte, o Destacamento A das Forças Guerrilheiras, da qual ela fora integrante, passou a ser chamado por seus companheiros, de Destacamento Helenira Resende, em sua homenagem. Segundo relatos, antes de ser executada, ao ser atacada por dois soldados, matara um deles e ferira o outro.
Em outubro de 1974, Walquíria Afonso Costa, a Walk, estava presa em Xambioá. Seria a última guerrilheira do Araguaia a ser executada pelas forças militares. Walquíria nascera em Uberaba, Minas Gerais, em 2 de agosto de 1947. Ao lado do marido Idalísio Soares Aranha Filho, partiu para o Araguaia, indo viver na região do rio Gameleira, ao sul do Pará. Vários relatórios descrevem diferentes datas da morte de Walquíria, mas os indícios apontam para outubro de 1974, ocasião em que teria sido presa quando pedia comida a um camponês. Magra e desnutrida, manter-se-ia impassível diante de um militar que a interrogava, querendo saber o destino de quatro comunistas. Teria sido executada no fim de uma tarde de outubro daquele fatídico 1974, sendo a última guerrilheira a sucumbir nas mãos sanguinárias das tropas militares designadas para pôr fim a Guerrilha do Araguaia.

Veja também:

ASSALTO À CAIXINHA DO ADHEMAR DE BARROS

https://jeocaz.wordpress.com/2008/10/08/assalto-a-caixinha-do-adhemar-de-barros/

ATUAÇÃO DAS MULHERES NO GOLPE MILITAR DE 1964

https://jeocaz.wordpress.com/2008/11/19/atuacao-das-mulheres-no-golpe-militar-de-1964/

A TORTURA NO REGIME MILITAR

https://jeocaz.wordpress.com/2009/03/23/a-tortura-no-regime-militar/


A FESTA DE BABETTE

junho 19, 2009
No fim dos anos oitenta o cinema dinamarquês passou a estar em evidência, deixando o registro de duas obras-primas: “Pelle, o Conquistador” e “A Festa de Babette”. Distanciando-se de uma Dinamarca contemporânea, os dois filmes, situados no século XIX, mostram um país fechado em suas limitações econômicas, na pobreza vigente de um povo e na riqueza humana, deflagrando personagens sublimes e inesquecíveis.
Filme dirigido por Gabriel Axel, “A Festa de Babette” (Babettes Gaestebud), 1987, foi inspirado no livro homônimo de Karen Blixen – pseudônimo da escritora dinamarquesa Isak Dinesen, alcançando grande sucesso internacional, recebendo vários prêmios, entre eles o Oscar de melhor filme de língua estrangeira.
A Festa de Babette” é um desses filmes que se nos impregna na memória, rasga a nossa pele indiferente, tornando-se reféns da sensibilidade e da emoção. A chave do seu segredo e dos das personagens está à mesa, em um jantar, na comida que se serve. Somos confrontados com um dos momentos de maior prazer do ser humano, o da comida, tantas vezes esquecido ou sublimado. É no banquete de Babette que se revela a vida esquecida das personagens, quer no passado ou em um sonho atrás da porta. É no prazer do gosto, do cheiro de tão atraentes pratos servidos, que quase sentimos o aroma espalhado pela platéia, que se descobre que a vida não é linear, que o cotidiano milenar pode ser interrompido a qualquer momento, revelando não só as obrigações sociais e religiosas de uma existência, como as surpresas do eu adormecido, dos sonhos do que se pretendeu ser e do que nos tornamos.
Babette, uma mulher marcada pela tragédia política do seu tempo, perde tudo, o marido, o filho, a pátria, a profissão de cozinheira de um sofisticado restaurante francês. Exilada na Jutlândia (Dinamarca), ela serve a duas irmãs solteironas, humildes, que não podem pagar pelos seus serviços. Mas Babette resigna-se, precisa apenas sobreviver, sem nunca perder a sua essência. Será ela quem trará para as vidas que a cerca, o momento da redenção ao prazer de viver. Será ela quem gastará uma pequena fortuna, a última da sua vida, em um faustoso jantar, no qual volta, por um dia, a ser ela mesma, despida da mulher exilada e sem raízes.
A Festa de Babette” é uma alegoria de cores pinceladas da rendição humana ante ao sonho e às surpresas da vida, decifradas nos pratos, nos cheiros, nos temperos de um jantar magnificente. É um momento que aguça todos os sentidos da platéia, maravilhada e pronta para degustar cada cena, cada imagem, cada personagem, num dos filmes mais sensíveis de todos os tempos.

