OS JOVENS AMANTES DOS DEUSES E DOS HERÓIS MITOLÓGICOS

julho 31, 2009

A mitologia grega traz relatos de lendas que contam o amor entre homens, um costume comum e cultural daquela civilização. Ao contrário dos ensinamentos judaico-cristãos que viam nas relações entre duas pessoas do mesmo sexo um crime contra a natureza e a religiosidade da sua sociedade, a iniciação sexual na Grécia antiga através da pederastia era uma forma de elevação social, onde homens aristocratas mais velhos passavam os seus conhecimentos culturais, militares e religiosos aos mais jovens, usando para esse fim o amor através do sexo.
Amar um jovem adolescente constituía para a sociedade grega a representação do sentimento puro, sendo ele preparado para o amor à virtude, aos ideais helênicos e para a vida, inclusive a sexual. A passagem do adolescente pelas mãos de um homem mais velho era breve, encerrando-se tão longo ele entrasse na idade adulta e viril e que se casasse, assumindo as obrigações cívicas.
O jovem adolescente que não estabelecesse laços de amizade e de amor com um homem mais velho era menosprezado pela sociedade, visto que não tinha quem o ensinasse a sabedoria da vida e da filosofia, a arte da guerra e as virtudes de ser um bom cidadão. Não ser honrado com o amor de um homem mais velho era não cumprir com os costumes e deveres cívicos.
Para que estes costumes fossem legitimados, eram transmitidos através de exemplos da religião politeísta pelos deuses e heróis. Não são todos os deuses ou todos os heróis mitológicos que trazem lendas do amor viril entre homens, sendo uma honra apenas dos mais poderosos e populares. Zeus (Júpiter), o senhor dos deuses, o mais poderoso do Olimpo, considerado o pai dos deuses e dos heróis de toda a Grécia, deixa a sua função procriadora para amar o jovem e belo Ganímedes. Poseidon (Netuno), o senhor dos mares, apaixona-se perdidamente pelo renascido Pélope, filho de Tântalo. Apolo, o mais popular e cultuado dos deuses, tem o maior número de amantes homens de toda a mitologia, sendo o amor disputado com Zéfiro, o vento das brisas suaves, por Jacinto, o mais famoso. Héracles (Hércules), o mais famoso e poderoso dos heróis gregos, também traz uma lista de lendas em que se apaixona por vários jovens do mesmo sexo. Teseu, o maior herói de Atenas, vive uma amizade viril com o amigo Pirítoo. Aquiles, o mais bravo guerreiro grego da famosa Guerra de Tróia, não esconde os seus amores por Pátroclo ou por Troilo. Finalmente Laio, pai de Édipo, o mais humano dos mitos gregos, ao raptar o príncipe Crisipo, levando-o à paixão e ao suicídio, desperta para si a maldição que teria feito sucumbir todas as gerações dos seus descendentes através da tragédia. Assim, deuses olímpicos, reis gregos, heróis militares, todos eles, principais representantes da hierarquia aristocrática grega, justificam com as suas lendas, o costume da pederastia e amor entre homens como a erudição do sentimento perfeito e puro da iniciação sexual e da vida social dos seus cidadãos.

O Rapto de Ganímedes

Um jovem quando muito belo, despertava a paixão e o desejo de homens maduros. Ser raptado por um homem mais velho era comum em sociedades como a cretense, sendo autorizado pela lei, estabelecendo um prazo de convivência entre raptor e raptado, que cessava com a volta do jovem trazendo presentes que a lei da cidade especificava, como um boi para ser sacrificado a Zeus, em uma festa que o jovem dava, declarando publicamente se havia concordado ou não com o rapto e com o relacionamento que estabelecera com o amante. Se ao ser raptado, o jovem noivo não concordasse com o amante, ele poderia, no momento do sacrifício do boi e da festa, exigir uma reparação e desligar-se da relação. Dificilmente este fato acontecia, visto que era uma desgraça social um jovem bonito e de família abastada não possuir amante em conseqüência da sua má conduta para com quem o raptasse. Os que eram raptados tornavam-se companheiros dos seus amantes, usufruindo privilégios especiais, como usar roupas da melhor qualidade; ocupar os lugares de honra nas corridas e danças, indicando que eram especiais para os seus amantes.
A lenda do rapto de Ganímedes por Zeus, o senhor do Olimpo, legitimava o ato de raptar adolescentes, dando ao costume a ritualização religiosa necessária. Zeus, pai absoluto dos deuses e dos heróis, tem as suas lendas voltadas para os amores impetuosos que sempre teve e que o levaram a raptar e amar diversas mulheres, com as quais sempre teve filhos. Para que as suas conquistas não fossem descobertas por sua colérica e ciumenta esposa Hera (Juno), Zeus usava os mais complexos disfarces para atrair as amantes: metamorfoseou-se de touro para atrair Europa ou de Cisne para amar a bela Leda. Fugindo da função dos amores fugazes e procriadores, surge a lenda de Ganímedes, um príncipe troiano que arrebatou o coração do mais poderoso dos deuses do Olimpo, fazendo-o por um momento, amante do amor que sublimava o belo, esquecendo-se da função milenar da procriação.
Ganímedes era um príncipe troiano, que, ao despertar a puberdade no corpo e na alma, trazia uma beleza rara. Seus traços de homem-menino reluziam pelos campos aos arredores da cidade de Tróia, onde cuidava dos rebanhos do pai. Foi numa tarde de primavera, que a beleza maliciosa de Ganímedes chamou a atenção de Zeus. O senhor do Olimpo, ao avistar beleza tão sublime, foi fulminado pela paixão. Impossível resistir à graciosidade do rapaz, ao rosto ainda imberbe, a transitar entre a juventude e à idade viril. Enlouquecido pelo desejo e pela paixão, Zeus transformou-se em um águia, indo pousar junto ao jovem. Encantado pela beleza onipotente da ave, Ganímedes aproxima-se, acariciando-lhe a plumagem. Imediatamente Zeus envolve o rapaz, tomando-o pelas garras, levando-o consigo para as alturas. Cego de paixão, o senhor do Olimpo possui o jovem ali mesmo, em pleno vôo. Ganímedes após ter sido ludicamente amado por Zeus, foi levado para o Olimpo.
Ao contrário das lendas das amantes de Zeus, que após o idílio do amor, eram perseguidas pelos ciúmes de Hera ou pela ira dos pais, sofrendo até o momento do parto do filho do deus, Ganímedes, apesar da fúria de Hera, chega ao Olimpo intacto, onde é recebido com honras, assumindo o posto privilegiado de servir o néctar da imortalidade aos deuses, substituindo Hebe na função. Após servir aos deuses, Ganímedes derramava os restos sobre a terra, servindo também aos homens.
A lenda legitima os privilégios que os jovens raptados tinham ao lado dos amantes. Evita-se o castigo, comum às amantes de Zeus, mostrando que o amor de um homem mais velho com um jovem era lícito, puro e honroso. Ganímedes é hoje um dos satélites do planeta Júpiter, uma homenagem ao mito.

Laio e o Amor que lhe Trouxe a Maldição

Segundo a tradição, apesar do rapto de adolescentes ter sido uma prática que encontrou o apogeu em Creta, teria sido iniciada em Tebas. A lenda do rapto de Crisipo, príncipe filho do rei Pélope, por Laio, na época príncipe tebano, teria originado o costume do seqüestro aos adolescentes, que se espalharia não só por Tebas e Creta, como também por Corinto. A lenda de Laio e Crisipo teria sido a primeira a abordar o homossexualismo na mitologia grega.
Laio era filho de Lábdaco, rei de Tebas. Quando o pai morreu, o príncipe ainda era muito jovem para reinar, tendo Lico, fiel seguidor de Lábdaco, assumido a regência. Mas uma velha pendência entre o regente e os irmãos Anfião e Zeto, cuja mãe tinha sido maltratada por ele, fez com que perdesse o reino para os rivais. Com medo de ser morto pelos dois invasores, Laio fugiu para a Élida, sendo acolhido com honras pelo rei Pélope e por seu filho, o jovem Crisipo.
Uma paixão avassaladora nasceu entre Laio e o virginal Crisipo. Às escondidas, os amantes vivem um amor intenso. Laio possui com furor o belo Crisipo, fazendo dele um homem. Quando o amor dos dois é descoberto, Laio teme a retaliação de Pélope, num ato desesperado, rapta Crisipo.
É a única lenda que encontra uma certa oposição ao homossexualismo, vinda da parte de Pélope. Talvez por Laio também ainda ser muito jovem, quase adolescente, o que não era comum na pederastia grega, já que a iniciação era privilégio dos homens mais velhos e de posição social e cívica definidas. Ou talvez por Crisipo ser, entre os três filhos de Pélope, o seu preferido.
Diante da perseguição do pai e do escarnecimento das pessoas, Crisipo, um jovem medroso e desestruturado pela descoberta da paixão, suicida-se, deixando Laio apenas com a dor da perda e perseguido por um ressentido e vingativo rei. Ao saber da morte do filho, Pélope dispara um grito de dor que ecoa por todos os reinos, lançando uma maldição sobre todas as gerações descendentes de Lábdaco, passadas, presentes e futuras.
Assim, Laio encerra a sua primeira paixão, nutrida pelo frágil Crisipo. Volta para Tebas, reassume o poder, casando-se com a bela Jocasta, que lhe dará um filho, Édipo, que o matará e casar-se-á com a própria mãe. Foi o preço que Laio pagou por seu amor infeliz ao príncipe Crisipo, a maldição sobre a sua cabeça.

Pélope, o Renascido Amante de Poseidon

Se por um lado Pélope opôs-se ao amor entre Laio e o filho, Crisipo, no passado ele próprio vivera uma paixão com o poderoso Poseidon. A lenda de Pélope começa com tragédia da sua morte. Filho do ambicioso e cruel Tântalo, rei de Sípilo, na Lídia. O soberano ofereceu um banquete aos deuses, e para testar a percepção de cada um, serviu como prato principal a carne cozida do próprio filho, Pélope, cortada em pedaços. Os deuses olímpicos perceberam o ardil. Indignados, recusaram o alimento, condenando Tântalo a viver atormentado no Érebo. Depois ferveram o alimento servido em um caldeirão, fazendo Pélope renascer.
Dos cortes ferozes, surgiu um príncipe ainda mais belo. O renascido Pélope chamou a atenção de deuses e mortais, que suspiraram pelo seu amor. De todos, Poseidon, o senhor dos mares, foi o mais audacioso, declarando-se ao renascido, tornando-o o seu amante. Com a proteção do amado, Pélope tornou-se um soberano poderoso e sábio, aprendendo com o deus todas as virtudes cívicas que um soberano deveria saber.
Já um homem adulto e viril, Pélope apaixonou-se pela bela Hipodâmia, filha de Enômano, rei de Pisa. Mas o soberano, temendo uma profecia de que um genro o iria assassinar, impunha uma perversa prova aos pretendes da filha. Propunha uma corrida de carros, em que o vencido era morto e o crânio pendurado na porta do palácio. Os cavalos do carro de Enômano eram presentes do deus Ares, por isto invencíveis. Pélope aceitou o desafio, pedindo ajuda a Poseidon, seu antigo amante, em nome dos tempos felizes que viveram juntos. Poseidon deu ao ex-amante um carro de asas douradas e invisíveis. Mesmo com o presente, Pélope temia a vitória de Enômano. Decidiu subornar Mírtilo, servo do rei, que também era apaixonado por Hipodâmia. Convenceu-o a retirar os pregos que seguravam as rodas do carro do rei, em troca dar-lhe-ia metade do reino e uma noite com a bela Hipodâmia. Assim foi feito, e durante a corrida, Enômano perdeu o equilíbrio e caiu em uma queda mortal. Morto o rei, Pélope casou-se com Hipodâmia. Ao reclamar a noite de amor com a princesa, Mírtilo recebeu o escárnio de Pélope, que o atirou ao mar.
Pélope tornou-se um monarca poderoso, reinando por diversas terras, que passaram a ser chamadas de Peloponeso. Deu origem aos Pelópidas, sempre sobre a proteção de Poseidon. A lenda define bem o caminho do homem grego, a sua iniciação com um homem mais velho, neste caso um deus, e o seguimento do curso comum e heterossexual, levando-o ao casamento e à procriação.

Amores Entre os Soldados Gregos

Na Grécia antiga, o homossexualismo estava também ligado às tradições militares. A prática era aliada aos bons e leais soldados, a amizade viril entre militares fazia-os mais leais e unidos uns aos outros. Naquela sociedade, composta por uma grande maioria de soldados, acreditava-se que o envolvimento sexual e emotivo entre os militares fazia com que estivessem mais dispostos a dar a vida uns pelos outros, fazendo deles guerreiros ferozes e leais. Portanto, a iniciação com homens experientes poderosos, era fundamental na educação sexual e militar dos soldados.
Os heróis soldados da Grécia, traziam os mitos com lendas que relacionavam a coragem ao homossexualismo. É o caso de Héracles, o maior herói da mitologia grega. Filho de um incesto de Zeus com a mortal Alcmena, o herói sofreu a vida inteira com a perseguição de Hera, levando-o à loucura, às grandes aventuras, à morte e finalmente, à ascensão ao Olimpo, já como imortal.
Várias passagens do mito de Héracles trazem a sua força viril, que conta, teria engravidado as cinqüenta filhas de Téspio, rei da Beócia, gerando cinqüenta varões. Mas o amor homossexual ronda o mito, sendo aceito em algumas variações da lenda o seu relacionamento com o sobrinho Iolau, que o ajudou em alguns dos seus trabalhos. Iolau foi presenteado por Héracles com uma esposa, a bela Mégara. Héracles e Iolau tornaram-se símbolo da fidelidade entre casais masculinos, que ao pé da suposta tumba do amante de Héracles, faziam juras e promessas. As Ioléias, jogos ginásticos e eqüestres celebrados em Tebas, reverenciavam o amor de Héracles e Iolau, presenteando os vencedores com armas e vasos de bronze.
Além de Iolau, outros amantes foram atribuídos a Héracles: Filoctetes, Jasão, Teseu e, o mais recorrente nas lendas, Hilas.
Segundo a lenda, na famosa expedição dos Argonautas, símbolo da expansão grega sobre o Mar Negro e às terras ao redor, Héracles foi acompanhado pelo belo Hilas, por quem se apaixonou ardorosamente. Os dois mantiveram-se inseparáveis durante toda a aventura. Seriam separados quando a nave Argos parou em Mísia, na Ásia Menor. Ali, as Naiades, ninfas dos lagos e das fontes, encantaram-se pela beleza reluzente de Hilas. Envolvidas pelo fascínio e pela paixão, elas atraíram o belo jovem até um lago, raptando-o e sumindo com ele. Desesperado, Héracles abandonou a expedição para encontrar o amado. Gritava com a voz embargada pela dor da perda. Foi inútil a procura, Hilas jamais foi visto uma outra vez por qualquer mortal. Restava ao grande Héracles chorar a dor da perda do amado.
Aquiles foi considerado o maior guerreiro da mítica Guerra de Tróia. O mais valente e feroz de todos os soldados gregos. Sua força viril contrastava com a vulnerabilidade do calcanhar, única parte do corpo que não era imortal, e com a sua instabilidade emocional. A sua amizade de Pátroclo era um elemento essencial da sua força, imprescindível também, para a força dos soldados gregos. Era esta amizade que se via como o verdadeiro ideal, esta amizade masculina levada ao extremo criou as condições para que o homossexualismo tomasse lugar de honra na sociedade grega. Criados juntos desde a infância, Pátroclo e Aquiles são inseparáveis. Quando Agamenão ofende Aquiles e este abandona os campos de batalha, será a morte de Pátroclo, que o fará voltar, com uma grande sede de vingança. Usando a armadura de Aquiles, Pátroclo é morto por Heitor, o maior guerreiro troiano. O corpo de Pátroclo é deixado nu no campo de batalha, e a armadura de Aquiles roubada. Enlouquecido pela morte do amigo, Aquiles toma-lhe o corpo nu, carregando-o como o troféu da dor. Furioso com a morte do amigo, Aquiles voltará aos campos, matará Heitor e muitos troianos, lutando até a morte.
Ainda em Tróia, Aquiles apaixona-se por Troilo, o mais novo dos príncipes troianos, filho de Príamo. A profecia dizia que, se Troilo chegasse à idade madura, Tróia jamais sucumbiria. Troilo é perseguido pelos gregos. Quando Aquiles depara-se com ele, fica irremediavelmente encantado com a sua beleza, apaixonando-se e oferecendo-lhe o seu amor. Mas Troilo recusa o afeto do herói grego, fugindo para o templo de Apolo. Inconformado com a rejeição, Aquiles executa o príncipe troiano no altar do templo. A execução de Troilo garante a vitória dos gregos sobre os troianos.
Finalmente Teseu, o herói militar mais valente e famoso de Atenas, matador do Minotauro, viveu amores por iguais, tendo nutrido uma paixão por Héracles, a quem ajudou a derrotar os centauros em uma batalha sangrenta. Teseu era amigo inseparável de Pirítoo, com quem teria vivido uma relação de amantes. Juntos, urdiram raptar Perséfone (Prosérpina), esposa de Hades (Plutão), o senhor do Érebo, para que Pirítoo a desposasse. Como castigo pela audácia, os deuses aprisionaram os amigos no hades por quatro anos. Teseu seria libertado pelo amigo Héracles; quando tentou libertar Pirítoo, foi impedido por Zeus. Pirítoo despediu-se do amigo, ficando encerrado para sempre no mundo dos mortos, enquanto que Teseu continuou a sua jornada pela terra, como um dos maiores heróis da Grécia antiga.