Babette Refugia-se em Uma Aldeia da Dinamarca

Numa aldeia de pescadores na península da Jutlândia, no norte da Dinamarca, vivem as irmãs Philippa (Bodil Kjer) e Martina (Brigitte Federspiel), mulheres que chegaram à meia idade desprovidas das vaidades e das paixões. Filhas de um pastor tido na região como um profeta, fundador de uma seita, elas dedicaram a vida e a juventude em concretizar o sonho de pregação do pai, abdicando do amor, das paixões, do casamento e de uma família.
No universo das duas senhoras, inicia-se o filme, com uma voz feminina, em off, acompanhando a câmera, que mostra o andar compassado, de braços dados, das mulheres. Elas trazem nos rostos a expressão suave da bondade e da serenidade de vidas desprovidas dos arroubos passionais e das vaidades materiais. Saem de casa levando cestas nos braços, sendo acompanhadas pela câmera e pela voz em off, transitando pelas casas simples de uma aldeia.
Philippa e Martina, nomes dados em homenagem aos líderes históricos religiosos Felipe Melanchton e Martinho Lutero, gastam o pouco que têm com trabalhos beneficentes, apoiando idosos que não se podem sustentar. Por trás dos seus corpos envelhecidos e mentes bondosas, existiram no passado, duas mulheres de beleza singular, que fechados em um recato imposto pelo pai, não iam às festas ou às reuniões da aldeia. A beleza singela das duas atraía aos rapazes da aldeia, que freqüentavam o culto só para vê-las. Pretendentes não lhes faltaram, mas a todos o pai afastara, pois tinha destinado as filhas para o seu sacerdócio, para ajudantes do seu ministério, achando o casamento e o amor como fúteis frivolidades diante da santidade herdada da divindade de Deus. Assim, um a um, o pastor afastou os pretendentes das filhas, que aceitaram resignadas o destino escolhido pelo pai. Perderam a juventude, sozinhas e solteironas, abrindo as suas vidas para a caridade e a casa para o encontro das pessoas, onde podiam interpretar a palavra de Deus, honrando o espírito do pai, que mesmo depois de morto, continuava presente na vida religiosa de todos.
O cotidiano das duas irmãs será rompido, quando lhes bate à porta Babette (Stéphane Audran). Numa noite chuvosa, chega-lhes a elegante mulher francesa, fugitiva da guerra civil que se abatera sobre a França, em 1871. No furor da guerra, Babette perdera o marido e o filho, executados por suas posições políticas. A ela restara apenas a fuga. Recomendada por um amigo das irmãs Martina e Philippa, refugia-se como empregada na casa delas, passando a viver humildemente, oferecendo os seus trabalhos em troca de abrigo e de uns poucos vinténs. Babette é uma sobrevivente, resignada em um mundo distante do que sempre vivera. Mas a sua verve humana transformará o cotidiano das irmãs e dos que se lhe ladearam durante décadas, movidos pela força linear de um destino considerado imutável. Babette quebrará o que parece ser incondicionalmente linear na vida.

Personagens Reluzidos Pelos Silêncios

Aos poucos, a voz em off faz o contacto entre o espectador e o espaço temporal do filme, deixando que as imagens na tela encontrem o seu momento no tempo, descortinando em flash-back, memórias fragmentadas de vidas esquecidas em algum lugar da sala, do quarto, do passado.
A câmera desperta a cumplicidade de quem a segue, induzindo-nos ao universo cotidiano dos habitantes daquela aldeia de pescadores, volvida na suavidade bucólica dos costumes seculares.
Movidas pelo silêncio das personagens, as imagens compõem, em flash-back constante, o preenchimento desses vazios silenciosos. Passado e presente estimulam a imaginação do espectador, que faz com liberdade permitida, uma leitura própria de cada personagem.
Além das duas irmãs, outras personagens menores, mas igualmente fundamentais na história, são reveladas, como a do velho General Lorenz Lowenhielm (Jarl Kulle), que quando jovem vivia uma vida desregrada, sem perspectivas morais ou futuras, obrigando o pai a enviá-lo para a fazenda de uma tia, próxima à aldeia das irmãs. Ao exilar-se naquela fazenda, o jovem oficial refletia a sua vida, quando foi surpreendido, durante um passeio a cavalo, pela presença mágica da jovem Philippa. Movido por uma doce paixão, ele consegue que a tia o introduza na casa do severo pastor, participando das reuniões e das orações. A partir de então, Lorenz interfere no coração de Philippa, mas a determinação do pai em fazer dela uma mulher devota, sem os vícios da carne ou das tradições do matrimônio, afasta-a de um possível futuro ao lado do jovem. Lorenz passa a ver a amada como uma visão de uma vida futura, mais pura, fundamental para as mudanças no seu ser. O amor juvenil interrompido entre ambos não gerou a dor, a frustração, mas nunca abandonou a sensação de uma perda qualquer.
Os silêncios das personagens rompem-se em cada flash-back, como se procurasse o enredo, a verdadeira história perdida de cada um. Cortes freqüentes e seqüências rápidas, descortinam mais vidas, como a do cantor lírico Achille Papin (Jean-Philippe Lafont), que após encontrar a fama e o sucesso, percorrer vários lugares em turnês, encontra na costa da Jutlândia um momento de paz e descanso. Ali conhece a bela Martina, que lhe fascina pela voz e pela delicadeza. Fascinado, Achille consegue convencer o pastor a deixar que dê aulas de canto à filha, para que ela desenvolva o dom a serviço da pregação. Assim como Philippa, Martina será separada de uma vida futura com Achille em nome dos ideais religiosos do pai. Lorenz e Achille deixaram, em determinado momento do passado, de fazer parte do universo das irmãs, seguindo a vida, que não é reta e nunca pára. Ao deixar de conviver com eles, únicos homens que tocaram além da fé, abalando o coração de cada uma delas, uma nostalgia melancólica sempre soprou nas poucas vezes que elas ousaram rever o passado.