Os Amores de Apolo

Apolo tornou-se o deus mais popular de toda a Grécia antiga. Era o deus protetor da arte, da luz, da medicina, entre várias designações. Era tido como o deus da beleza perfeita e ideal perseguida pelos gregos. A prática de esportes era uma tradição na Grécia antiga, tendo Apolo como o deus protetor. Nos ginásios desportivos, os atletas praticavam exercícios totalmente nus. Era na prática da ginástica que muitos romances nasciam entre homens.
O mito de Apolo descreve intensamente a prática da ginástica com os seus amantes, mostrando uma virilidade que se buscava nos corpos nus dos ginásios. Um dos famosos amores homossexuais do deus foi Ciparisso, filho de Telefo e Jacinta. Apolo venerava a beleza do seu amado, fazendo-se terno e apaixonado. Juntos praticavam a corrida e o arremesso de dardos. Os corpos nus e perfeitos dos amantes corriam ao sol por entre os bosques. Um dia Apolo presenteou o jovem amante com um cervo. Ciparisso apegou-se àquele animal, fazendo-o sagrado. Certa vez, ao jogar os dardos com Apolo, feriu, por acidente, mortalmente o cervo. Ciparisso ficou inconsolável, sendo acometido de uma tristeza profunda. Derramava lágrimas intensas pelo animal sagrado. Na sua infinita dor, pediu ao amante que permitisse as suas lágrimas para sempre, sem jamais esgotar o fluxo. Não podendo negar um pedido ao amante, Apolo transformou-o em uma árvore cuja resina formava gotículas de lágrimas no tronco, nascia o cipreste.
O amor homossexual mais famoso de Apolo foi o belo Jacinto. O deus disputou o amor do jovem com Zéfiro, o vento oeste. O deus do vento jamais aceitou ser preterido por Apolo. O deus da arte e o amante costumavam praticar ginásticas e outros jogos. O arremesso de disco era um dos jogos preferidos dos amantes. Numa dessas práticas, Apolo arremessava o disco aos céus com perfeição, sendo observado pelo amado. Quando Jacinto arremessou o disco, Zéfiro, em sinal de vingança, soprou-o na direção do jovem, atingindo-o no rosto, fazendo com que caísse morto sobre a relva, coberto de sangue. Ao ver a fatalidade que acontecera ao amado, Apolo ainda tentou ressuscitá-lo, mas já era tarde, Jacinto fora arrebatado ao hades. O seu belo rosto tinha sido destruído pela tragédia. Desesperado com a morte do amado, Apolo fez nascer do sangue derramado de Jacinto, uma flor púrpura, com cálice em forma de lírio. Em Esparta, cidade de Jacinto, foi instituída uma festa e jogos em seu louvor, as Jacintas, que se realizavam todos os anos.
Belas, muitas vezes trágicas, outras vezes felizes, as lendas dos amores homossexuais da mitologia grega, tinham alguns pontos em comum; o objeto da paixão de um deus ou herói era de uma beleza rara, na maioria das vezes na idade adolescente. Normalmente a tradição grega permitia que, a partir dos doze anos, os jovens tivessem um homem mais velho como amante. Nas lendas, eles são, com poucas exceções, extremamente novos, mas, essencialmente adolescentes, já com a maturidade sexual do corpo latente, cravada na puberdade, longe da pedofilia. É preciso ter em mente que a fase da adolescência não existia para as culturas antigas, ao rapaz, ao transformar o corpo, ao nascer-lhe os pêlos pubianos e aflorar o órgão genital, era considerado um jovem adulto, assim como as mulheres, transformadas em adultas na primeira menstruação. Atingida esta fase, o jovem adulto era preciso ser iniciado na vida sexual e intelectual da sua cidade. E as lendas legitimavam este costume, só encerrado pela cristianização da civilização helênica.


FONTANA DI TREVI – A MAIS GRANDIOSA DAS FONTES

julho 30, 2009

Considerada a mais bela fonte do mundo, a Fontana di Trevi, literalmente traduzida como Fonte dos Trevos, é um dos mais sedutores monumentos de Roma. Sua beleza dimensional feita de água e pedra foi construída sobre o esplendor do barroco italiano. A beleza estética faz desta obra de arte um símbolo das esculturas que adquiriram uma mítica lendária, com linhas tênues entre o fulgor e o monumento, causando uma empatia romântica com todos os cidadãos do mundo, fazendo dele um triunfo do barroco.
A fonte, localizada na freguesia de Trevi, no Bairro do Quirinal, no centro histórico de Roma, desenha a fantasia das suas águas e estátuas aninhadas no centro de um palácio, possuindo vinte metros de largura e cerca de vinte e seis metros de altura. Verdadeira maravilha do mundo, seu esplendor começa quando nos aproximamos ao redor, ouvimos o som crescente das águas, e de repente, estamos diante de uma visão edênica da criação humana, contemplando uma das mais deslumbrantes vistas do planeta. O espaço da fonte abre-se aos olhos do visitante, com a força da água a emanar das pedras, como se adquirisse vida e arrebatasse-nos para um cenário preso na beleza da arte do homem.
Diante da fonte, a primavera é eterna, Netuno rompe a paisagem e a pedra na qual foi esculpido, tornando viva a arquitetura. Vento, luz, sombras, pedra, água, juntam-se como se fosse formado um imenso mar, num cenário intenso e de uma dramaticidade singular.
A Fontana di Trevi, com a sua paisagem espetacular e grandiosidade barroca, dá um toque romântico a Roma, às vezes perdido na concepção dos monumentos históricos intensos, como o Coliseu. É o ponto preferido dos casais apaixonados ou que se apaixonam na Cidade Eterna. É o ponto final da cidade, que se transforma no retorno. Reza a lenda que estrangeiros, forasteiros, turistas, quando visitam Roma, devem jogar uma moeda na fonte para que possam retornar. O ritual é repetido por todos, que assim, garantem a esperança de um dia poder rever Roma, e, principalmente, poder rever a fonte mais bela e romântica do mundo.

Origens da Fonte

A história da Fontana di Trevi remonta à época da Roma antiga. Era uma fonte que estava situada no cruzamento de três ruas, onde se formava um trivium (trevo), o que levou o sítio a ser chamado de Trebium.
O local da fonte marcava o ponto terminal do aqueduto Acqua Vergine, um dos mais antigos abastecedores de água de Roma, que tinha sido encomendado pelo imperador Otávio Augusto a Marcus Agrippa, sendo as suas águas usadas para fornecer água para os banhos termais. As águas que circulam na fonte têm dois nomes, Águas Virgens e Trevi.
Reza a lenda que, no século 19 a.C., alguns soldados sedentos procuravam por água, encontraram pelo caminho uma jovem romana virgem, que se apiedando deles, conduziu-os a uma fonte límpida, de água pura, localizada a cerca de vinte e dois quilômetros da Roma antiga. Através da lenda, surgiu o nome de Águas Virgens. Trevi teria derivado do nome que originalmente era chamado o local, Trebium. No monumento atual da fonte, a cena da lenda da jovem virgem e dos soldados está representada em escultura.
Nos primórdios da história da fonte, as suas águas foram levadas através de um pequeno aqueduto romano, diretamente ao local de banho de Marcus Vipsanius Agrippa, um dos maiores estadistas e generais do Império Romano, a quem se deve a construção do Panteão de Roma e dos seus principais aquedutos. Na Roma antiga, graças aos aquedutos, belas fontes foram erguidas por toda a cidade, contribuindo para a arquitetura clássica e imponente da capital do maior império do mundo.

De Leon Battista Alberti a Bernini, a Composição das Bases da Fonte

A água de Trevi serviu Roma por mais de 400 anos, sendo interrompido o seu abastecimento na época da invasão dos godos, que destruíram os aquedutos da cidade. Após as Guerras Góticas, os habitantes de Roma abasteciam-se da água suja do Tibre, rio que recebia os esgotos humanos, e da água de poços poluídos espalhados pela cidade. Esta condição decorreu durante toda a Idade Média, causando muitos males de saúde a quem usava a água insalubre.
Quando a Renascença assolou os reinos italianos, o esplendor das fontes antigas voltou a fazer parte da arquitetura romana. Em 1453, quando a Idade Média era definitivamente encerrada, o papa Nicolau V determinou que se consertasse o antigo aqueduto de Acqua Vergine. O arquiteto Leon Battista Alberti foi o autor do projeto de reconstrução do aqueduto, dando ao seu final, um receptáculo simples para receber a água, que seria totalmente destruído quando da construção barroca da Fontana di Trevi.
O papa Urbano VIII, em 1629, chegou à conclusão que a simplicidade da velha fonte não condizia com arquitetura romana da sua época, pois não trazia qualquer grandiosidade. Urbano VIII encomendou um projeto a Bernini para a construção de uma nova fonte de Trevi. O célebre artista fez vários desenhos. Neles projetou a reposição da fonte para o outro lado da praça, para que ficasse defronte ao Palácio do Quirinal, o que faria com que o papa pudesse observá-la da sua janela. Com a morte de Urbano VIII, o projeto de Bernini foi abandonado, o que não impediu que a fonte a ser construída futuramente, viesse a trazer muitos detalhes da idéia original do artista.

A Concepção Final da Fontana di Trevi

Após ser reconstruído, o aqueduto Acqua Vergine continuou a funcionar, mas as obras de restauração da freguesia de Trevi, que dariam origem à fonte atual, levariam três séculos para que se concluísse.
Com a morte de Urbano VIII, somente no século XVIII, Clemente XII, então papa, decidiu restaurar Trevi. Para que se realizasse a construção de uma nova fonte, em 1730, Clemente XII organizou uma competição entre artistas e arquitetos. Nicola Salvi, arquiteto romano, foi derrotado na competição, mas foi quem, efetivamente, realizou o projeto da nova Fontana di Trevi, trabalhando nele por quase vinte anos.
Nicola Salvi começou a execução do projeto em 1732. Morreria em 1751, quando ainda trazia o trabalho pela metade, ocultando-o atrás de um gigantesco biombo. Para concluir a obra, foi chamado um jovem artista, Giuseppe Pannini, que fez mudanças significativas no projeto de Nicola Salvi. Do original ele conservou os nichos de cima, que à esquerda traz Marcus Agrippa a dar ordens para que se construa o aqueduto, e à direita, a virgem, chamada de Trívia, a mostrar aos soldados a água de uma fonte subterrânea; abaixo destes relevos, substituiu as estátuas de Agrippa à esquerda, por uma figura feminina, a Abundância, que traz uma cornucópia; e à direita, substituiu a estátua de Trívia pela figura feminina da Saúde ou Salubridade. Finalmente, no nicho central da fonte, foi introduzida a estátua de Netuno com o seu séquito. A obra foi concluída em 1762, logo após a morte do papa Clemente XII.
A atual Fontana di Trevi tem o seu projeto atribuído a Nicola Salvi, sob forte influência dos desenhos de Bernini, e da realização final de Giuseppe Pannini.
A resultado final traz uma obra monumental, com vinte e seis metros de altura, vinte metros de largura, que tem como fundo o palácio Poli, que se harmoniza perfeitamente com a composição da fonte. As estátuas contrastam com a dramaticidade do uso da luz e da sombra. No nicho central está a estátua de um imponente Netuno, escultura de Pietro Bracci, sobre uma carruagem em forma de concha, puxado por dois cavalos marinhos, sendo o da esquerda o cavalo agitado, o da direita o cavalo manso; os animais são conduzidos por dois tritões. Ladeando Netuno, estão mais acima, as alegorias femininas da Abundância, à esquerda, e da Salubridade, à direita, estátuas de Filippo Della Valle. Acima das estátuas alegóricas, os relevos de Agrippa a ordenar a construção dos aquedutos de Roma, à esquerda; e da virgem Trívia a mostrar a fonte de águas aos soldados sedentos, à direita; estes relevos faziam parte da concepção original dos desenhos de Bernini. O todo da obra joga com o espaço e a pedra, dando um aspecto de movimento às estátuas centrais, que ao som constantes das águas que caem, dão a sensação de um imenso mar a encher a piscina.

Lendas de Trevi

A beleza barroca e exuberante da fonte, originou várias lendas ao seu redor, dando assim, um conceito romântico à atmosfera que se desenha à obra. Lendas que envolvem desde a concepção, aos efeitos que o monumento deixa nas pessoas que o visitam.
Uma das lendas mais tradicionais é a escultura de um grande vaso esculpido sobre o muro que circunda a fonte, na esquina com a rua Stamperia. Reza à tradição, que Nicola Salvi, o arquiteto que projetou a fonte, teria posto a escultura propositalmente, devido às rixas com um barbeiro que tinha a sua loja nos arredores da obra, na atual rua Stamperia. Durante os anos que decorreram as obras, Nicola Salvi era sempre confrontado com o tal barbeiro, que tecia comentários negativos à fonte que se desenhava aos poucos, desestabilizando o arquiteto. Para que tão indesejável vizinho não mais o aborrecesse, Salvi pôs à frente da barbearia este vaso, de forma que não pudesse ver os trabalhos.
Lenda ou não, o imenso vaso continua lá. Devido à sua forma, que lembra o ás de copas das cartas de baralho, os romanos batizaram a escultura com o sugestivo nome de Asso di Coppe (Ás de Copas).
Outra lenda diz respeito aos eternos e apaixonados namorados. Do lado direito da fonte, perto da escultura do às de copas, está a conhecida Fontanina Degli Innamoratti (Pequena Fonte dos Apaixonados), que com os seus jorros mágicos, asseguram aos casais apaixonados que juntos beberem da sua água, a fidelidade eterna um com o outro.
Outra lenda romântica afirma que, quando o amado tiver que partir, para a guerra, para servir ao exército, ou por simples viagem de negócios, terá garantido o seu amor eterno, mesmo ausente e distante, se juntos beberem um copo de água da fonte, sendo que este deve ser quebrado logo a seguir. A água mágica da Fontana di Trevi fará com que o homem que partiu jamais se esqueça da amada.
Mas a lenda mais pertinente e tradicional, é aquela que diz, se um estrangeiro ou um forasteiro for a Roma, e apaixonar-se pela cidade ou pela a sua gente, deve antes de partir, ir à Fontana di Trevi, virar-se de costas para ela e jogar uma moeda em suas águas. A volta à Cidade Eterna estará garantida. A lenda é eterna.