O Bilhete Premiado

Babette chegou à Jutlândia trazida pela chuva. Ao bater à porta de Philippa e Martina, trazia consigo uma carta de Achille Papin. Também o passado das irmãs voltava naquele momento. A carta revelava a triste história daquela mulher, que durante a guerra civil francesa, teve o marido e o filho mortos. Perseguida e sem ter para onde ir, partiu, por sugestão de Achille, para a Dinamarca.
Quando se vêem diante de tão requintada senhora a pedir emprego, as irmãs não se sentem capazes de pagar por seus serviços, pois vivem com muito pouco, e tudo que têm dedicam-no à caridade. Mas Babette não se importa, sobrevivera à morte, perdera tudo, era uma outra mulher, já não precisa das glórias de outrora, precisava apenas sentir-se viva, em segurança, abraçando uma vida humilde, despida de qualquer vestígio de um passado glorioso, reduzido à tragédia através dos conflitos ideológicos do seu país.
Aceita pelas irmãs, Babette inicia uma nova vida, distante daquela França tumultuada de 1871. Torna-se empregada da casa, servindo de cozinheira. Não se lamenta da sorte. Seu estoicismo é determinante para sobreviver. Sua vida está fragmentada na violência que presenciou aos que amava e no presente sem brilho, a servir duas irmãs no crepúsculo iminente de suas vidas.
Em nenhum momento o espectador vê em Babette uma mulher estagnada, pelo contrário, adivinha-se uma ruptura por vir, um lamento, uma explosão silenciosa que jamais eclode. Cada silêncio da personagem traduz-lhe um gesto, uma intenção que se deduz, sem nunca ser revelada. Da ligação com o passado, Babette mantém apenas um bilhete de loteria, que uma fiel amiga renova-lhe todo ano. Será este gesto, aparentemente sem significado, que mudará o percurso de toda a história, quando, catorze anos depois, finalmente chega a notícia de que o bilhete foi agraciado com um prêmio de dez mil francos.

O Centenário do Pastor

Ao saber do bilhete premiado de Babette, Philippa e Martina pressentem que ela irá embora, afinal já tem como voltar à terra natal, já não há uma guerra civil e ela já não tem limitações financeiras. Mas surpreendentemente, Babette não prepara as malas, sabe muito bem que não são as condições financeiras que a separa da sua terra, mas sim as perdas, as dores do tempo, o rompimento de um cotidiano de vida que já não existia. Já não há o que encontrar em França.
O prêmio de Babette veio por ocasião do aniversário do pastor, que se estivesse vivo, completaria cem anos. Para que não se passe em branco a data, Philippa e Martina decidem prestar uma homenagem ao pai, oferecendo um jantar para algumas pessoas da aldeia. É neste momento que se ascende o passado de Babette, que se encontra com a mulher que fora. É um raro momento de poder assumir uma identidade perdida no tempo. Afinal era uma data especial, o centenário do homem que, explicita ou implicitamente, mudara a vida de quase todos os moradores daquela aldeia, que seguiam os princípios rígidos de um cristianismo protestante por ele disseminado.
Inesperadamente, Babette pede às irmãs para fazer um banquete em homenagem à memória do pastor. Babette pede que se lhe conceda a honra de preparar e oferecer um verdadeiro jantar francês, utilizando-se do dinheiro que ganhara com o prêmio. Surpreendidas, as irmãs relutam, mas por fim, aceitam tão inusitado oferecimento.
A partir de então, o filme toma proporções lúdicas, acendendo a alegoria da existência humana através do prazer supremo de um suntuoso banquete. Os momentos que precedem ao banquete mudam o cotidiano de toda a cidade. Babette encomenda vinhos da França, codornas e carnes especiais. O jantar movimenta toda a aldeia, desde a seleção dos alimentos, à entrega de caixas vindas do exterior. As movimentações são visíveis a todos, devido às proporções gigantescas que assumem.
Diante de tanto movimento, Philippa e Martina temem o que pode sair de todo aquele aparato. Estão assustadas, parecem diante de atos desencadeados de um grande drama montado em um palco sem fim. Ante ao desconhecido que se irá desembocar, as irmãs trocam olhares temerosos, quase que arrependidos de terem cedido aos caprichos de Babette. Presumindo uma catástrofe iminente perante os convidados, elas decidem que nada falarão. Calar-se-ão sejam quais forem os resultados daquele banquete.

O Banquete

Entre o jantar e os momentos que o precede, as cenas assumem tomadas rápidas e ligeiras. As imagens retratam um aspecto minucioso, de um realismo e naturalismo mesclados, desencadeados pelo galope e o tilintar dos guizos dos cavalos que conduzem as carruagens que trazem os convidados; pelos sons da cozinha de Babette, desde o barulho das frituras ou da água a derramar-se sobre as tigelas. Cada detalhe da preparação do jantar é mostrado como uma apoteose dilacerante de Babette.
Doze convidados sentam-se à mesa. É a partir da sensação que têm entre o medo da surpresa e o hedonismo de degustarem tão opífaro banquete, que o filme atinge o seu clímax e desvenda a chave do seu mistério. Cada prato servido é mostrado, fazendo que o expectador sinta-se à mesa, capaz de sentir o aroma inebriante de cada um deles. O prazer oferecido pelo banquete de Babette rompe com o marasmo da vida de cada um dos convidados, provando-lhes que, somente a morte destituí qualquer surpresa da vida.
De repente aquela aldeia simples, perdida nas costas frias da Dinamarca, mostrada através do som das ondas do mar, do vento e da chuva, vê-se confrontada com um banquete inusitado, tornando-se um centro faustoso digno do mais requintado salão de Paris. Babette transforma a vida através do prazer primário que vem da comida, e do requinte perfulgente da arte de cozinhar. Abre-se a seqüência de imagens que trazem os pratos, a gradação do cozimento, a apresentação dos sabores, dos aromas que se nos induzem as imagens. O prazer humano é degustado sem medos, sem as amarras do pecado, a vida é resultado dos temperos que advêm das mãos dos homens, neste caso, das mãos delicadas e intuitivas de Babette.
É no meio do jantar que há o encontro entre o passado de Babette e a sua vida atual. O verdadeiro sentido do filme e das intenções de Babette são revelados no momento em que o general Lorenz, ao saborear cada um dos pratos e a deliciar-se com as bebidas, descreve que só sentira aquele prazer há muito tempo, em Paris, em um luxuoso jantar preparado pela maior chef de cuisine da França. A partir desta revelação, não compreendida pelos ingênuos e extasiados convidados, o telespectador encontra a outra Babette, perdida no tempo, mas decifrada naquele momento, em que a imagem descobre-a na cozinha, sendo outra vez, ela própria, sabendo sê-lo pela última vez. Gastara a pequena fortuna que ganhara para ver o prazer que despertava nas pessoas que saboreavam da sua arte, gastara tudo para voltar a ser, por uma noite, a Babette da qual se perdera no tempo e nas adversidades humanas.