Nas Águas da Fonte, a Promesa da Volta a Roma

Roma é tradicionalmente conhecida pela beleza das suas fontes. Três belas fontes barrocas ornamentam a Piazza Navona: a Fontana Dei Quattro Fiume (Fonte dos Quatro Rios), a Fontana Del Moro (Fonte do Mouro), e a Fontana Del Nettuno (Fonte de Netuno), só para citarmos algumas. Mas nenhuma delas tem a tradição mítica da Fontana di Trevi. Nenhuma possui o seu glamour esplendoroso, o seu romantismo oculto e latente.
Em 1960, a fonte foi imortalizada para o mundo pelo cineasta Federico Fellini, no filme “La Dolce Vita” (A Doce Vida). Numa das cenas mais míticas do cinema mundial, a bela Anita Ekberg salta para dentro da fonte, banhando-se de roupa nas suas águas mágicas, aos olhos de um atento e deslumbrado Marcello Mastroianni. Depois do banho sedutor e sensual da atriz, a Fontana di Trevi jamais passou despercebida aos olhares do mundo.
Em 1998 a fonte foi preparada para o ano do jubileu de Roma, que aconteceria em 2000. Foi restaurada, tendo as esculturas lavadas e polidas, recebendo bombas que provinham a circulação da água e a sua oxigenação. A fonte estava pronta para entrar no novo século, no novo milênio, com o mesmo fascínio de sempre.
Quando às segundas-feiras, uma equipe de funcionários da câmara de Roma abre os ralos da fonte, esvaziando as suas águas, limpado a sujeira acumulada, recolhendo em sacos toneladas de moedas de todo o mundo, que serão destinadas aos cofres municipais, normalmente usado na ajuda da conservação do monumento; estes funcionários não estão apenas limpando a fonte, mas o sonho de vários turistas que, quando jogaram as suas moedas na água, levaram consigo a esperança tenaz de um dia voltar a Roma.


GLÓRIA MAGADAN – A RAINHA DAS TELENOVELAS

julho 29, 2009

Para que a história da telenovela no Brasil seja contada e compreendida, é essencial que se escreva nela o nome de Glória Magadan. A escritora, nascida em Cuba, foi a mais importante novelista da década de sessenta, essencial no início do gênero, tornando-se a mulher mais poderosa da televisão da época.
Se Janete Clair foi a consolidação do gênero, Glória Magadan foi o seu alicerce. Suas histórias folhetinescas eram desprovidas de qualquer bom senso ou apego à realidade. Era a ilusão, a fantasia e o sonho na forma bruta, às vezes grotesca. Distanciados da realidade brasileira, os folhetins da autora traziam histórias mirabolantes e exóticas, que podiam ter como cenário o deserto do Saara, o Japão medieval, a corte francesa do século XVIII. Amarradas de forma consistente, mas longe de uma lógica narrativa, as suas aventuras fascinaram o então incipiente público das telenovelas, fazendo da TV Globo uma máquina de produção do gênero, assegurando a audiência que necessitava na época que se lançou como a mais nova emissora de televisão do Brasil.
De 1965 a 1969, Gloria Magadan tornou-se a principal novelista da TV Globo, acumulando o cargo de diretora do núcleo de teledramaturgia da emissora, o que lhe conferiu um poder quase que sem limites. Poderosa, ela era temida por atores, autores e diretores. Uma palavra de desabono da cubana, e determinadas carreiras de ator ou atriz, poderiam cair em desgraça, sendo riscada dos bastidores da televisão. Caíram no seu desagrado nomes de poderosos como o diretor Daniel Filho, o ator Tarcísio Meira, e até a novelista Janete Clair, que em princípio de carreira, atraiu para si a inveja de Glória Magadan, insatisfeita que ela fizesse novelas com maior sucesso do que as suas.
O estilo dramalhão e inconsistente de Glória Magadan foi, aos poucos, tornando-se obsoleto, até que se extinguiu de vez, quando as novelas passaram a ser o principal gênero da televisão brasileira e o público passou a ser mais seletivo, exigindo lógica e uma aproximação efetiva das personagens dos folhetins com a realidade brasileira. Assim, Glória Magadan foi engolida por suas tramas exóticas, sendo demitida da TV Globo, em 1969. Terminava o reinado daquela que se tornara a mulher mais temida e muitas vezes, a mais odiada pelos atores. Terminava a era de Glória Magadan na TV Globo, aonde chegou a ser chamada de “Rainha das Telenovelas”. Esquecida nos tempos atuais, o seu nome é imprescindível na história da novela brasileira, da poderosa TV Globo e da própria teledramaturgia do país.

Glória Magadan Chega à Televisão Brasileira

Maria Magdalena Iturrioz y Placencia nasceu em Cuba, numa data que foge aos arquivos biográficos disponíveis. Adotando o pseudônimo de Glória Magadan, escreveria para sempre o seu nome na história da teledramaturgia latina americana, tornando-se uma das mais famosas novelistas do Brasil.
A autora deixou Cuba após a vitória de Fidel Castro e à instalação dos ideais revolucionários naquele país, refugiando-se em Porto Rico. Seria neste pequeno país da América Central que Glória Magadan passaria a trabalhar na Telemundo, estação de televisão local. Ali, seria contratada pela agência publicitária da Colgate-Palmolive, principal patrocinadora das telenovelas na América Latina. Ainda em Porto Rico, escreveu a novela “Yo Compro Esa Mujer”, em 1960. A agência enviou-a para desenvolver telenovelas que patrocinaria na Venezuela, país em que faria uma nova adaptação de “Yo Compro Esa Mujer”, para a RCTV. Em 1964 seria transferida para o Brasil, chegando a São Paulo como supervisora da seção internacional de novelas da Colgate-Palmolive.
No Brasil, passou a supervisionar a adaptação de textos de telenovelas de autores latino-americanos para a extinta TV Tupi. Supervisionou várias adaptações feitas por Walter George Durst, como “O Sorriso de Helena”, “Gutierritos, o Drama dos Humildes”, “Teresa”, “O Cara Suja”, “A Outra” e “A Cor da Pele”; e a adaptação de Daniel Más que resultou na telenovela “Um Rosto de Mulher”.
Glória Magadan chegaria a TV Globo no final de 1965. Contratada pela recém inaugurada emissora do jornalista Roberto Marinho, marcaria a sua estréia como autora de telenovelas brasileiras com o folhetim “Paixão de Outono”, protagonizado por Yara Lins, Walter Forster, Leila Diniz e Reginaldo Faria. A novela iria inaugurar o horário das 21h30 da TV Globo, dando início a uma bem sucedida carreira de novelista, que faria de Glória Magadan a mulher mais poderosa da televisão brasileira dos anos sessenta.

Surge o Primeiro Serial Killer Misterioso das Telenovelas

O primeiro sucesso veio em 1966, com “Eu Compro Essa Mulher”, história que Glória Magadan dizia, tinha inspiração no romance “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas. A novela marcou o início da gestão de Walter Clark na TV Globo, um dos responsáveis pela ascensão da emissora, que se iria transformar na maior do Brasil e uma das maiores do mundo. Dramalhão totalmente desprovido da realidade brasileira, trazia como protagonistas Yoná Magalhães e Carlos Alberto, que ao lado de Tarcísio Meira e Glória Menezes, seriam transformados nos maiores atores da televisão brasileira daquela década. No meio da história, Carlos Alberto e Yoná Magalhães casaram-se na realidade. Destacou-se na trama, a irreverente Leila Diniz, no papel da antagonista Úrsula. “Eu Compro Essa Mulher” definia bem o estilo da autora, trazendo na trama heróis perfeitos e lineares, heroínas sofridas e bondosas, sem quaisquer traços humanos, e vilões sem quaisquer vestígios de alma. O maniqueísmo da trama era explorado minuciosamente, sem qualquer compromisso com a realidade. A novela foi sucesso absoluto no Rio de Janeiro, alcançando relativa audiência em São Paulo.
Em 1966, Glória Magadan criou um dos seus maiores sucessos, “O Sheik de Agadir”, baseada no romance “Taras Bulba”, de Nicolai Gogol. Desta vez os delírios da autora centraram a história em Agadir, no Marrocos, transformando as dunas de Cabo Frio, litoral fluminense, no deserto do Saara. Nazistas, árabes e franceses são os protagonistas de uma história exótica, que mostra de forma fantasiosa a invasão da França pelos exércitos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. Henrique Martins protagoniza a trama, no papel do Sheik de olhos azuis, Omar Ben Nazir, que se iria apaixonar pela princesa francesa Jeanette Legrand, personagem vivida por Yoná Magalhães. Grandes aplausos viriam para a Madelon de Leila Diniz, popularizando a atriz para o grande público brasileiro, e Amilton Fernandes, como o grande vilão Maurice Dumont.
Mas o grande destaque da trama foi a estréia nas novelas do “serial killer”, gênero que se tornaria parte de grandes folhetins televisivos futuros. Durante toda a trama aparecia o misterioso “Rato”, que eliminava cruelmente várias personagens, enforcando-os na maioria das vezes. Nas misteriosas aparições do “Rato”, era mostrado em cena apenas um par de luvas negras. O enigma despertou a curiosidade do público, o que levou a TV Globo a promover um concurso para que se tentasse descobrir a identidade do assassino. A pergunta ecoava na emissora, “Quem matou?”, mas nenhum telespectador conseguiu descobrir quem era o assassino. Impossível, tamanha a incoerência da autora, que revelou a identidade do “Rato” como sendo uma mulher, Éden de Bassora, personagem da atriz Marieta Severo. Até hoje não se explica como a atriz, então com 19 anos, de corpo franzino e frágil, conseguiu estrangular robustos nazistas. Isto era o universo de Glória Magadan, completamente sem coerência ou compromisso com o bom senso, mas que levava o público ao delírio, numa época em que a televisão brasileira ainda não descobrira uma linguagem a seguir.
Um dos personagens morto pelo “Rato” foi Jean, vivido por Sebastião Vasconcelos. O ator trazia barba e bigode que fizeram a autora se lembrar do líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, despertando-lhe a animosidade, por isto ela eliminou-o da trama. Sobre as mortes que passariam a fazer parte das tramas, Gloria Magadan, já poderosa novelista e diretora de dramaturgia da TV Globo, declararia:
Primeiro crio os personagens. Depois é que nasce a história. Quando começo a escrever, fico obcecada, penso na trama o tempo todo. Pesquiso pessoalmente como os consumidores sentem os personagens e as situações. Quando constato que o público não aceita bem um personagem, reduzo seu papel, ou mato-o, sem o menor remorso. Nunca me arrependi de matar. Quem cai em desgraça junto ao público está liquidado.

O Grande Apogeu da Autora

As novelas de Gloria Magadan alcançariam o auge em 1967. Naquele ano, ela chegou a escrever duas novelas simultaneamente, “A Rainha Louca”, para o horário das 21h30, e “A Sombra de Rebeca”, inaugurando um novo horário de telenovelas na TV Globo, o das 20 horas.
A Sombra de Rebeca” reuniu em um único folhetim, as versões de “Madame Butterfly” de Puccini, e “Rebecca”, romance de Daphné de Murior. Yoná Magalhães era a protagonista, vivendo a japonesa Suzuki, com olhos orientais conseguidos através de uma densa maquiagem. Seu par romântico era, mais uma vez, o marido e ator Carlos Alberto. No final da trama, uma desilusão amorosa levava Suzuki a cometer um haraquiri. Glória Magadan só não explicou como a sua protagonista cometia um ato restrito apenas aos homens japoneses, afinal sua obra não carecia de tais explicações.
A Rainha Louca” levou os requintes de grande produção, característica que se tornaria uma marca nas novelas da TV Globo. As cenas que se passavam no México, tiveram as gravações feitas naquele país, um luxo para a época. Inicialmente foi pensada como uma adaptação da vida do rei Luís XVI da França e da sua mulher, Maria Antonieta, no século XVIII. Mas a direção da Globo sugeriu que fosse ambientada no século XIX, no México. Assim, Luís XVI foi transformado no imperador Maximiliano e Maria Antonieta em Charlotte, tendo como protagonistas Rubens de Falco e Nathália Timberg, vivendo as personagens, respectivamente. A trama marcou a estréia de Daniel Filho na direção das novelas da emissora carioca. Durante o decurso da trama, o ator Paulo Gracindo foi um dos perseguidos pela autora. Vivendo o conde Demétrios, que tinha poderes sobrenaturais, uma espécie de Drácula, o ator alcançou sucesso diante do público. Glória Magadan exigiu que ele fizesse caretas e contorções faciais, o que o ator recusou, assim, a personagem, que tinha uma grande participação no início da trama, foi desaparecendo ao longo do seu decorrer.
Foi ainda em 1967, que Janete Clair foi chamada por Glória Magadan para dar solução ao desastre que estava a ser a novela “Anastácia, a Mulher Sem Destino”, escrita por Emiliano Queiroz. O autor criara tantos personagens, que se perdera no meio da história. Janete Clair chegou na TV Globo, provocando um grande terremoto na trama, matando quase todo o elenco, deixando apenas vivos quatro personagens, dando um salto de vinte anos. Começando do zero, Janete Clair deu coerência à trama, e jamais deixou a TV Globo, transformando-se na sua maior novelista, inovando a linguagem e levando a obra de Glória Magadan à decadência.

A Decadência da Era Magadan na TV Globo

A partir da novela “O Homem Proibido”, que em São Paulo teve o título de “Demian, o Justiceiro”, as tramas exóticas de Glória Magadan entraram em decadência. Carlos Alberto vivia um justiceiro moldado no perfil do famoso Zorro, que vivia na Índia. Yoná Magalhães era a heroína da trama, que contava ainda, com um elenco luxuoso: Paulo Gracindo, Rubens de Falco, Mário Lago, Celso Marques, Marieta Severo, Cláudio Cavalcanti, Karin Rodrigues, Diana Morell, Emiliano Queiroz, José Augusto Branco e muitos outros.
O Santo Mestiço”, de 1968, trouxe Sérgio Cardoso, grande astro da época, à emissora de Roberto Marinho. O ator fazia três papéis, e teve na novela, a primeira experiência desastrosa da sua carreira. Irritado, Sérgio Cardoso foi o primeiro a adotar uma postura concreta contra os textos de má qualidade escritos por Glória Magadan, que culminou em um movimento que iria tirar a autora da poderosa posição de diretora do núcleo de dramaturgia da TV Globo.
Com o passar dos anos, a televisão brasileira foi assumindo uma identidade própria, que tomou a telenovela como principal veículo que expressava esta linguagem. Era preciso que o folhetim adquirisse mais consistência e maior aproximação com o público, com a realidade do país. A primeira a perceber isto foi a TV Tupi, que lançou, em 1968, duas novelas com a linguagem coloquial das ruas brasileiras, “Antonio Maria”, de Geraldo Vietri e Walter Negrão, e “Beto Rockfeller”, de Bráulio Pedroso. A linha da TV Excelsior passou a investir nos épicos da literatura brasileira, trazendo para a televisão clássicos nacionais, como “A Muralha”, de Dináh Silveira Queiroz, e “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, distanciando-se das histórias dos castelos medievais ou dos desertos da Arábia das novelas da TV Globo.
Glória Magadan não se apercebeu de tais mudanças, insistindo nas histórias extravagantes, distantes da realidade de um Brasil em ebulição, cuja televisão era tomada por festivais da canção que renovavam a linguagem da música e das artes. Em 1968, deflagrada a Tropicália e os festivais históricos da MPB, a autora cubana insistia nas suas alucinações folhetinescas, escrevendo “A Gata de Vison”, novela ambientada no Estados Unidos da época da Lei Seca, com direito a gangster e às suas metralhadoras. A emissora ainda tentou uma inovação, trocou os dois tradicionais casais protagonistas da televisão, desta vez Yoná Magalhães fez dupla romântica com Tarcísio Meira, enquanto que Carlos Alberto fazia dupla com Glória Menezes na novela “Passo dos Ventos”, de Janete Clair. Não houve grande química entre os protagonistas, nem entre o público e a trama. No decurso da novela, a autora apaixonou-se pelo ator Geraldo Del Rey, trinta anos mais jovem do que ela, com quem teria iniciado um romance. Glória Magadan transformou a personagem de Del Rey em protagonista da trama, o que levou Tarcísio Meira a reclamar do destino que estava sendo dado ao seu personagem. Glória Magadan eliminou a personagem de Tarcísio Meira da trama, matou a protagonista vivida por Yoná Magalhães, criando-lhe uma irmã gêmea para ser a heroína e par romântico de Geraldo Del Rey. A novela foi um fracasso. Glória Magadan acusou Daniel Filho de dar maior atenção às novelas de Janete Clair, culpando-o do fracasso da sua trama, levando o diretor a demitir-se da TV Globo. Enciumada com o sucesso ascendente de Janete Clair, a cubana chegou a proibir a autora de ter contacto direto com o elenco.
Em 1969, Glória Magadan escreveu a sua última novela para a TV Globo, “A Última Valsa”, inspirada no filme “Moulin Rouge”, de John Houston. Foi a última viagem da autora ao mundo dos duques e imperadores europeus. Cláudio Marzo e Theresa Amayo foram os protagonistas da trama. O público diria, definitivamente, não ao estilo de Glória Magadan, transformando a novela em um fracasso. Glória Magadan, a mulher mais poderosa da televisão, a Rainha das Telenovelas, foi demitida da TV Globo, em 1969, obrigando a emissora a reestruturar a sua teledramaturgia, mudando a sua linguagem. A mudança veio com “Véu de Noiva” (1969), de Janete Clair, que trocou os cenários europeus e os desertos árabes pelas praias cariocas, pelo cotidiano brasileiro, encerrando de vez o universo de fantasia de Glória Magadan na TV Globo.
Após a demissão da emissora carioca, Glória Magadan foi contratada pela TV Tupi. Em 1970 escreveu para a emissora paulista “E Nós Aonde Vamos?”, trazendo no elenco Leila Diniz (última aparição da atriz em novela, pois morreria em um acidente aéreo em 1972), Geraldo Del Rey, Márcia de Windsor, Theresa Amayo, Jorge Dória, Ítalo Rossi, Eva Todor, Adriano Reys, Marieta Severo, Yara Amaral, Roberto Pirillo e Gracindo Júnior, entre muitos. Ela ainda tentou adaptar o universo da sua teledramaturgia à exigência dos novos tempos, escrevendo uma história longe dos conflitos dos nobres europeus, dos ciganos e dos sheiks árabes, modernizando a ação, tentando contar os problemas da juventude. Mas o estilo da autora era, definitivamente, o da fantasia sem coerência. A novela foi um fracasso. Glória Magadan, outrora poderosa e temida, viu a sua carreira de novelista encerrada no Brasil.
Diante do fracasso final de “E Nós Aonde Vamos?”, a autora deixou o país, indo morar em Miami, local de refúgio dos cubanos resistentes ao governo implantado por Fidel Castro. Nos Estados Unidos, escreveu folhetins românticos para livros e revistas. Em 1996, Glória Magadan submeteu uma sinopse à extinta TV Manchete, que trazia o título de “Homens Sem Mulher”. Sobre o projeto, a autora declararia:
Há alguns anos submeti à Manchete uma idéia que ainda estou bastante segura de que alcançaria os recordes de Ibope. O título é “Homens Sem Mulher”. É sobre a inversão sexual.
Não se sabe se as crises constantes que levaram a TV Manchete à falência foram as causas do projeto não ter vingado. Glória Magadan faleceu em Miami, em 27 de junho de 2001, completamente esquecida, longe do título que a fez a “Rainha das Telenovelas”.

OBRAS

1960 – Yo Compro Esa Mujer – Telemundo (Porto Rico)
1960 – Yo Compro Esa Mujer – RCTV (Venezuela)
1965 – Paixão de Outono – TV Globo
1966 – Eu Compro Essa Mulher – TV Globo
1966 – O Sheik de Agadir – TV Globo
1967 – A Sombra de Rebeca – TV Globo
1967 – A Rainha Louca – TV Globo
1968 – Yo Compro Esa Mujer – TV Argentina
1968 – O Homem Proibido (Demian, o Justiceiro) – TV Globo
1968 – O Santo Mestiço – TV Globo
1968 – A Gata de Vison – TV Globo
1969 – A Última Valsa – TV Globo
1970 – E Nós Aonde Vamos? – TV Tupi

Supervisão:

1964 – O Sorriso de Helena – TV Tupi
1964 – Gutierritos, o Drama dos Humildes – TV Tupi
1964 – Pecado de Mulher – TV Tupi
1965 – Teresa – TV Tupi
1965 – O Cara Suja – TV Tupi
1965 – A Outra – TV Tupi
1965 – A Cor da Sua Pele – TV Tupi
1965 – Um Rosto de Mulher – TV Globo


LENDAS MEDIEVAIS

julho 28, 2009

A Idade Média ficou marcada pela profunda guerra religiosa travada com os islâmicos pela Terra Santa, a Palestina, pelo obscurantismo científico e cultural, que deu passagem para um exacerbado ascetismo. Guerras santas, pestilências, cultura ascética, superstições, isolamento feudal, e vários outros fatores, fizeram da Idade Média uma época fértil para a criação de lendas. Milhares delas foram disseminadas nos reinos cristãos, tendo sempre uma moral religiosa que às vezes fugia dos costumes, criando mitos profanos e estranhos, que se confundiam com a própria veracidade histórica, como a possível estadia de uma mulher no trono de Pedro, fato até hoje obscuro, tido por alguns historiadores como lenda e por outros como um acontecimento real.
Neste artigo, três lendas medievais foram selecionadas, adaptadas e contadas, para que se perceba um pouco do universo cristão da época: “O Judeu Errante”, “A Papisa Joana” e “Lady Godiva”.
O Judeu Errante” é uma lenda que mostra o sentimento anti-semita latente na Europa medieval. Ela apaga por completo a origem judaica de Jesus Cristo, fazendo com que se acredite que já nasceu cristão e foi escarnecido e morto por judeus. Narra a lenda de Ahasverus ou Ahsuerus, um sapateiro habitante de Jerusalém, que ao ver Cristo passar no dia da sua crucificação, escarneceu-o e negou-lhe um pouco de água, ou conforme a versão, ajuda para que se levantasse do chão. Como castigo, foi amaldiçoado pelo martirizado a viver errante pelo mundo, velho e sem forças, sem nunca morrer, até o fim dos tempos. Ironicamente, a lenda castiga o algoz com a vida eterna, prêmio que todo bom cristão almeja. A figura do Judeu Errante tornou-se mítica através dos tempos. Na Alemanha nazista foi ressuscitado como parte do programa anti-semita, tendo na caricatura de David Shankbone o símbolo do mito como forma de propaganda contra os judeus.
A Papisa Joana” teria sido o papa João VIII, sendo a única a mulher a governar a igreja católica num período de dois a três anos. A lenda surgiu no fim do século IX, relatando que Joana teria ocupado o cargo entre os pontificados de Leão IV e de Bento III, que corresponde aos anos de 850 a 1100. Disfarçada de homem, Joana teria ascendido como papisa, até que uma gravidez inesperada fez com que desse à luz a uma criança nas ruas de Roma, na frente da população. Descoberta a farsa, a papisa e o filho teriam sido mortos pela revolta popular. Muitos historiadores divergem quanto à veracidade da história, tendo aqueles que aceitam Joana como uma personagem real, e outros como lenda, como uma difamação da igreja ortodoxa de Constantinopla contra a igreja de Roma, originada possivelmente de uma sátira. Nenhuma corrente teórica chegou a um acordo, e Joana, a papisa, continua um mistério, fazendo, inclusive, parte das cartas de Tarô, de romances literários e personagens do cinema.
Lady Godiva” é uma lenda inspirada em uma personagem real. Godiva foi esposa do Conde Leofric, que em 1043 fundou a ordem de São Bento, em Coventry. Godiva é a única mulher a ter o seu nome registrado em um livro da época como dona de terras. Viúva de Leofric, teria morrido em 10 de setembro de 1067. Sua lenda marca o ideal medieval, o ascetismo a vencer o luxo, o sacrifício do corpo e da moral em nome do bem dos cristãos. Ao caminhar nua em cima de um cavalo, a lenda de Lady Godiva mescla o pudor religioso da Idade Média com as lendas profanas dos gregos antigos, fazendo dela uma narrativa sublime.

O Judeu Errante

O tumulto levou as pessoas às ruas de Jerusalém. Jesus, filho de José, entrara triunfante na cidade, desafiara os comerciantes e os guardiões do templo, presidira a ceia com os seus apóstolos, transmitira a sua mensagem definitiva no Monte das Oliveiras, para cair, tragicamente nas mãos de soldados, sendo julgado, açoitado, humilhado e condenado a ser crucificado.
As festas da Páscoa em Jerusalém foram interrompidas para que se acompanhasse o martírio daquele que se dizia o Messias, que viera para elevar o seu povo, acabar com os sofrimentos dos judeus. Pelas ruas da cidade, o profeta caminhava humilhado, a levar a cruz nas costas, a mesma que serviria como suplício final. Caminhando enfraquecido, quando se deixava cair, era obrigado a levantar através dos açoites impiedosos dos soldados romanos.
Alheio ao tumulto da cerimônia que precedia à crucificação, Ahasverus trabalhava dentro da sua casa, a preparar o couro que usava para fazer os sapatos que vendia. Era um homem calado, frio e alheio aos dramas e às pessoas à volta. Sua barba espessa escondia as marcas que lhe ia esculpindo o tempo. Não havia Páscoa ou tradições que lhe arrebatasse do cheiro do couro curtido, trabalhado artesanalmente. Fechar um acerto de casamento com uma jovem estava longe de qualquer plano que fizera. A sua solidão latente era o prêmio maior que já adquirira. A sua arte com o couro a realização da alma.
À medida que o supliciado aproximava-se da rua onde Ahasverus morava, o tumulto tornava-se insuportável. Pessoas gritavam, algumas pediam a morte do suposto Messias, outras pediam misericórdia por sua vida. O sapateiro procurou ignorar o barulho. Continuou a recortar o couro curtido. De repente um estrondo bateu-lhe na porta, fazendo com que ela se abrisse. Parte de uma cruz entrou pela sala. Ahasverus viu um homem atormentado, caído na sua porta, com uma coroa de espinhos na cabeça, o rosto coberto de sangue e as costas em carne viva. Ahasverus irritou-se com aquela imagem. Sentiu-se profundamente incomodado, como se aquele homem ensangüentando, a descansar por um momento na sua porta, fizesse com que todos os males da sua alma se lhe fosse revelado. Tomou-se de cólera quando viu gotas de sangue a sujar a sua porta. Deixou os afazeres e aproximou-se do supliciado, que caído no chão, pediu-lhe ajuda para se erguer. Mas Ahasverus não se deixou comover, com o pé direito, empurrou o nazareno, vociferando com arroubo:
-Sai da minha porta! Anda, põe-te a andar! Vá logo!
Naquele momento Simão, o Cireneu, apiedando-se de Jesus, ofereceu-se para ajudá-lo a reerguer-se do chão com a cruz. Antes de continuar o caminho para o martírio, o nazareno olhou profundamente Ahasverus, falando-lhe mansamente:
-Eu vou, mas tu ficarás… Caminharás errante e sem descanso pelo mundo até a minha volta…
O olhar que Jesus, filho de José, lançou para o sapateiro, fez com que ele estremecesse a alma. Sentiu-se paralisado, a ver aquele homem caminhar para a morte, afastando-se da sua tenda, deixando-o com uma maldição eterna. Ainda no fim da tarde daquela sexta-feira, quando o céu escureceu e o nazareno morreu na cruz, Ahasverus viu a barba do seu rosto ficar branca, as mãos envelheceram, sem que tivessem mais habilidade para trabalhar o couro. Ahasverus perdera a juventude e a sua arte. A solidão passou a queimar-lhe o peito.
Lentamente Ahasverus viu o tempo passar, os seus contemporâneos sugados pela morte. Sua alma tornou-se inconstante, peregrina. Uma grande nuvem de poeira bateu-lhe na porta, arrebatando-o e levando-o para as estradas do mundo. Quanto mais envelhecia, mais se distanciava da morte. Ahasverus passou a percorrer cidades com ruas sem fim. Por onde passava, era conhecido como o Judeu Errante, o eterno estrangeiro, sem pátria, sem raízes.
Nas vilas, nas aldeias, nas terras mais distantes, o povo era surpreendido por um redemoinho de poeira, era o Judeu Errante que vinha dentro dele, numa peregrinação permanente, a carregar consigo a maldição por ter sido cruel com o nazareno. Todos, quando viam o redemoinho, fechavam as suas portas e janelas, até que passasse o amaldiçoado, evitando que o agouro entrasse pela casa. O Judeu Errante vaga no meio da poeira, atormentado e solitário, na esperança do dia em que Jesus, filho de José, retorne ao mundo e anuncie o fim da sua maldição e dos tempos.

A Papisa Joana

No princípio do século IX, os ingleses dirigiram-se às terras da Saxônia, conquistada pelos cristãos, para ali, propagarem a fé da igreja romana. No meio dos propagadores da fé estava um padre inglês, que levava consigo uma jovem de doze anos, grávida. Ele a raptara dos pais e para fugir à desonra do ato, seguira para as terras germânicas. A jovem deu à luz em Mayence, a uma menina que foi chamada de Gerberta.
A menina cresceu, tornando-se uma bela jovem. Aprendera com o pai os estudos seculares, enchendo-se de erudição, surpreendendo a todos os doutores com a sua sabedoria. Gerberta interessava-se pelas ciências, mesmo diante das limitações que se lhe impunham por ser mulher, jamais abandonou o aprendizado. Sua alma intelectual só deu uma trégua quando foi seduzida por um jovem frade da abadia de Fulde. A paixão arrebatou aos dois, fazendo com que se entregassem aos prazeres do amor. O frade, de família inglesa, convenceu a jovem que fugisse com ele. Para acompanhar o amante, Gerberta, que passou a ser chamada de Joana, despiu-se da sua identidade e das raízes, vestindo roupas de homem. Em Fulde, viveu com o amante sob o disfarce, enganando a todos.
Mais tarde, os amantes partiram para a Inglaterra. Apresentada como homem, Joana pôde aprofundar os seus estudos, tornando-se ao lado do amante, os maiores eruditos de toda a Grã-Bretanha.
Joana e o amante viajaram por diversos países, buscando a erudição suprema. Passaram pela França, pela Grécia. Por dez anos os amantes viveram a paixão de forma velada em terras gregas. Um dia, o companheiro de Joana foi vítima de uma doença súbita, que lhe consumiu a vida em poucas horas. Solitária e feita em homem, Joana deixou a Grécia, retirando-se para Roma.
Em Roma Joana foi admitida na academia da cidade para ensinar as sete artes liberais. Atraiu para si as honras de monges, padres, ricos senhores feudais e doutores, tamanha era a erudição que trazia. Quando o papa Leão IV caiu doente, Joana foi citada para que ocupasse o seu lugar. Assim, após a morte do papa, aclamada pelos cardeais, diáconos, clero e povo; disfarçada de homem, pela primeira vez uma mulher foi eleita como papa, sentando-se no trono de Pedro, usando o nome de João VIII.
Joana fez um pontificado que foi aplaudido e reverenciado por todas as terras cristãs. Mas a sua verdadeira essência não lhe permitiu viver a farsa por completo. Apaixonada por um oficial da Guarda Suíça, Joana fez dele um amante, revelando-lhe o seu segredo. Nos quartos frios do Vaticano, viveu o seu amor com intensidade, até que ficou grávida. Com as roupas largas que usava, não lhe foi difícil ocultar a gravidez dos olhos do povo e do clero.
Anualmente, os romanos celebravam a festa das Rogações. Era costume que o papa seguisse em frente a uma procissão solene, montado em um cavalo. Joana não fugiu à tradição, montou um cavalo ao sair da igreja de São Pedro. Quando deixou a basílica, a papisa estava revestida com ornamentos pontificais, mostrando a exuberância de toda a pompa da igreja. Dirigia-se à basílica de São João de Latrão acompanhada de um séquito, dos clérigos, nobres e do povo de Roma. Quando caminhava entre a basílica de São Clemente e o anfiteatro Domiciano, o Coliseu; foi arrebatada por fortes dores de parto, tão violentas que fizeram com que caísse do cavalo. Assustado, o povo não se apercebia o que estava acontecendo com o pontífice, que se contorcia no chão. No meio das dores, Joana rasgou os ornamentos e vestes sagradas, expelindo das entranhas, para espanto geral, uma criança.
Humilhada, desmascarada e vencida, Joana sangrava incessantemente, devido à queda do cavalo e ao parto difícil. Tomados pela vergonha e pela cólera, membros do clero cercavam o corpo da papisa para escondê-la da fúria do povo. Diante do choro da criança, um bispo ergueu as mãos para o céu e disse:
-Milagre! Milagre!
Mas o ardil foi em vão. Joana morreu sem que se lhe fosse prestado socorro. Deu um último suspiro e, ainda a sentir-se vitoriosa, partiu para o mundo dos mortos. A criança recém nascida foi sufocada pelos padres. Mãe e filho foram enterrados sem pompas no mesmo túmulo.
Para que não se cometesse o mesmo engano, os sucessores de Joana passaram a ser submetidos à prova da cadeira furada. Após a eleição, momentos antes de ser conduzido ao palácio de Latrão para a tomada de posse, o papa eleito assentava-se em uma cadeira furada no centro, que ficava na capela de São Silvestre, com as pernas separadas, o corpo meio estendido, com os hábitos pontífices abertos, confirmando aos assistentes a prova da sua virilidade. Após ser tocado na genitália por dois diáconos, ouvia-se o grito de um deles:
-Temos um papa!
Joana, a papisa, foi a única mulher da história a presidir a igreja de Roma por quase três anos. A maternidade pôs fim ao seu pontificado!