O Encontro de Babette com o seu Passado

Quando o banquete é encerrado, tem-se a sensação de que se saboreou cada prato servido. Na sala, extasiados convidados sentem que a vida foi diferente naquele momento, que passado e presente encontraram-se por algumas horas, limando cada melancolia impregnada pelos anos. Agradecidos a Deus e a Babette, cantam um hino religioso, regado pelo sabor de um licor e do café.
Na cozinha, Babette olha para o vazio, como se buscasse a elegia final da sua existência. Sente que cumprira o seu destino, oferecera um momento de alegria e prazer às pessoas simples daquela aldeia com a mesma pompa que o fizera aos nobres freqüentadores do sofisticado “Café Anglais”, em Paris, onde fora uma famosa chef de cuisine.
Desvendado o seu passado pelo reconhecimento do paladar do general Lorenz, Babette tem um momento de puro encontro consigo própria. Toma um copo de vinho da última garrafa que restara. Momento único da procura pelo prazer que oferecera a todos. Olha para o vazio, sabia que ao terminar o vinho, encerraria de vez com o seu passado, jamais voltando a ele. Celebra a si mesma, antes de voltar ao cotidiano do dia seguinte, com a certeza de que a vida embora pareça linear, cavalga por surpresas e prazeres que reluzem a rendição humana, traduzida aqui nas suas alegorias em cada prato servido.

Ficha Técnica:

A Festa de Babette

Direção: Gabriel Axel
Ano: 1987
País: Dinamarca
Gênero: Drama
Duração: 102 minutos / cor
Título Original: Babettes Gaestebud
Roteiro: Gabriel Axel, baseado na obra de Isak Dinesen (Karen Blixen)
Produção: Just Betzer, Bo Christensen, Benni Korzen
Música: Per Norgaard (original), Johannes Brahms e Wolfgang Amadeus Mozart
Direção de Fotografia: Henning Kristiansen
Desenho de Produção: Jan Petersen, Sven Wichmann
Figurino: Annelise Hauberg, Karl Lagerfeld, Pia Myrdal
Edição: Finn Henriksen
Efeitos Especiais: Henning Bahs
Som: Hans-Eric Ahrn
Estúdio: Panorama Film International
Distribuição: Orion Classics
Elenco: Stéphane Audran, Brigitte Federspiel, Bodil Kjer, Jarl Kulle, Jean-Philippe Lafont, Bibi Andersson, Ghita Norby, Therese Hojgaard Christensen, Pouel Kern, Hanne Stensgaard, Vibeke Hastrup, Asta Esper Hagen Andersen, Thomas Antoni, Lars Lohmann, Tine Miehe-Renard, Lisbeth Movin, Holger Perfort, Preben Lerdorff Rye, Ebbe Rode, Erik Petersen, Else Petersen
Sinopse: A fim de escapar da uma repressão em Paris, em 1871, Babette desembarca numa noite de tempestade, em uma aldeia da Jutlândia. Procura as irmãs Martina e Philippa, puritanas senhoras filhas do pastor da região, apresentando-lhes uma carta de recomendação de Achille Papin, um cantor de ópera que, no passado, fora professor de canto de uma delas. Na carta, Papin pede-lhes que acolham Babette em sua casa. Babette pede a elas para trabalhar como criada, tendo em troca apenas um quarto para morar. Relutantes a principio, elas aceitam Babette. Anos mais tarde, Babette ganha um prêmio na loteria. Inesperadamente, resolve gastar todo o dinheiro em um jantar francês, para comemorar o centenário de nascimento do falecido pastor. Os convidados para o jantar, pessoas simples, não conheciam a culinária francesa, os pratos sofisticados que eram servidos no Café Anglais, lugar onde Babette trabalhara como cozinheira. Assim, com a habilidade de fazer as pessoas sentirem prazer através do paladar, Babette transforma o jantar em um banquete que as duas irmãs e os habitantes da pequena aldeia jamais esquecerão.

Gabriel Axel

Gabriel Axel nasceu em Aarhus, Dinamarca, em 18 de abril de 1918. Grande nome do cinema europeu, tornou-se mundialmente conhecido através do filme “A Festa de Babette” (Babettes Gaestebud), de 1987.
Axel passou a maior parte da infância na França, longe da sua terra natal. Em Paris trabalhou no teatro, com Louis Jouvet, o que lhe fez desenvolver o amor pela dramaturgia. Quando retornou para a Dinamarca, trabalhou como ator no Royal Danish Theatre.
Na Dinamarca, Gabriel Axel atuou como diretor de produções de teatro, televisão e cinema. Após dirigir cerca de 16 filmes, retornou à França, onde dirigiu vários projetos para a televisão, construindo um trabalho respeitado e reconhecido pela crítica, obtendo, ao longo da carreira, várias menções honrosas.
A consagração definitiva veio com o filme “A Festa de Babette”, adaptação do livro de Isak Dinesen. O filme conquistou platéias do mundo inteiro, arrebatando o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1988. Na filmografia de Axel, constam sucessos como “Familien Gyldekál” (1975), “Den Rode Kappe” (1967) e “Det Kaere Legetoj” (1968).
Em 2003, Gabriel Axel recebeu prêmio especial pelo conjunto da sua obra no Festival Internacional de Cinema de Copenhague.

Filmografia de Gabriel Axel:

Filmes para a Televisão

1951 – Doden
1952 – Pantalones Bryllup
1952 – Forlovelse Indgaet
1952 – Skyggedans
1952 – Aften
1953 – Et Spil
1953 – En Bjorn
1953 – Hallo, Derude
1953 – Falske Nogler
1953 – Familien Hansen
1953 – Kong Renés Datter
1954 – En Svanesang
1954 – Hvem Ved?
1954 – En Mindefest
1954 – Livet er Skont
1954 – Lapointe og Ropiteau
1954 – Li Som Lidt Ensom
1954 – Tran
1954 – Acharnerne
1955 – En Skefuld Katharsis
1955 – Marguerite
1955 – Motivet
1955 – En Caprice
1955 – En Kvinde er Overflodig
1955 – Altid Ballade
1955 – Scarpins Gavtyvestreger
1955 – Simon og Laura
1956 – Det er Sa Yndigt
1956 – Dronninger af Grankrig
1956 – Doden
1956 – Falske Nogler
1956 – Kong Renées Datter
1956 – Froken Julie
1958 – Mode Ved Midnat
1966 – Om Tobakkens Skadelige Virkninger
1968 – Boubouroche
1977 – Un Crime de Notre Temps
1978 – La Ronde de Nuit
1980 – Le Coq de Bruyère
1980 – Le Curé de Tours
1981 – La Ramandeuse
1981 – Antoine et Julie

Filmes para o Cinema

1957 – En Kvinde er Overflodig
1958 – Guld og Gronne Skove
1959 – Heller for Helene
1960 – Flemming og Kvid
1962 – Det Tossede Paradis
1962 – Oskar
1963 – Vi Har det jo Dejligt
1963 – Tre Piger i Paris
1964 – Paradis Retur
1967 – Den Rode Kappe
1968 – Det Caeré Legetoj
1970 – The Ways of Women
1970 – Amour
1971 – Med Kaerlig Hilsen
1972 – Die Auto-Nummer – Sex Auf Radern
1975 – Familien Gyldenkal
1976 – Familien Gyldenkal Spraenger Banken
1977 – Alt pa er Braet
1987 – Babettes Gaestebud (A Festa de Babette)
1989 – Christian
1994 – The Prince of Jutland (Jutland – Reinado de Ódio)
1995 – Lumière et Compagnie (Lumière e Companhia)
2001 – Leila

Séries para a Televisão

1965 – Regnvejr og Ingen Penge
1981 – Mon Meilleur Noel (episódio: L’Oiseau Bleu)
1985 – Les Colonnes du Ciel (episódios: La Saison des Loups, La Lumière du Lac, La Femme de Guerre, Marie Bon Pain)
1986 – Les Colonnes du Ciel (episódio: Compagnons du Nouveau Monde)


DOMINGO – GÊNESIS DE GAL COSTA E CAETANO VELOSO

junho 12, 2009
Caetano Veloso e Gal Costa escreveram os seus nomes na história da MPB de forma imarcescível, unindo com magnificência indissolúvel, voz e melodia, poesia e lirismo, masculino e feminino, autor e musa, música e MPB. Gal Costa é a intérprete maior de Caetano Veloso, a sua voz é a estética musical perfeita da obra do baiano, ambos são gêmeos siameses, que mesmo quando separados, deixam um no outro algum órgão visceralmente intrínseco. Para percebermos este elo que une o dois, temos que nos remeter ao começo de tudo. “Domingo”, álbum de 1967, é este começo. É o primeiro disco das carreiras de Gal Costa e Caetano Veloso, lançando-os oficialmente na Música Popular Brasileira. “Domingo” concretizou a união dos baianos, entrelaçaram as suas carreiras, que mesmo quando distanciadas, seguiriam juntas estética e historicamente.Sendo o primeiro álbum de carreira de dois jovens e promissores artistas, “Domingo” já demonstra uma identidade vincada dos cantores, fato que não aconteceu nas estréias de grandes estrelas da MPB, como por exemplos “Viva a Brotolândia”, de Elis Regina, e “Louco Por Você”, de Roberto Carlos, ambos de 1961, álbuns que nada revelaram das digitais que seriam as suas carreiras. Gal Costa, com a sua voz rara, já se afirmava como quem queria fazer uma carreira sólida, e mesmo dividindo o disco com Caetano Veloso, já se impõe e escolhe os compositores que quer interpretar além do companheiro baiano.
Com uma sonoridade poética e saudosista, o álbum identifica-se com a Bossa Nova, somando características próprias. Lançado em julho de 1967, ele surge às vésperas da explosão da Tropicália, já nascendo ultrapassado na mente fértil e criativa de Caetano Veloso, onde já fervilhava idéias e projetos que mudariam a história da MPB, tanto na forma de compor, como na de cantar. Em novembro daquele mesmo ano, Caetano Veloso apresentava-se com a singular “Alegria, Alegria”, distanciando-se milhas do seu álbum de estréia.
João Araújo contratou Gal Costa e Caetano Veloso, na impossibilidade de produzir dois álbuns, juntou-os em um só. “Domingo” foi produzido por Dori Caymmi, que ao lado de Francis Hime e Roberto Menescal, fez os arranjos do disco. Lançado pela Philips, traz doze faixas, das quais Caetano Veloso canta a solo em quatro, Gal Costa em cinco, e juntos, dividem três belas canções.
Com “Domingo” estão iniciadas oficialmente, as carreiras de Gal Costa e Caetano Veloso. A partir de então, com exceções dos álbuns temáticos de autores, o artista baiano participou de todos os discos de Gal Costa, como compositor ou como convidado. O álbum mostra nitidamente uma identidade consistente dos seus intérpretes. Tanto que não envelheceu. Continua sendo algo à parte e especial na discografia de Gal e Caetano Velloso (no álbum com dois Ls). Não somente por ser o primeiro, mas por ser ímpar na carreira de ambos. Nunca mais repetiram o que e como aqui cantaram, tendo um encontro paralelo em “Cantar” (1974). Quem ouviu “Domingo”, viu na capa os cantores comportados, em fotografias a preto e branco, ambos cabelos cortados, suaves, jamais pensou que guardavam o vulcão que explodiriam meses depois, abalando o Brasil com a Tropicália.