Lady Godiva

Em Coventry vivia-se um tempo difícil. O sol não aquecera os pomares, fazendo com que as azeitonas e as vinhas não produzissem o suficiente para que se fizesse com fartura o azeite e o vinho. A miséria do povo era tão latente quanto à modéstia de jóias que as mulheres da nobreza traziam sobre o corpo, ou as vestes modestas que faziam dos seus habitantes os menos abastados de toda a Inglaterra.
Como se não bastasse a penúria vivida, a insatisfação assolava os habitantes, cada vez mais empobrecidos pelos altos impostos cobrados pelo conde Leofric, senhor absoluto daquele feudo. Grande parte do alimento colhido naquela estação ingrata, saía da boca do povo para que se pagasse os impostos ao nobre senhor. A fome pairava afoita pelas casas, pelos campos, por Coventry.
O conde Leofric era casado com uma das mulheres mais belas de toda a Inglaterra. Lady Godiva era serena, cabelos sedosos, longos e dourados como os raios do sol. Seus olhos eram azuis como o mar, traziam uma expressão de infinito que seduzia ao marido e todos os súditos em volta. Lady Godiva era de uma bondade imensa. Servos e escravos eram tratados por ela com dignidade. Não se furtava da caridade e de ajudar aos desvalidos e desprovidos da grandiosidade da vida e da sua opulência secular.
Um dia, os servos trouxeram diante do conde um camponês que fora apanhado a roubar nabos da horta de Leofric. Levado diante do conde, o infeliz declarou que cometera aquela imprudência extrema por não ter nada para comer, que os últimos grãos que colhera foram usados para pagar os impostos devidos. Que os cinco filhos pequenos choravam de fome, atormentando-o toda a noite. Ao ouvir os relatos do infeliz, Lady Godiva comoveu-se, convenceu o marido a não punir o infeliz, fornecendo ainda, alimentos para os seus filhos. Mesmo irritado, o conde acedeu com a bondade infinita da mulher.
Depois dos acontecimentos, Lady Godiva andou por todos os cantos de Coventry. Montou em seu cavalo, atravessou as muralhas, rondando por toda a parte. Descobriu que a fome assolava o lugar. Que grande parte dos alimentos colhidos iriam para os impostos do conde. Compadecida com o sofrimento daquele povo, Lady Godiva prometeu a si mesma intervir e a ajudá-lo.
Quando retornou ao castelo, encontrou o marido no estábulo, a supervisionar a alimentação das bestas. Lady Godiva desceu do seu cavalo. A respiração arfava de cansaço. Mesmo assim, encontrou forças para contar ao marido da tristeza e miséria que se abatia sobre Coventry. Falou com tanta ênfase que as lágrimas afloraram-lhe os olhos, derramando-se sobre as faces. O conde ouviu a mulher, que lhe implorava para que abaixasse os impostos. Não se deixou comover, mas as lágrimas da esposa, a sua veemência em defender os oprimidos, fizeram com que Leofric tentasse um ardil. Usando da sua inteligência sarcástica, ele esboçou um sorriso irônico e disse à mulher:
-Muito bem, já que insistes tanto na defesa deste povo, comovendo-me com as lágrimas que destroem a cor do céu dos teus olhos, concedo-te o pedido. Mas para que se realize, imponho-te uma condição, que a próxima vez que fores cavalgar, tu o faças sem roupas, completamente nua pelas ruas de Coventry.
-Tenho a tua palavra de que se o fizer, irás cumprir a promessa?
-Minha amada, se cavalgares nua pelas ruas de Coventry, não só abaixarei os impostos, como perdoarei a dívida aos mais necessitados.
-Que assim seja feito.
Leofric sorriu para a mulher. A promessa fora-lhe fácil fazer, difícil seria Lady Godiva cumprir a condição que impusera. Estava confiante de que ela desistiria e, ao sentir-se culpada, deixar-lhe-ia em paz com aquelas lamúrias.
Mas Lady Godiva trazia no coração uma bondade maior do que qualquer moral estabelecida pela mesquinhez dos homens. Lady Godiva mandou que os seus servos avisassem ao povo do seu sacrifício para salvá-los dos impostos e da fome. Pediu que durante a sua cavalgada penitente, todos os moradores deixassem as ruas e que se fechassem em suas casas. Comovido com a grandiosidade de Godiva, o povo de Coventry aceitou atender-lhe o pedido.
Assim, Lady Godiva desafiou a ironia e mesquinhez do marido. Despiu as vestes no estábulo, montou, completamente nua, o seu belo cavalo. Cavalgou por todas as ruas de Coventry de cabeça erguida, sem que ninguém ousasse observá-la. Somente Jack, o moleiro, não resistiu de contemplar tamanha beleza edênica. Contrariando a todos os moradores, abriu uma fresta da janela da sua casa, ao olhar tamanha beleza nua a desfilar pelas ruas, viu uma grande luz sobre os seus olhos, que foram cegados para sempre.
Ao retornar da cavalgada, Lady Godiva encontrou o conde à espera. Comovido, ele vestiu as roupas à mulher, depois se ajoelhou aos seus pés, reafirmando a palavra dada. Levantou-se e beijou a mulher.Leofric retirou os impostos altos dos ombros do seu povo. Naquele ano as colheitas foram abundantes em Coventry. O azeite jorrou nos lagares, o trigo transformou-se em pães quentes sobre as mesas, e o vinho abençoou as refeições. Lady Godiva passou a ser amada pelo seu povo, até mesmo por Jack, o moleiro, que depois da luz da nudez da mulher sobre o cavalo, não viu mais nada na vida.

Adaptação Livre de: Jeocaz Lee-Meddi


OS SEQUESTROS QUE ABALARAM A DITADURA MILITAR

julho 26, 2009

Em 1 de abril de 1964 foi instaurada no Brasil uma ditadura militar que iria perdurar por mais de vinte anos. Durante este período, várias foram as fases e as faces do regime repressor. Recebidos por grandes manifestações favoráveis, com milhares de pessoas acorrendo às marchas de apoio, os militares iniciaram a caça às bruxas. Incitaram o incêndio ao prédio da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), encerraram organizações sindicais e estudantis, caçaram políticos opositores, expurgaram as alas de esquerda de dentro das forças armadas, acabaram com o voto popular para presidente.
De 1964 a 1968 a luta dos estudantes passou a ser clandestina, ou seja, a UNE fora dissolvida, mas continuava a existir na ilegalidade, assim como vários partidos de esquerda. Havia uma esperança de que a situação política fosse revertida e os militares golpistas voltassem para a caserna. 1968 foi o ano de todos os protestos. Movida pelos movimentos internacionais daquele ano, a resistência à ditadura no Brasil promoveu passeatas e atos públicos de grande repercussão. A esperança apagou-se de vez, em 13 de dezembro de 1968, quando o Congresso foi fechado e o Ato Institucional Nº 5 foi promulgando, minando qualquer possibilidade de diálogo, numa ditadura que se tornou ainda mais repressiva e sanguinária.
As conseqüências do endurecimento do regime militar foram irreversíveis em alguns setores de oposição. Acossados, membros de esquerda, que viram os seus líderes presos e torturados, sem direito a hábeas corpus, passaram a conclamar o fim da contestação pacífica, mergulhando numa contundente resistência guerrilheira. Estava declarada a luta armada no Brasil.
A luta armada gerou os famosos guerrilheiros da esquerda radical. Consistiu em jovens idealistas, a maioria com menos de 25 anos de idade, a pegar em armas, a assaltar bancos e supermercados, obtendo através destas ações, fundos para manter os guerrilheiros, todos a viver na clandestinidade, impossibilitados de trabalhar ou de ter direitos cívicos. Ataques a quartéis militares para a obtenção de armas e munições também fizeram parte da luta armada. Mas os movimentos mais complexos desta luta foram os seqüestros a diplomatas de importantes governos que faziam a representação dos seus países no Brasil.
De 1969 a 1970, quatro grandes seqüestros abalaram a ditadura militar, causando-lhe constrangimento diplomático no cenário internacional e proporcionando uma grande derrota política. O primeiro, realizado em setembro de 1969, foi do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e o de maior repercussão nacional e internacional. Vieram, em 1970, os seqüestros do cônsul japonês Nobuo Okushi, do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben e, do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Realizados para chamar a atenção internacional do que acontecia no Brasil, os seqüestros aos diplomatas serviram para a troca dos líderes políticos que estavam presos nos calabouços a sofrer torturas, tendo muitos deles perecido, não resistindo às atrocidades. A logística dos seqüestros mostrou a habilidade ofensiva dos grupos armados, mas foi o golpe de misericórdia sobre as suas cabeças, forçando o regime militar a intensificar a perseguição e repressão aos que se opunham à ditadura, agindo de forma violenta, matando, torturando e aniquilando de vez qualquer resistência. Os seqüestro representaram o auge da resistência armada e, também, o seu fim definitivo.

Organização do Primeiro Seqüestro

Em 1969 veio a resposta definitiva do AI-5 sobre os líderes da resistência ao regime militar. Muitos foram presos e torturados. A Operação Bandeirantes (Oban), deflagrada por todos os órgãos repressivos das polícias e das forças armadas, prendia, torturava e desaparecia com aqueles que consideravam subversivos ao regime. Os militares, cada vez mais à vontade no poder, estavam longe de qualquer redenção ou volta à caserna. Esta posição ficou clara quando o então presidente, marechal Artur da Costa e Silva, foi afastado da presidência em 31 de agosto, em conseqüência de uma isquemia que o levaria à morte alguns meses depois. O então vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil, foi impedido de assumir a presidência e submetido à prisão domiciliar. Uma junta militar assumiu o poder, até que se elegesse de forma indireta, outro presidente militar.
Foi no cenário desta confusão política que se planejou e executou uma das maiores ações da história recente do Brasil, o seqüestro ao embaixador norte-americano Charles Elbrick. A ação foi desencadeada para acontecer em setembro, durante as comemorações da Semana da Pátria, considerada um ícone do regime autoritário.
Antes de surgir a idéia do seqüestro, Stuart Angel Jones e Cláudio Torres, membros da organização de esquerda Dissidência da Guanabara, nascida das divergências dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se opunha à luta armada; e Paulo de Tarso Venceslau, da Ação Libertadora Nacional (ALN), a maior organização guerrilheira da época, debateram um plano para libertar os líderes estudantis Vladimir Palmeira, Luís Travassos e José Dirceu, presos desde o fatídico congresso da UNE em Ibiúna, sem direito a hábeas corpus. A ação consistiria em fazer um resgate, promovendo um assalto aos jipes em que os prisioneiros eram conduzidos do Forte de Itaipu, na Praia Grande, litoral paulista, para interrogatórios e audiências na Auditoria Militar da Avenida Brigadeiro Luís Antonio, em São Paulo. O resgate sucederia no primeiro semestre de 1969, acontecendo na subida da Serra do Mar ou na porta da Auditoria. Foi no decurso do plano, que poderia originar uma tragédia, que surgiu a idéia do seqüestro ao embaixador dos Estados Unidos.
O estudante Franklin Martins, da Dissidência da Guanabara, teve a idéia ao passar pela Rua Marques, no bairro do Botafogo, Rio de Janeiro. O estudante observou que todos as manhãs, Charles Elbrick, embaixador norte-americano, fazia aquele trajeto. Diante das evidências, Franklin Martins levou o seu plano aos dirigentes da Dissidência da Guanabara.
A idéia do seqüestro parecia audaciosa e de grande porte para que fosse realizada somente pelos militantes daquela organização. Assim, Cid Benjamin foi enviado a São Paulo, para expor o plano a Joaquim Câmara Ferreira, dirigente da ALN. Joaquim Câmara Ferreira, um dos homens mais procurados pela ditadura militar, levou consigo os companheiros Virgilio Gomes da Silva e Carlos Eduardo Fleury. A aceitação do plano foi imediata. O líder da ALN concordou que a sua organização entraria na audaciosa ação, e que ela serviria como marco de propaganda na Semana da Pátria, para que se consolidasse uma guerrilha de campo.
Unidos em um dos planos mais audaciosos da história da esquerda revolucionária no Brasil, ALN e Dissidência da Guanabara seguiram juntas no empreendimento. Joaquim Câmara Ferreira assumiu o comando político, e coordenaria as negociações com o governo. Virgílio Gomes da Silva teria o comando militar da ação. Aproximadamente um mês depois da decisão do seqüestro, em Setembro, no auge das comemorações da Semana da Pátria, o plano foi posto em prática, abalando o Brasil e ao regime militar, resultando na libertação dos três líderes estudantis que nas confabulações anteriores, seriam resgatados, e de mais doze presos políticos.

O Seqüestro de Charles Elbrick

A operação de seqüestro ao embaixador Charles Elbrick foi desencadeada na manhã do dia 4 de setembro de 1969, numa quinta-feira. Ás nove horas da manhã, um grupo de pessoas tomou, discretamente lugares estratégicos do bairro do Botafogo, iniciando o aparato logístico e militar.
Coube ao guerrilheiro José Sebastião Rios de Moura, ficar de sentinela no Largo dos Leões, inicio da Rua São Clemente e esquina com a Rua Conde de Irajá, e avisar com um sinal – levantar um jornal, quando o Cadillac do embaixador viesse. Do outro lado do Largo, na esquina da Rua Marques com a Rua Humaitá, João Lopes Salgado e Vera Silvia Araújo Magalhães observavam José Sebastião, encostados em um Fusca vermelho grená. Outro Fusca azul fazia a retaguarda, estacionado na Rua Marques, trazendo Cid Benjamin ao volante e Franklin Martins no banco de passageiros. Nas calçadas da Rua Marques, quatro homens cobriam a ação, a pé, sendo dois do lado esquerdo, Cláudio Torres e Paulo de Tarso Venceslau; e dois do lado direito, Manoel Cyrillo de Oliveira Netto e Virgilio Gomes da Silva. Para fechar o esquema, Sérgio Rubens de Araújo Torres estacionou uma Kombi verde, na Rua Vitório Costa, a seis quadras do foco.
Em um sobrado da Rua Barão de Petrópolis, no numero 1026, no Bairro de Santa Tereza, que serviria como cativeiro do seqüestrado, esperavam Joaquim Câmara Ferreira e Fernando Gabeira.
A movimentação dos seqüestradores foi observada por uma moradora, mulher de um militar, que chamou a polícia. Os guardas vieram, mas não encontraram nada que confirmasse às suspeitas da moradora, visto que as placas dos Fuscas, apesar de frias, pertenciam a carros sem problemas de documentação. A polícia vai embora.
Excepcionalmente naquele dia, Elbrick estava atrasado. O seqüestro, planejado para suceder durante a manhã, só iria acontecer à tarde. Só às 14h30 é que o Cadillac 1968, que trazia o embaixador, despontou no local de rotina. Na Rua Marques, foi obrigado a parar pelo Fusca azul, que fingiu uma manobra. O Fusca vermelho, conduzido por Rios, impediu que a limusine saísse de ré. Os quatro companheiros que estavam na calçada tomaram o carro diplomático de assalto. Com um revólver 38 na mão, Paulo de Tarso mobilizou o motorista e o embaixador e, simultaneamente, arrancou os fios do rádio que fazia a comunicação com a segurança da embaixada. Cláudio Torres assumiu a direção do carro. No banco de trás, Virgílio Gomes da Silva e Manoel Cyrillo sentaram-se junto a Elbrick, cada qual de um respectivo lado. Consumado o seqüestro, os três carros avançaram seis quadras, onde estava a Kombi, que naquele momento, assumiu a ponta do comboio.
Os carros pararam, cinco minutos depois, na Rua Maria Eugênia, na esquina com a Rua Caio de Melo Franco. Assustado, pensando que seria morto, Elbrick tomou a arma de Virgílio Gomes da Silva, mas Manoel Cyrillo desferiu-lhe uma coronhada na cabeça, deixando-o aturdido. O embaixador foi transferido para a Kombi, sendo coberto por um tapete. A direção da Kombi passou para as mãos de Cláudio Torres, e Sérgio Rubens de Araújo deixou o grupo, indo embora a pé. A Kombi seguiu com o seqüestrado e os seqüestradores, remanejados em um Fusca bege que ali os aguardava. Para trás ficavam o Fusca azul e o Cadillac. No banco de trás do carro diplomático abandonado, ficaram o motorista de Elbrick, Custódio Abel da Silva, e um manifesto dos seqüestradores.
O manifesto, que exigia a libertação de quinze presos políticos em troca da vida de Charles Elbrick, e a sua publicação na imprensa, cobriria as páginas dos jornais do dia seguinte, 5 de setembro. Os nomes dos quinze presos seriam divulgados posteriormente, na manhã seguinte. O manifesto levava a assinatura da ALN e do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), nome que a Dissidência da Guanabara passou a assinar depois da ação de seqüestro do embaixador.

O Fim do Seqüestro

Cinco minutos antes das três horas daquela tarde, Charles Elbrick chegou ao cativeiro, um sobrado de Santa Tereza, sendo recebido por Joaquim Câmara Ferreira e Fernando Gabeira, que ali o esperavam, acompanhados do sindicalista nordestino Antônio de Freitas, o Baiano, que fugindo da repressão, era hóspede dos guerrilheiros, mas que não teve qualquer participação no seqüestro.
No sobrado, o embaixador teve conversas cordiais com os seus algozes, que com ele falaram sem usar máscaras. Do lado de fora, a quarenta metros, o sobrado passou a ser vigiado ainda naquela tarde de 4 de setembro, por uma Rural Willys do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que segundo relatos posteriores, desconfiavam ser aquele o cativeiro do embaixador, mas sem ter certeza.
A ação dos guerrilheiros surpreendeu o regime militar e todo o Brasil. Deixou o governo brasileiro em uma situação diplomática delicada com os Estados Unidos. Para que o seqüestro fosse solucionado, o governo militar foi obrigado a ceder a todas as exigências dos seqüestradores, evitando assim, que algo sucedesse ao embaixador, pondo em risco a sua vida. Uma grande operação ofensiva foi montada, envolvendo mais cinco mil homens das três forças armadas, quatro mil policiais civis e militares, quinhentos agentes dos serviços de informações e trezentas viaturas.
No dia 7 de setembro, no domingo à tarde, começou a operação de libertação do embaixador. Os seqüestradores começaram a abandonar o sobrado de Santa Tereza divididos em grupos. Os últimos que deixaram o cativeiro foram Joaquim Câmara Ferreira e Virgílio Gomes da Silva, levando com eles o embaixador Charles Elbrick . Virgílio e o seqüestrado seguiram para um Fusca branco, parado em frente ao sobrado, ao lado de outro Fusca bege, o mesmo utilizado no dia do seqüestro. Os agentes vigilantes do Cenimar, reconheceram, com surpresa, o embaixador, inconfundível nos seus quase dois metros de altura. Assim, os Fuscas bege e branco partiram, tendo no encalço a Rural Willys dos agentes do Cenimar. O terceiro Fusca, o vermelho, seguiu a Rural sem que os agentes se apercebessem.
Na Rua Estrela, a Rural dos agentes da repressão derrapou. Na Rua Aristides Lobo, o Fusca vermelho encostou junto à Rural. Manoel Cyrillo apontou uma metralhadora para os militares, que covardemente, fugiram assustados, virando na rua seguinte.
Despistados os agentes militares, Charles Elbrick é deixado no Largo da Segunda-Feira, levando de presente dos seqüestradores um livro de poemas de Ho Chi Min, escrito em inglês. Elbrick voltou para a sua casa de táxi. Nos primeiros depoimentos após a sua libertação, surpreendentemente foi simpático aos seqüestradores, descrevendo-os como jovens determinados, inteligentes e fanáticos. O embaixador morreria de pneumonia em seu país, em 1983.

Os Presos Políticos Trocados Pelo Embaixador

Em troca do embaixador, os quinze presos libertados foram: Onofre Pinto, fundador da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que sofreria uma emboscada no Paraná, entrando para a lista dos desaparecidos da ditadura desde 1974; Luis Travassos, ex-presidente da UNE, morto em um acidente de automóvel em 1982, no Rio de Janeiro; Ricardo Zaratini, do movimento operário, irmão do ator Carlos Zara, envolvido em lideranças partidárias no Brasil pós-ditadura; Rolando Fratti, morto por um câncer em 1991; Vladimir Palmeira, líder estudantil que comandou a Passeata dos Cem Mil em 1968, futuro deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT); José Dirceu de Oliveira e Silva, líder estudantil, preso em Ibiúna, futuro ministro da Casa Civil do governo do presidente Lula; Gregório Bezerra, líder sindical, morto por um câncer em 1983; Ivens Marchetti, arquiteto que viveu na Suécia, militante da Dissidência de Niterói, morto por um câncer em 2002; João Leonardo da Silva Rocha, militante da ALN, morto pela ditadura no interior da Bahia, em 1974; Maria Augusta Carneiro, única mulher da lista, militante da Dissidência da Guanabara, a DI-GB, presa em Ibiúna, futura proprietária de uma escola para deficientes no Rio de Janeiro; Mário Roberto Zanconato, fundador da Corrente Revolucionária ligada a ALN, futuro médico da prefeitura de Diadema, em São Paulo; Ricardo Vilasboas Sá Rego, militante da DI-GB, futuro músico e compositor, que deixou a luta armada para viver na França; José Ibrahim, líder do movimento operário paulista, futuro secretário de relações internacionais da Força Sindical; Agnaldo Pacheco da Silva, militante da ALN; e, Flávio Tavares, jornalista, coordenador do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), colaborador do jornal “O Estado de S. Paulo”. Os quinze prisioneiros deixaram o país em um avião, o Hércules 56, que seguiu para o México, de onde seguiram cada um, para um destino no exílio. Muitos deles retornariam incógnitos para o Brasil, alguns anos depois, continuando a luta na clandestinidade.

Os Seqüestradores de Charles Elbrick

A aparente vitória dos seqüestradores durou pouco. A partir de então a ditadura iniciou uma forte guerra e perseguição aos guerrilheiros, matando e torturando as suas lideranças, decepando todas as organizações que promoveram a luta armada no país. Outra conseqüência foi a pena de morte, adotada através de um ato institucional militar, além da pena do banimento, aplicada a todos os presos que aceitavam ser trocados por embaixadores, fazendo deles pessoas sem pátria e sem nacionalidade. A pena do banimento só perdeu o efeito quando a Lei da Anistia foi promulgada, em 1979, trazendo os exilados de volta ao país.
Quanto aos seqüestradores de Charles Elbrick, muitos foram presos, alguns mortos e torturados pela ditadura. Foram eles:
Virgílio Gomes da Silva – Conhecido como Jonas, Borges e Breno, foi o comandante militar da ação do seqüestro, tendo 36 anos de idade na época. Fez treinamento militar em Cuba, em 1967. Militante da ALN, foi duramente perseguido pelo regime militar logo após o seu envolvimento no seqüestro do embaixador norte-americano. Caiu no dia 29 de setembro de 1969, pouco mais de vinte dias após o desfecho do seqüestro. Não resistiu às sessões de torturas sofridas nas dependências da Oban, morrendo um dia depois da prisão.
Manoel Cyrillo de Oliveira Netto – Com 23 anos na época, foi o segundo comandante militar do seqüestro, sendo um dos que renderam o embaixador. Era vice-comandante do grupo tático armado da ALN em São Paulo. Foi preso no dia 30 de setembro de 1969, permanecendo no cárcere por dez anos.
João Sebastião Rios de Moura – Tinha 22 anos, foi quem deu o sinal de alerta quando o carro do embaixador surgiu na rua do seqüestro. Exilou-se no Chile em 1970, seguindo para a França, de onde só retornou em 1980. Foi morto em Salvador, em 1983, já depois de anistiado, por dois homens que vestiam casacos e chapéus.
Vera Sílvia Araújo de Magalhães – Tinha 21 anos, seduziu o chefe de segurança da casa do embaixador, obtendo informações sobre o seu trajeto diário; deu cobertura na captura. Foi presa em 1970, sendo torturada. Foi trocada pelo embaixador alemão, outro seqüestrado pelos guerrilheiros, partindo para o exílio, só retornando ao Brasil após a Anistia. Morreu em dezembro de 2007.
Joaquim Câmara Ferreira – Tinha 56 anos, coordenando as negociações do seqüestro com o governo, ficando o tempo todo na casa, ao lado de Elbrick. Rompeu com o PCB, integrando o comando da ALN. Sucessor natural de Carlos Marighella, foi preso no dia 24 de outubro de 1970, sendo levado para um sítio na periferia de São Paulo, onde foi torturado até morrer horas depois.
Sérgio Rubens de Araújo – Tinha 21 anos. Foi quem dirigiu a Kombi verde que levou o embaixador para o cativeiro. Tornou-se uns dos diretores do jornal “Hora do Povo”, órgão oficial do desintegrado ideologicamente MR-8 pós-ditadura.
Cláudio Torres da Silva – Tinha 24 anos, dirigiu todos os carros em que o embaixador foi transportado. Foi preso no dia 9 de setembro, dois dias após o desfecho da ação, ficando na prisão até 1977. Sempre evitou falar no seqüestro, considerando o episódio uma página virada da sua vida.
Franklin de Souza Martins – Tinha 21 anos, considerado o autor da idéia do seqüestro, bloqueou o automóvel diplomático, além de dar cobertura contra o carro dos agentes do Cenimar. Deixou o Brasil dois meses depois do seqüestro, indo para Cuba, onde foi treinado em guerrilha. Voltou ao país em 1973. Após a queda da ditadura tornou-se um repórter conceituado, participando do governo do presidente Lula.
Cid de Queiroz Benjamin – Tinha 20 anos, foi quem negociou o seqüestro em São Paulo com os líderes da ALN. Dirigiu o Fusca azul que bloqueou a passagem do carro diplomático e o Fusca que perseguiu e intimidou os agentes do Cenimar. Foi preso em abril de 1970, sendo trocado dois meses depois pelo embaixador alemão. No pós-ditadura tornou-se militante do PT, sendo candidato a alguns cargos políticos.
João Lopes Salgado – Tinha 26 anos, sendo um dos que comandou a cobertura na operação que libertou o embaixador. Nunca foi preso, exilando-se no Chile em 1972, seguindo dali para o Panamá e para a França. Retornou após a Anistia, em 1980.
Fernando Gabeira – Tinha 28 anos, foi quem alugou a casa que serviu como cativeiro, levou mensagens do embaixador para a esposa e deixou em um supermercado, a lista com os quinze nomes dos presos políticos que deveriam ser trocados pelo embaixador. Foi atingindo por uma bala, sendo preso em janeiro de 1970. Foi trocado naquele mesmo ano pelo embaixador alemão. Retornou ao Brasil em 1979, iniciando uma promissora carreira de jornalista, escritor e político, sendo eleito para vários cargos.
Paulo de Tarso Venceslau – Tinha 25 anos, foi quem ao lado de Joaquim Câmara Ferreira, Virgílio Gomes da Silva e Cid Benjamin, preparou a ação em um apartamento em São Paulo. Foi quem rendeu o motorista do embaixador, e quem levou nomes de militantes de São Paulo para o Rio de Janeiro para que se compusesse a lista dos quinze prisioneiros. Foi preso no dia 1 de outubro de 1969, sendo torturado pela Oban. Ficou preso até 1974. No pós-ditadura, ocupou vários cargos políticos no Estado de São Paulo.

O Seqüestro de Nobuo Okushi

A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), iniciou no começo de 1970, os treinamentos dos seus militantes para que pudessem atuar em uma guerrilha rural. Para os treinamentos, foi usada a área de Registro, em São Paulo. A operação foi abalada, quando no dia 27 de fevereiro daquele ano, um dos mais importantes militantes da VPR, Chizuo Ozava, conhecido como Mário Japa, que acabara de fazer o treinamento da guerrilha, sofreu um acidente de automóvel na Estrada das Lágrimas, em São João Clímaco, bairro paulistano. Ao ser socorrido pela polícia, foram encontradas no carro armas e documentos comprometedores, levando à prisão do acidentado.
A prisão de Mario Japa, que já tinha estado no campo de treino de Registro, deixou Carlos Lamarca e o comando da VPR apreensivos. Para que se preservasse o sigilo das operações de guerrilha, era necessário que Mario Japa fosse libertado imediatamente. A bem sucedida ação que envolvera o seqüestro do embaixador Charles Elbrick, desencadeada pela ALN e pelo MR-8, em setembro de 1969, foi a inspiração que os líderes da VPR encontraram para libertar Mario Japa, optando-se pelo seqüestro do cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okushi.
Para realizar a ação, a VPR viu-se obrigada a recorrer ao auxilio de outras organizações de esquerda. Assim, a VPR entrou em contacto com o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e a Resistência Democrática (Rede). Juntas, as três organizações planejaram a ação.
O comando da ação foi assumido pelo integrante do comando nacional da VPR, Ladislas Dowbor , juntando-se a ele Eduardo Collen Leite, o Bacuri, organizador da Rede, que se tornaria notável por ter participado em dezenas de assaltos realizados pelos guerrilheiros; e, Devanir José de Carvalho, dirigente do MRT, conhecido como um dos cinco irmãos Metralha. Participaram ainda, como mentores de um plano feito às pressas, Liszt Benjamin Vieira, Mário de Freitas Gonçalves, Miguel Varoni, Alcery Maria Gomes Silva e Joelson Crispim, da VPR; Plínio Petersen Pereira e José Rodrigues Ângelo Junior, do MRT.
A ação aconteceu no dia 11 de março de 1970. No fim da tarde, após terminar o trabalho no consulado, Nobuo Okushi dirigia-se para a sua casa, na Rua do Piauí, em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Às 18h20 o automóvel do cônsul japonês, um Oldsmobile, dirigido por Hideaki Doi, teve que parar bruscamente para que não batesse em um Fusca azul, que se interpôs à frente, na altura da Rua Bahia. Hideaki ainda reclamou da má condução do motorista do Fusca, sem se aperceber que ele empunhava uma metralhadora ao sair do carro.
Marco Antonio Lima Dourado foi o militante que empunhando a metralhadora, ameaçou Hideaki. Plínio Peterson Pereira auxiliou Liszt Benjamin Vieira a retirar o cônsul do carro diplomático, conduzindo-o para um Fusca vermelho, que se encontrava estacionado na Rua Alagoas. A segurança era feita pelos militantes Mário Freitas Gonçalves e Oswaldo Soares, que interrompiam o trânsito ao longo da Rua Bahia.
Nobuo Okushi foi posto no banco traseiro do fusca, tendo os olhos vendados por esparadrapo, sendo obrigado a pôr a cabeça sobre os joelhos de Liszt. Bacuri era o motorista do carro, que trazia Ladislas no banco de passageiro. O cônsul foi levado para a Avenida Ceci, 1216, no Bairro de Indianópolis. O cativeiro era um aparelho no qual habitava Bacuri e a sua companheira Denise Peres Crispim. Ali, Bacuri, Denise, Ladislas e Liszt vigiariam o cônsul até o dia da sua libertação.
No dia seguinte, 12 de março, os jornais publicavam o seqüestro e as exigências dos seqüestradores, que consistia na libertação de cinco presos políticos e a obtenção de asilo político no México. A imprensa estampava ainda, a fotografia do militante José Raimundo da Costa, apontando-o como um dos possíveis seqüestradores, fazendo com que ele fosse substituído na missão pelo militante da Rede, Fernando Kolleritz.
Os comunicados dos seqüestradores exigiam o fim das atividades de busca ao seqüestrado, ameaçando dinamitar o cativeiro com o cônsul dentro, e a suspensão da violência usada contra os presos políticos. Assinava aos comunicados o Comando Lucena da VPR, uma alusão a Antônio Raimundo de Lucena, militante morto a tiros por militares, em frente da mulher e dos filhos, em Atibaia, dias antes.
A lista com os nomes dos cinco presos políticos que deveriam ser libertados e exilados, foi divulgada no quarto comunicado, trazia o nome de Damaris Lucena, esposa de Antônio Lucena, e dos seus três filhos menores. Os outros quatro eram: Otávio Ângelo, dirigente da ALN; madre Maurina Borges da Silveira, religiosa torturada pelo delegado Fleury, presa por ter cedido uma sala para que os estudantes militantes da FALN de Ribeirão Preto fizessem uma reunião; Diógenes Carvalho de Oliveira, militante da VPR e, finalmente, Chizuo Ozava, o principal e verdadeiro motivo da operação.
Libertados e transportados com segurança para o México, os presos políticos deram uma nova derrota ao regime militar. No fim da tarde do domingo, 15 de março, Ladislas levou Nobuo Okushi do cativeiro para o banco traseiro do Fusca vermelho. Bacuri e Denise queimaram todos os documentos, abandonando o local que servira de cativeiro, por motivos de segurança. Os três rodaram de carro algum tempo, quando tiveram a certeza de que não estavam a ser seguidos, deixaram o cônsul na Rua Arujá. Foi através de um táxi que Nobuo Okushi retornou para casa. Durante o tempo do cativeiro, os seqüestradores falaram com ele em inglês, visto que chegara recentemente ao Brasil e quase nada percebia da língua portuguesa.
Ao fim do seqüestro, já resgatado o cônsul japonês, a ditadura militar tornar-se-ia implacável na caça aos seqüestradores. Dos quinze participantes do seqüestro, oito foram presos: Liszt Benjamin Vieira, Ladislas Dowbor, Marco Antonio Lima Dourado, Miguel Varoni, Oswaldo Soares, Mario de Freitas Gonçalves, José Rodrigues Ângelo Júnior e Fernando Kolleritz. Cinco morreram em combate: Devanir José de Carvalho, José Raimundo da Costa, Alcery Maria Gomes da Silva, Joelson Crispim e Eduardo Collen Leite. Denise Peres Crispim, da Rede, e Plínio Petersen Pereira, do MRT, nunca foram presos.