Primeiros Passos Para a Fama

Quando deixou a Bahia, vindo para o sudeste, Gal Costa era apresentada como Maria da Graça, escrevendo este nome nos cartazes dos shows que participava ou nos festivais que representava. Para os amigos era Gracinha, para os mais íntimos era Gau. Em 1967, Maria da Graça, por sugestão de Guilherme Araújo, que se tornaria empresário do grupo baiano, trocaria o nome. Para o empresário, Maria da Graça escondia a modernidade que a baiana ameaçava explodir a qualquer momento, dando um aspecto de nome de cantora de fado. Guilherme Araújo foi buscar na intimidade da cantora, o nome definitivo, trocou o U do final por L, acrescentou o sobrenome Costa, e já estava, Gal Costa. O nome Gal comprou uma briga com Caetano Veloso, que queria Gau, como ela era chamada, achando-o mais baiano. Para ele, Gal era abreviatura de general, e Costa simbolizava o recém empossado ditador general Costa e Silva na presidência. Mas o nome Gal trazia a inspiração na cantora francesa France Gall, e a sua sonoridade cessava qualquer argumento. Na polêmica ideológica com Caetano Veloso, ganhou Guilherme Araújo, e o nome foi lançado com L e não U, trazendo sobrenome. Nascia Gal Costa, a cantora. Ficava para a história a singela Maria da Graça.
Como Maria da Graça, a cantora gravara um compacto simples, em 1965, com as faixas “Eu Vim da Bahia” (Gilberto Gil) e “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso), vendendo na ocasião, 80 cópias, todas compradas por seu antigo patrão, dono de uma loja de discos em Salvador. É também daquele ano, a sua participação no álbum de estréia de Maria Bethânia, com quem dividiu a faixa “Sol Negro” (Caetano Veloso). A voz de Maria da Graça já havia conquistado grandes nomes, como João Gilberto e Edu Lobo, sendo contado nos bastidores, que em 1966, o segundo pensou em convidá-la para dividir um álbum, mas foi Maria Bethânia quem realizou o projeto ao lado do cantor. Se a voz de Gal Costa era um convite a que se abrissem as cortinas dos mais sofisticados palcos da arte, Caetano Veloso era visto com restrições como cantor, especialmente por Guilherme Araújo, que o considerava um grande compositor de música, teatro e cinema. Como cantor, o baiano venceria muitos preconceitos, inclusive os seus próprios. No ano anterior ao lançamento de “Domingo”, participara do Segundo Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, em São Paulo, com a música “Um Dia”. Na mesma emissora, brilhou, em 1967, no programa “Esta Noite se Improvisa”, no qual os artistas participantes exibiam os seus conhecimentos de música popular. Ainda naquele ano, compôs a trilha sonora do filme “Proezas de Satanás na Terra do Leva e Traz”, de Paulo Gil Soares.
Foi neste clima pré-fama que Dori Caymmi convenceu João Araújo, na época diretor artístico da Philips, a fazer um long play reunindo Gal Costa e Caetano Veloso. Assim, contratados da gravadora, os cantores entraram em estúdio para o registro do primeiro álbum. A eles foram dadas as manhãs para as gravações, horário reservado aos iniciantes, o que deixou Caetano Veloso indisposto, visto que os hábitos boêmios, comuns entre os artistas, atrapalhavam a concentração matinal, normalmente guardada para o repouso do sono. Sob os raios de um sol matinal, desenhou-se a sonoridade poética de “Domingo”.

Saudosismo Melancólico na Evolução da Poesia de Caetano Veloso

Sob os arranjos e o violão de Dori Caymmi, a voz de Gal Costa abria o disco com “Coração Vagabundo” (Caetano Veloso), cedendo a segunda parte para a voz de Caetano Veloso. Era o começo feliz de uma das mais brilhantes duplas da MPB; autor e cantora, poeta e musa, mesclando a mais tenra das sensibilidades. A canção é suave e melancólica, o amor é a revelação dos vultos da alma e dos sentimentos. “Coração Vagabundo” foi o primeiro sucesso das carreiras dos dois cantores, não explodindo nas paradas, mas alcançando o tom exato de passaporte para a fama que se vislumbrava. Foi o maior sucesso do álbum.

“Meu coração não se cansa de ter esperança
De um dia ser tudo o que quer
Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher”

O disco segue suave, como um delírio poético, despido de qualquer vício. “Onde Eu Nasci Passa Um Rio” (Caetano Veloso), solo de Caetano Veloso, lembra o poema de Fernando Pessoa, “O Rio da Minha Aldeia”, trazendo um autor mais poeta do que compositor. É a descoberta de que o rio não tem dono, deságua longe do lugar que se lhe viu passar, como longe da terra natal deságuam os sonhos de quem precisa explodir o talento.
Gal Costa estréia a solo, absoluta, na faixa Avarandado” (Caetano Veloso). Os arranjos que introduzem a canção dão uma delineação épica, como se cortinas fossem abertas, trazendo uma paisagem de estrada cinematográfica, com plantas sublinhando os detalhes e a voz de Gal Costa desenhando a poesia. A cantora inicia-se totalmente Bossa Nova, voz suave, doce, diferente do que se tinha na MPB de então. Apesar de intimista, não era uma voz comportada como a de Nara Leão, a musa da Bossa Nova, era uma voz que prometia surpresas a cada nota interpretada.
Um Dia” (Caetano Veloso), salta dos palcos dos festivais para o disco, constituindo, segundo Caetano Veloso, a canção que ele mais gostou de ouvir a si mesmo interpretar em todo o álbum. A canção descreve uma paisagem bucólica do interior, de onde parte o autor, despedindo-se, seguindo o destino, com a sensação de que preparara uma volta que não se concretizaria. Era o próprio autor a distanciar-se das águas do mar da Bahia. Sem dúvida o melhor solo de Caetano Veloso no álbum.
Domingo” (Caetano Veloso), que dá título ao álbum, mais uma vez traduz uma paisagem do interior, prestes a ser deixada na distância do tempo. Como uma ciranda de despedida, a canção destila-se entre a suavidade poética e o dueto de Gal Costa e Caetano Veloso, seguindo a temática das canções até então espargidas por todo o disco.

Passeio de Gal Costa Pela Música de Outros Compositores

É a partir de “Nenhuma Dor” (Torquato Neto – Caetano Veloso) que a melancolia da partida dá passagem para o existencialismo sentimental, fechando por alguns momentos, o saudosismo latente do álbum. O solo de Gal Costa traduz com exatidão a angústia inatingível da poesia de Torquato Neto. O intimismo da cantora e a sua voz de sereia solitária, reluzem esta poesia devoradora, quase cruel. “Nenhuma Dor” é a primeira parte da trilogia existencialista que Gal Costa gravaria do “Anjo Torto” (como Torquato Neto era chamado), sintetizando em três canções toda uma obra, sendo as outras duas, as clássicas “Mamãe Coragem” (Torquato Neto – Caetano Veloso) e “Três da Madrugada” (Torquato Neto – Carlos Pinto). “Nenhuma Dor” é uma canção de amor intimista, como é Gal Costa no seu início de carreira, que lhe vale o título de João Gilberto de saias.
Gal Costa prossegue a solo, distanciando-se do universo incipiente de Caetano Veloso para interpretar “Candeias” (Edu Lobo), atingido o ápice do álbum, em uma das mais belas interpretações da carreira. De um requinte harmônico lato, a canção encaixava-se com a proposta do disco, feita para Gal Costa gravar, ela trazia as lembranças do autor das suas férias no nordeste. É como se Edu Lobo arrematasse o saudosismo de Caetano Veloso, afinal era fácil situar a canção na Bahia, quem conhece o Recôncavo Baiano provavelmente já passou pela cidadezinha de Candeias. Na voz de Gal Costa a pequena cidade assume proporções poéticas da terra do interior de todos nós. Ao contrário das outras músicas de Caetano Veloso, que cantam a partida, “Candeias” faz o reverso, é a volta da cidade grande para a pequena cidade entre as samambaias das lembranças. “Candeias” dá a dimensão do apogeu que a voz de Gal Costa revela, mostra a doçura da lírica dos primeiros cantos da sereia, que seduziria milhões de fãs marinheiros.

“Ainda hoje vou me embora pra Candeias
Ainda hoje meu amor eu vou voltar
Da terra nova nem saudades vou levando
Pelo contrário, pouca história pra contar”

Remelexo” (Caetano Veloso), um agradável samba-canção, traz o solo de um Caetano Veloso intimista, mas com um à vontade que, ao longo do álbum, finalmente desabrochou. Na canção parece que ele está pronto para deixar esta fase da carreira e abraçar o fantasma da futura Tropicália, já borbulhante na sua mente.
Minha Senhora” (Gilberto Gil -Torquato Neto), dá o toque de Gal Costa, que mesmo vinculada a Caetano Veloso, de quem traduz a sua essência musical, ela respira por instantes, outros universos de jovens compositores. “Minha Senhora” era uma canção com a qual Gal Costa apresentara-se no I Festival Internacional da Canção em 1966, sem grande repercussão na sua carreira. A letra da música acentua as raízes nordestinas da cantora, jamais perdidas no universo das canções que viria a interpretar.
Caetano Veloso faz o seu último solo em “Quem me Dera” (Caetano Veloso), mais um samba-canção que começa intimista e expande-se na desenvoltura que o cantor, aos poucos, vai adquirindo. Como todas as outras, segue a temática saudosista, com versos tristes que avistam a despedida da Bahia para os palcos do Brasil e do mundo. Com esta despedida, ele está pronto para encerrar o registro de um trabalho que já fizera, abraçando o que queria fazer.
Gal Costa faz o seu último solo com a alegre “Maria Joana” (Sidney Miller). Durante três faixas consecutivas, mostrou, além de Caetano Veloso, o universo de futuros grandes compositores do Brasil. Nesta canção, a cantora é totalmente discípula de João Gilberto, sem medo de misturar universos, cantando naturalmente samba ou Bossa nova.