O Seqüestro do Embaixador da Alemanha

Se os dois primeiros seqüestros foram bem sucedidos, também a reação da ditadura militar não ficou atrás. A perseguição aos guerrilheiros tornou-se intensa, e as sessões de torturas e mortes atingiram uma sofisticação jamais vista na história do país. No dia 18 de abril de 1970, os órgãos de segurança efetuaram uma ação que levou à prisão de Maria do Carmo Brito, membro do comando nacional da VPR. A prisão levou à descoberta do seu aparelho na Avenida Visconde de Albuquerque, na Gávea, Rio de Janeiro. Nele foram encontrados documentos que mostravam um minucioso plano para o seqüestro do embaixador da Alemanha. Também faziam parte dos documentos as primeiras letras dos codinomes dos principais participantes da ação, sendo eles: Juarez Guimarães de Brito, Alex Polari de Alverga, Joaquim Pires Cerveira, Roberto das Chagas e Silva, José Ronaldo Tavares de Lira e Silva e a própria Maria do Carmo Brito. Dos seis nomes encontrados, três estavam presos, Maria do Carmo, José Ronaldo e Joaquim Pires Cerveira; e um tinha sido morto, Juarez Guimarães de Brito; apenas dois militantes ainda permaneciam soltos, sem serem identificados, Alex Polari e Roberto das Chagas.
Firme em prosseguir com as atividades de propaganda e ações da luta armada, o seqüestro a diplomatas fazia parte dos planos e levantamentos feitos pelas organizações de esquerda durante todo o ano de 1970. A VPR levantou a possibilidade de seqüestros aos embaixadores dos Estados Unidos, do Japão, da Suécia e, em conjunto com a Frente de Libertação Nacional (FLN), de Joaquim Pires Cerveira, do embaixador da Alemanha.
Mas o regime militar mantinha os seus órgãos de segurança em plena atividade, na intenção de evitar outros seqüestros que pudessem deixar a diplomacia do país em situações delicadas. Assim, ainda no primeiro semestre de 1970, as suas ações levaram à prisão de um grande número de militantes. Membros da VPR foram os que mais caíram ante a repressão, enchendo os cárceres das prisões. O seu grande líder, Carlos Lamarca foi acossado nas matas do Vale da Ribeira, podendo cair a qualquer momento.
Diante das prisões, torturas e mortes de militantes, era preciso que se desse um último fôlego, e que se fizesse grandes ações que chamassem a atenção do país e alcançassem repercussão ante a comunidade internacional. Foi criada a Unidade de Comando Juarez Guimarães de Brito (UC/JGB), homenagem ao militante morto em combate, retomando os planos dos seqüestros. O principal alvo era o embaixador dos Estados Unidos, mas que se tornou inviável, visto que a segurança dos norte-americanos tornou-se impenetrável após o seqüestro de Charles Elbrick, em 1969 e a uma fracassada tentativa ao cônsul dos Estados Unidos em Porto Alegre, em abril de 1970. A alternativa foi o cônsul da Suécia, mas a constante mudança de itinerário do seu veículo exigia uma grande logística militar na ação, tornando-a difícil de ser realizada. Ficou decidido que o seqüestro seria ao embaixador do Japão. A ação foi abortada no dia e no momento da sua execução, que foi surpreendida pela presença ocasional de um camburão policial. Por fim, decidiu-se pelo seqüestro do embaixador da Alemanha, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, de 61 anos.

Executado o Seqüestro de Von Holleben

A direção do planejamento do seqüestro de Von Holleben ficou, inicialmente, com Alex Polari de Alverga, com a colaboração de Lúcia Mauricio de Alverga, Júlio César Câmara Covello Neto e Vera Lúcia Thimóteo. Para a execução da ação, foram utilizados quatro carros roubados, dois Fuscas vermelho e grená, uma Rural Willys e um Opala azul. Como cativeiro, foi alugada uma casa na Rua Juvêncio de Menezes, número 535, em Cordovil. Os militantes Gerson Theodoro de Oliveira e Tereza Ângelo, disfarçados como um casal, foram quem alugaram a casa.
Desta vez as cadeias estavam cheias de militantes presos, muitos sucumbindo à tortura. Era preciso que se elaborasse uma lista extensa e de grande representatividade. Aquele seqüestro representaria a salvação de muitos companheiros, condenados às atrocidades letais do cárcere. No início de junho, aconteceu uma reunião em São Paulo, entre as principais lideranças das organizações que promoviam a luta armada no Brasil. Dela fizeram parte Carlos Lamarca, Joaquim Câmara Ferreira da ALN, e Devanir José de Carvalho, do MRT. Entre as decisões acertadas, ficou estabelecida a lista de quarenta prisioneiros que seriam trocados pelo embaixador. Seria a lista mais longa até então. Os seqüestradores receberam como reforço, mais dois militantes da ALN, José Milton Barbosa e Eduardo Collen Leite, o Bacuri, que ficou designado para comandar a ação.
No dia 11 de junho de 1970, no arroubo da Copa do Mundo de Futebol, realizada no México, e que faria o Brasil tricampeão mundial, deflagrou-se a ação de seqüestro ao embaixador alemão. Às 19h40 Von Holleben deixou a embaixada, que ficava no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, rumo à sua residência, em Santa Tereza. O embaixador seguia em uma Mercedes preta, conduzida pelo motorista Marinho Huttl, tendo ainda, a segurança de um agente da polícia federal, Irlando de Souza Régis, que sentava no banco do passageiro, portando uma arma. A Mercedes era seguida por uma Variant, que trazia dois agentes da polícia federal, Luiz Antonio Sampaio, e José Banharo da Silva, que complementavam a segurança do embaixador.
Às 19h55, foi executada a ação de seqüestro no Bairro de Santa Tereza, na confluência da Rua Cândido Mendes com a Ladeira do Fialho, próximo à casa do embaixador. Nesta altura, José Maurício Gradel avançou a Rural Willys impetuosamente contra a Mercedes diplomática. Simultaneamente, Sonia Eliane Lafoz e José Milton Barbosa, que se faziam passar por um casal de namorados, dispararam rajadas de metralhadora contra a Variant da segurança, ferindo os agentes Luiz Antonio, no abdômen, e, Banharo, na cabeça. O agente que fazia a segurança dentro do carro diplomático, Irlando de Souza Régis, ainda tentou sacar de uma arma, mas foi abatido por três tiros a queima-roupa, desferidos por Bacuri, sendo que o que lhe atingiu a cabeça foi fatal.
O embaixador alemão foi tirado do carro diplomático por Herbert Eustáquio de Carvalho, que empunhando uma pistola 45, obrigou-o a entrar no Opala azul, dirigido por José Roberto Gonçalves de Rezende. Três carros seguiram em fila indiana, levando no meio, no Opala azul, o embaixador alemão. O seqüestro estava consumado, em menos de quatro minutos, sendo o mais violento dos três, deixando, pela primeira vez, um morto e dois feridos.
Após o encarceramento do embaixador, Bacuri datilografou um comunicado, fazendo diversas exigências às autoridades do governo. Exigia que o comunicado fosse lido na Rádio Nacional, e que ali, fosse divulgada a lista com os quarenta nomes de presos que deveriam ser libertados. Na lista contavam vinte militantes da VPR: Almir Dutton Ferreira, Altair Luchesi Campos, Carlos Minc Baumfeld, Darcy Rodrigues, Dulce de Souza Maia, Edmauro Gopfert, Eudaldo Gomes da Silva, Flávio Roberto de Souza, Ieda dos Reis Chaves, José Araújo de Nóbrega, José Lavecchia, José Ronaldo Tavares de Lira e Silva, Ladislas Dowbor, Liszt Benjamin Vieira, Maria do Carmo Brito, Melcides Porcino da Costa, Oswaldo Antonio dos Santos, Oswaldo Soares, Pedro Lobo de Oliveira e Tercina Dias de Oliveira; os outros vinte faziam parte de várias organizações, sendo eles: Aderval Alves Coqueiro, Ângelo Pezzutti da Silva, Apolônio de Carvalho, Carlos Eduardo Fayal de Lira, Carlos Eduardo Pires Fleury, Cid de Queiroz Benjamin, Daniel Aarão Reis, Domingos Fernandes, Fausto Machado Freire, Fernando Paulo Nagle Gabeira, Jeová Assis Gomes, Joaquim Pires Cerveira, Jorge Raimundo Nahas, Marco Antonio Azevedo Meyer, Maria José Carvalho Nahas, Maurício Vieira Paiva, Murilo Pinto da Silva, Ronaldo Dutra Machado, Tânia Rodrigues Fernandes e Vera Sílvia Araújo Magalhães. Curiosamente, foi a primeira lista que constava o nome de militantes que participaram dos seqüestros anteriores de Charles Elbrick e Nobuo Okushi. Os presos foram banidos do país, enviados em um avião da Varig para o exílio na Argélia.
O seqüestro de Von Holleben durou cinco dias. Conta-se que o embaixador foi recebido gentilmente pelo militante Alfredo Sirkis, com chá e salgadinhos, que conversava com ele em inglês, explicando-lhe o lado romântico e ideológico do seqüestro, só não lhe revelando a morte do segurança nas costas. Sirkis conta que, Bacuri entrou uma vez no quarto sem capuz, sendo repreendido por um irritado Von Holleben, que protestou: “Nada de rostos, por favor!”. Esta exigência pouparia o embaixador da ingrata tarefa de fazer reconhecimentos mais tarde. Conta ainda que, na despedida, o embaixador teria observado: “Pensei que vocês fossem mais organizados!”. Von Holleben foi libertado já altas horas da noite do dia 16 de junho, sendo deixado na Tijuca, às 23h00. Levava no bolso do casaco um documento relatando torturas, que se dispusera com prazer, a divulgar na Europa. O embaixador nada falou no depoimento que deu à policia sobre as conversas com Sirkis, evitando que fosse identificado, muito menos do documento que trouxera consigo. Holleben, paradoxalmente, tornou-se um simpatizante da causa dos guerrilheiros.

O Seqüestro de Giovanni Enrico Burcher

O ano de 1970 foi um dos mais sangrentos vividos pela militância que se opunha à ditadura militar. Apesar do sucesso que foram as operações que envolveram os seqüestros de três diplomatas, dando visibilidade internacional à situação política do país, os órgãos de repressão do governo estavam cada vez mais sofisticados e eficazes. No fim daquele ano, mais de quinhentos presos políticos abarrotavam as masmorras da ditadura.
Apesar das baixas sofridas, das prisões, torturas e perseguições, as organizações que promoviam a luta armada, chegaram aos últimos meses de 1970 com uma euforia latente, movida mais pela força ideológica do que por uma política visionária. Cinco organizações faziam uma frente acirrada contra a ditadura militar, valendo-se da fúria da luta armada para que vingasse os planos revolucionários de esquerda. Eram elas a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Estas organizações seriam praticamente eliminadas, de forma violenta e brutal, pela repressão da ditadura, não sobrevivendo muito mais tempo. Mesmo assim, chegaram ao fim de 1970 com a euforia de praticar grandes ações na semana que se iria completar um ano do assassínio de Carlos Marighella, principal liderança da luta armada, acontecido em 4 de novembro de 1969. O nome de Marighella servia de incentivo aos incansáveis guerrilheiros. No meio das ações que conclamariam as homenagens a Marighella, estava nos planos da VPR o seqüestro do embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher.
Mortes de lideranças continuavam a acontecer. Em 23 de outubro, caía o maior líder da ALN, Joaquim Câmara Ferreira. Prisões sucessivas atingiram o PCBR e vários líderes das outras organizações, acossando a resistência da frente armada. Pelo menos três seqüestros seriam necessários para que se pudesse libertar cerca de duzentos presos.
O embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher era conhecido no meio diplomático por seu bom humor, pelo hábito singular de preparar cigarros com sofisticadas misturas de fumos ingleses. Seguia pontualmente, todos os dias, para a embaixada, sem carros de segurança, desprezando as recomendações da polícia federal. Sua rotina seria mudada drasticamente pela guerrilha armada.
No dia 7 de dezembro de 1970, sob o comando do militante da VPR Gerson Theodoro de Oliveira, foi desencadeado o seqüestro ao embaixador. Bucher dirigia-se para a embaixada em um Buick azul, conduzido pelo motorista Hercílio Geraldo e escoltado pelo agente da polícia federal, Hélio Carvalho de Araújo.
O carro diplomático foi interceptado pelos seqüestradores, entre eles o mítico Carlos Lamarca, que trazia cavanhaque para disfarçar o rosto. Lamarca bateu no vidro da janela do agente de segurança, abrindo a porta e desferindo-lhe dois tiros, tendo um deles atingindo a medula do agente, que morreria no hospital Miguel Couto, três dias depois. O motorista Hercílio Geraldo foi rendido, sendo obrigado a deitar-se na calçada. O embaixador foi retirado do Buick, e levado para o Fusca azul. Bucher foi disfarçado com um macacão operário e boné na cabeça. A ação durou pouco mais de 30 segundos, e mais uma vez, deixou um morto.
O embaixador suíço, então com 56 anos, foi levado para uma casa da Rua Paracatu, em Rocha Miranda. As negociações foram as mais longas de todos os seqüestros e envolveram a libertação de setenta presos políticos. Neste período, os militantes promoveram uma política de boa vizinhança, chegando a dar uma festa ao som de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, na passagem do ano de 1970 para 1971, com o seqüestrado preso em um pequeno quarto dos fundos.
Nos quarenta dias que decorreram entre o seqüestro e a libertação, Burcher jogou cartas com os seqüestradores, teve direito a banho de sol no quintal. No inicio foi recebido de capuz pelos carcereiros, uma semana depois, os cinco militantes que o mantinham no cativeiro apresentaram-se de rostos descobertos. Burcher não quis reconhecer os algozes mais tarde diante da polícia, dizendo que eles tinham ficado o tempo todo de capuzes.
O longo período de negociações entre os seqüestradores e o governo, gerou uma certa tensão, em que se foi discutido inclusive a morte do embaixador, caso não se chegasse a um consenso. A morte de Bucher chegou a ser votada pelos militantes, que recuaram dias antes do natal. Só no dia 13 de janeiro de 1971, após várias negociações dos nomes dos prisioneiros que deveriam ser libertados, setenta presos foram escoltados por agentes federais, sendo embarcados em um Boeing da Varig, rumo ao exílio em Santiago do Chile.
Os setenta presos políticos banidos para o Chile foram: Afonso Celso Lana Leite, Afonso Junqueira de Alvarenga, Aluísio Ferreira Palmar, Antonio Expedito Carvalho Pereira, Antonio Rogério Garcia da Silveira, Antonio Ubaldino Pereira, Aristenes Nogueira de Almeida, Armando Augusto Vargas Dias, Bruno Dauster Magalhães e Silva, Bruno Piola, Carlos Bernardo Vainer, Carmela Pezzuti, Christóvão da Silva Ribeiro, Conceição Imaculada de Oliveira, Daniel José de Carvalho, Derci Fensterseifer, Derly José de Carvalho, Edmur Péricles Camargo, Elinor Mendes Brito, Encarnación Lopes Peres, Francisco Roberval Mendes, Geny Cecília Piola (casada com Bruno, levou suas três filhas menores, Tatiana, Kátia e Bruna), Gustavo Buarque Schiller, Humberto Trigueiros Lima, Irani Campos, Ismael Antônio de Souza, Jaime Walwitz Cardoso, Jairo José de Carvalho, Jean Marc Friedrich Charles Van der Weid, João Batista Rita, João Carlos Bona Garcia, Joel José de Carvalho, José Duarte dos Santos, Jovelina Tonello do Nascimento, Julio Antonio Bittencourt de Almeida, Lúcio Flávio Uchoa Regueira, Luiz Alberto Leite Sanz, Manoel Dias do Nascimento, Mara Curtiss de Alvarenga, Marco Antonio Maranhão da Costa, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Maria Nazareth Cunha da Rocha, Nancy Mangabeira Unger, Nelson Chaves dos Santos, Otacílio Pereira da Silva, Paulo Roberto Alves, Paulo Roberto Telles Franck, Pedro Alves Filho, Pedro Chaves dos Santos, Pedro Viegas, Pedro Paulo Bretãs, Rafael de Falco Neto, Reinaldo Guarany Simões, Reinaldo José de Melo, René Louis Laugery de Carvalho, Roberto Antônio de Fortini, Roberto Cardoso Ferraz do Amaral, Roque Aparecido da Silva, Samuel Aarão Reis, Sonia Regina Yessin Ramos, Takao Amano, Tito de Alencar Lima, Ubiratan de Souza, Ubiratan Vatutin Herzcher Borges, Valneri Neves Antunes, Vera Maria Rocha Pereira, Wânio José de Matos, Washington Alves da Silva, Wellington Moreira Diniz e Wilson Nascimento Barbosa.Na manhã do dia 16 de janeiro de 1971, Bucher foi deixado próximo ao penhasco da igreja da Penha. Encerrava-se o ciclo de seqüestros a diplomatas realizados pelas organizações da esquerda durante o período da ditadura. Encerrava-se um conturbado e complexo momento da história do Brasil. Os seqüestros permitiram a libertação de cerca de 130 importantes presos políticos, que viviam sob tortura e risco de vida diante de um governo repressivo e ilegítimo, instaurado sob tanques de guerra e canhões, em 1964.