Cravado na Jugular da Bossa Nova

O disco é encerrado com “Zabelê” (Gilberto Gil – Torquato Neto), o dueto final da dupla, que percorre universos não caetaneanos. Não menos belo do que o encontro em “Coração Vagabundo”, a canção distancia-se da proposta de Caetano Veloso, aproximando-se nitidamente da de Gal Costa.
Domingo” mostra o princípio de duas carreiras, traz a germinação do porquê que iria tornar Gal Costa a maior intérprete de Caetano Veloso. Voz e autor conseguem alcançar a identidade procurada. O álbum tem aspectos intimistas da Bossa Nova, mas não o é. As poesias de Caetano Veloso são mais acadêmicas e não se assemelham às de Vinícius de Moraes e às de Tom Jobim. A Bossa Nova, na sua essência bruta, tem uma característica de elemento carioca, de um Rio de Janeiro do fim dos anos dourados.”Domingo” é mais litoral nordestino, São Paulo retirante, quase Recôncavo Baiano, os compositores são baianos ou do nordeste (Caetano Veloso e Gilberto Gil são da Bahia, Torquato Neto de Teresina, Piauí), até o carioca Edu Lobo, no disco exalta Candeias. Sidney Miller com a sua “Maria Joana” lembra-nos um Rio de Janeiro misto de Noel Rosa e Vinícius de Moraes, meio Bossa Nova, meio samba.
É esta peculiaridade de “Domingo”, parecer Bossa Nova, mas não ser. Gal Costa parecer intimista e comportada na voz, lembrando Nara Leão, mas não ser. Há um agudo reprimido, há uma cantora preste a emitir acordes dissonantes. Caetano Veloso lembra a poesia de Fernando Pessoa. Mas na cabeça já tem “Alegria, Alegria“, e breve, a forma de poesia tornar-se-á menos acadêmica, terá mais jogos de palavras, mais desconstrução na métrica, o registro das marcas e produtos de então, “eu tomo uma Coca-Cola” ou, “o Sol nas bancas de revista” (o “Sol” foi um jornal que teve uma vida curta dentro da época da ditadura, considerado o pai do Pasquim). A desconstrução de “Domingo” será a construção da Tropicália. O álbum parece, mas não é Bossa Nova, é, como definiu Caetano Veloso: “sub-Bossa Nova. A única coisa que não é sub ali é a voz da Gal. É bonito, tem alguma graça, mas desde aquela época eu achava isso mesmo.

Texto da Contracapa do Disco, por Caetano Veloso

GAL participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. Por isso eu considero necessária a sua presença neste disco em que se registra uma fase do meu trabalho em música popular, algumas das canções que eu fiz até agora. Por isso, e também porque desde a Bahia que nós cantamos juntos, desde lá que ela faz com que meus sambas existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a composição e o canto: cada interpretação sua tem a mesma idade da canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas junto dela e um pouco por ela também. Ouso considerá-la como parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de “GAL interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta músicas de outros autores ou quando sou eu mesmo quem canta as minhas. GAL cantando o que quer que ela goste, isso já é minha música, e quando eu canto ela está presente. O seu canto (como o de Gil ou o de Bethânia) tem sido sempre meu parceiro.

II
Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga, o último samba de um amigo, isso é bom de cantar: uma música que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco estou enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz transformadas em música por Dori, Menescal e Francis e procuro amá-las despreocupadamente, tento aceitá-las como prontas (não há mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram, não aquilo que eu lhes dei.

III
Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração agora está tendendo pra caminhos muito diferentes dos que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (UM DIA, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num projeto de futuro. Aqui está – acredito que gravei este disco na hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma nota. Quero apenas poder dizer tranqüilamente que o risco de beleza que este disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo, Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe, a Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas de Dona Morena, a Dó, a Nossa Senhora da Purificação e a Lambreta.

Caetano Veloso

Ficha Técnica:

Domingo
Philips
1967

Produção: Dori Caymmi
Arranjos: Roberto Menescal, Francis Hime e Dori Caymmi

Faixas:

1 Coração vagabundo (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso, 2 Onde eu nasci passa um rio (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 3 Avarandado (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa, 4 Um dia (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 5 Domingo (Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso, 6 Nenhuma dor (Torquato Neto – Caetano Veloso) Interpretação: Gal Costa, 7 Candeias (Edu Lobo) Interpretação: Gal Costa, 8 Remelexo (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 9 Minha Senhora (Gilberto Gil – Torquato Neto) Interpretação: Gal Costa, 10 Quem me dera (Caetano Veloso) Interpretação: Caetano Veloso, 11 Maria Joana (Sidney Miller) Interpretação: Gal Costa, 12 Zabelê (Gilberto Gil – Torquato Neto) Interpretação: Gal Costa e Caetano Veloso