TORRE EIFFEL – UM SÍMBOLO DE PARIS

julho 24, 2009

Nascida das comemorações do centenário da Revolução Francesa, a Torre Eiffel foi inaugurada em 31 de março de 1889. Na época, era vista como uma desconcertante estrutura de aço, que fazia os parisienses temerem que poluísse o panorama clássico e histórico da cidade.
Feita para ser uma estrutura temporária, sob o projeto do engenheiro Gustave Eiffel, a torre foi, aos poucos, tornando-se parte da paisagem de Paris. Por cerca de duas décadas esteve ameaçada de ser desmontada, mas o seu uso como torre de rádio e de estudos meteorológicos fez com que se tornasse imprescindível, e que se tomasse a decisão de não demoli-la.
Vencendo os preconceitos iniciais, a torre passou a ser chamada de Eiffel, uma homenagem ao seu criador. Passou a anunciar uma nova era na engenharia e na arquitetura. Cortou com a arquitetura clássica e tradicional de Paris, mostrando-se elegante e industrial, ao mesmo tempo, simbolizando a era que ficou conhecida como Belle Époque, que cobria de beleza e inovação à arte arquitetônica que resplandecia na virada do século XIX, entrando definitivamente no século XX.
Com os seus 324 metros de altura, a Torre Eiffel ergue-se majestosa no Champ-de Mars (Campo de Marte), no centro de Paris. Por mais de quatro décadas reinou como a construção mais alta do planeta, só perdendo o título em 1929, quando foi construído o prédio da Chrysler, em Nova York. Se a sua estrutura metálica constrangeu os parisienses no início, hoje se tornou um símbolo não só da cidade, mas de toda a França. Possuí três plataformas, onde se pode ter uma vista panorâmica de 360 graus sobre Paris, atraindo milhares de visitantes de todos os países.
A Torre Eiffel é um ícone da arquitetura universal, sendo conhecida em todo o planeta. Ir à França e não subir na torre é não ter visto Paris. Tornou-se o monumento mais visitado do mundo, com mais de seis milhões de pessoas a desfrutarem da sua vista panorâmica ao ano. 120 anos após a sua inauguração, a Torre Eiffel, chamada por alguns franceses de a “Dama de Ferro”, ergue-se majestosa às margens do rio Sena, é um símbolo de orgulho da França, da sua representatividade no mundo, sendo o principal cartão postal de Paris.

Sobre Protestos e Críticas, Ergue-se a Torre

No fim do século XIX, o governo da França planejou uma exposição mundial, sendo a sede do que foi chamada de Exposição Universal de 1889. A data servia para conclamar os cem anos da Revolução Francesa. Para sediar a exposição, o Comitê do Centenário realizou, em 1884, uma competição de projetos arquitetônicos para a construção de um monumento no Campo de Marte (Champ-de Mars), no centro de Paris. Mais de cem projetos foram submetidos ao concurso, sendo escolhido o do engenheiro Gustave Eiffel.
Assim, as obras de base da torre foram iniciadas em 26 de janeiro de 1887, sob fortes protestos da população e de intelectuais, durando cinco meses. Vários artigos e panfletos foram distribuídos pela França em 1886, manifestando-se contra a construção da torre. No dia 14 de fevereiro de 1887, já com as obras em andamento, o jornal “Le Temps” publicava o “Protesto Contra a Torre do Senhor Eiffel”, assinado por nomes influentes da literatura e das artes da França, como Guy de Maupassant, Ernest Meissonier, Alexandre Dumas Junior, Charles Gounod, François Coppée, Victorien Sardou, William Bouguereau, Leconte de Lisle, Sully Prudhomme, Charles Garnier e outros. No artigo, o monumento era acusado de ser uma grande chaminé de aço, e como um ciclope, trazia uma mancha bárbara e humilhante aos monumentos e à beleza de Paris. Gustave Eiffel defendeu-se publicamente, e ante as acusações de mau gosto, após o término das bases, iniciou a montagem dos pilares da torre em 1 de julho de1887.
Mesmo sobre fortes protestos, a torre foi erguida em dois anos, dois meses e cinco dias, e inaugurada no dia 31 de março de 1889, pairando seu estilo inspirador sobre Paris, na condição de não sobreviver ao decorrer dos anos, sendo apenas uma estrutura temporária, a ser desmontada após a Exposição Universal de 1889 e, posteriormente, à exposição de 1900.
Quando da sua inauguração, a torre, com a sua estrutura metálica, causou um grande impacto nas pessoas, que não entendiam a obra, não sabendo se a admiravam o se a odiavam. Ao mesmo tempo em que desconcertava os habitantes de Paris, ela era aclamada o monumento mais alto do mundo construído pelo homem, superando duas vezes a pirâmide de Quéops, no Egito, com os seus 137,16 metros de altura e com quase cinco mil anos de existência.

Gustave Eiffel

Gustave Eiffel nasceu em 15 de dezembro de 1832, em Dijon, na Borgonha. Foi um notável construtor de pontes metálicas para ferrovias, fazendo projetos para várias cidades do mundo. Em 1855, ano que Paris sediou a primeira Feira Mundial, graduou-se na Ecole Centrale des Arts et Manufactures, em engenharia química, tendo desde cedo, dedicado-se à metalurgia e às estruturas metálicas.
Gustave Eiffel passou vários anos da vida no Sudoeste da França, sendo supervisor de trabalho da grande ponte ferroviária de Bordéus. Construiu uma carreira notável, sendo o responsável pela construção do viaduto Maria Pia, no rio Douro, na cidade do Porto, Portugal, em 1876; pelo viaduto de Garabit, em 1884; pela estação ferroviária de Budapeste, na Hungria; pela cúpula do observatório de Nice, na França; pela estrutura interna da Estátua da Liberdade, em Nova York; e, principalmente, pela construção e inauguração da Torre Eiffel, em 1889, sua maior obra, que teve o seu desenho escolhido entre 700 propostas.
Com o fracasso do Canal do Panamá, Eiffel encerrou a sua carreira grandiosa, dedicando-se ao funcionamento da torre que levaria o seu nome, sendo o responsável pelos estudos que culminariam com a instalação da antena de rádio no topo da torre. Gustave Eiffel morreu em 27 de dezembro de 1923.

A Torre Eiffel Permanece Para Sempre

A idéia de que a torre fosse uma estrutura temporária, persistiu até a entrada do século XX, quando ainda se esperava que fosse desmontada. A necessidade de comunicações sem fio salvou a torre de virar sucata, e ela passou a ser chamada de Torre Eiffel, graças ao seu criador.
Em 1898 Eugène Ducretet transmitiu com sucesso, os primeiros sinais de rádio entre o Panteão e a Torre. Em 1901 surgiu a idéia de transformar a torre em uma antena de rádio de longa distância. Em 1903, foi feita uma ligação de rádio da torre com as bases militares em torno de Paris, alargando-se um ano depois, para o leste da França. A estação de rádio permanente foi instalada na torre em 1906, o que iria assegurar, definitivamente, a sua sobrevivência, quando em 1909, o contrato de vinte anos do terreno da exposição mundial de 1889 expirou, e a torre quase foi demolida. Só não aconteceu por causa do seu valor como antena de transmissão de rádio. A antena de rádio nos últimos vinte metros da torre foi adicionada posteriormente, aumentando-lhe a altura.
As primeiras tentativas de utilizar a torre para a transmissão de televisão remontam a 1921, sendo que, as primeiras transmissões regulares começaram em 1935. Nos dias atuais, o topo da torre foi totalmente transformado, abrigando dezenas de antenas de todos os tipos de comunicação, incluindo a televisão. De 1910 a 1957, a estrutura da torre foi utilizada com exclusividade para a rádio e a televisão francesa.
Em novembro de 2000, uma nova antena de rádio e televisão instalada na cúpula, fez com que a “Dama de Ferro” aumentasse mais cinco metros de altura, passando de 319 para 324 metros. A altura primitiva era de 312 metros.
Para proteger tão imponente monumento da oxidação do tempo, visto que é feito de ferro, é obrigatório que seja pintada com várias camadas de tinta. Sessenta toneladas de tinta são necessárias para cobrir a superfície da torre, sendo realizada uma pintura de sete em sete anos. Durante a sua existência, a Torre Eiffel mudou de cor várias vezes, passando do vermelho para o amarelo ocre, castanho, e, finalmente, para o bronze atual. A pintura faz com que a torre tenha uma duração eterna, protegendo-a da oxidação. Esta prevenção foi legada pelo próprio Gustave Eiffel, que dizia sobre a importância da pintura: “É o elemento essencial para a sua conservação.”
Nos dias atuais, a principal função da Torre Eiffel é o turismo. Por ela passam 6,9 milhões de turistas por ano, sendo o monumento mais visitado do mundo. Ela abriga vários restaurantes, museu, um pequeno apartamento situado no topo, que era usado por Eiffel, e outros atrativos que asseguram um passeio agradável aos visitantes. Mas o que mais fascina é a esplendorosa vista de 360 graus sobre a cidade de Paris.

Os 72 Nomes Gravados na Torre

Quando Gustave Eiffel inaugurou a Torre, ele prestou uma homenagem a setenta e dois cientistas, engenheiros e outros profissionais franceses notáveis, gravando os seus nomes nos quatro lados do colossal monumento metálico.
A lista, assim como a construção da própria Torre, jamais foi consenso entre os franceses, sendo fervorosamente criticada por excluir o nome de Sophie Germain, física e matemática francesa, que teve no seu trabalho sobre a teoria da elasticidade, uma contribuição essencial para a construção da torre. Muitos autores e biógrafos insistem em afirmar que a exclusão do seu nome deve-se ao simples fato de ser uma mulher, sendo vítima de um preconceito machista.
Com o passar dos anos e com as várias intervenções de pintura que a Torre sofreu, os nomes gravados foram, a partir do início do século XX, cobertos, desaparecendo totalmente. Coube à “Societé Nouvelle d’Exploitation de La Tour Eiffel”, restaurar as gravações entre 1986 e 1987, estando hoje visíveis ao público, sendo eles:

Nomes do Lado do Trocádero (Oeste da Torre – 18 nomes)

01. Seguin (Mecânico)
02. Lalande (Astrônomo)
03. Tresca (Engenheiro e Mecânico)
04. Poncelet (Agrimensor)
05. Bresse (Matemático)
06. Lagrange (Agrimensor)
07. Belanger (Matemático)
08. Cuvier (Naturalista)
09. Laplace (Astrônomo)
10. Dulong (Física)
11. Chasles (Agrimensor)
12. Lavoisier (Químico)
13. Ampéres (Matemático e Físico)
14. Chevreul (Químico)
15. Flachat (Engenheiro)
16. Navier (Matemático)
17. Legendre (Agrimensor)
18. Chaptal (Engenheiro Agrônomo e Químico)

Nomes do Lado Grenelle (18 nomes)

19. Jamin (Físico)
20. Gay-Lussac (Químico)
21. Fizeau (Físico)
22. Schneider (Industrial)
23. Le Chatelier (Engenheiro)
24. Berthier (Mineralogista)
25. Barral (Engenheiro Agrônomo, Químico, Físico)
26. De Dion (Engenheiro)
27. Gouin (Engenheiro e Industrial)
28. Jousselin (Engenheiro)
29. Broca (Cirurgião)
30. Becquerel (Física)
31. Coriolis (Matemático)
32. Cail (Industrial)
33. Triger (Engenheiro)
34. Giffard (Engenheiro)
35. Perrier (Geógrafo e Matemático)
36. Sturm (Matemático)

Nomes do Lado do Campo de Marte (18 nomes)

37. Cauchy (Matemático)
38. Blegrand (Engenheiro)
39. Regnault (Químico e Físico)
40. Fresnel (Físico)
41. De Prony (Engenheiro)
42. Vicat (Engenheiro)
43. Ebelmen (Químico)
44. Coulomb (Físico)
45. Poinsot (Matemático)
46. Foucault (Físico)
47. Delaunay (Astrônomo)
48. Morin (Matemático e Físico)
49. Haüy (Mineralogista)
50. Combes (Engenheiro e Metalúrgico)
51. Thenard (Químico)
52. Arago (Astrônomo e Físico)
53. Poisson (Matemático)
54. Monge (Agrimensor)

Nomes do Lado à Panorâmica de Paris (Leste da Torre – 18 nomes)

55. Petiet (Engenheiro)
56. Daguerre (Pintor e Físico)
57. Wurtz (Químico)
58. Le Verrier (Astrônomo)
59. Perdonnet (Engenheiro)
60. Delambre (Astrônomo)
61. Malus (Físico)
62. Breguet (Físico e Construtor)
63. Polanceau (Engenheiro)
64. Dumas (Químico)
65. Clapeyron (Engenheiro)
66. Borda (Matemático)
67. Fourier (Matemático)
68. Bichat (Anatomista e Fisiologista)
69. Sauvage (Mecânico)
70. Pelouze (Químico)
71. Carnot (Matemático)
72. Lame (Agrimensor)

A Torre Eiffel em Números

Possuindo três plataformas, a Torre Eiffel é uma estrutura metálica gigante, erguendo-se onipotente sobre o Campo de Marte, ao lado do rio Sena, sendo o maior mirante panorâmico de Paris.
Esta dimensão pode ser resumida pelos dados abaixo:

Altura Primitiva: 312 metros
Altura atual: 324 metros (com antena)
Fundações: Profundidade de 15 metros a norte e oeste. Cada um dos 4 pilares da torre é apoiado por alvenaria maciço.
Peso Total: 10.100 toneladas
Aço Estrutural: 7.300 toneladas
Peças de Aço: 18.038
Área da Primeira Plataforma: 4.415 m2
Área da Segunda Plataforma: 1.430 m2
Área da Terceira Plataforma: 250 m2
Altura da Primeira Plataforma: 57 metros
Altura da Segunda Plataforma: 115 metros
Altura da Terceira Plataforma: 276 metros
Degraus: 1.652 até o topo
Iluminação: 336 projetores (lâmpadas de sódio), com potência de 600 watts
Número de Lâmpadas Flicker: 20.000
Número Total de Rebites: 2.500.000
Pintura: 60 toneladas de tintas usadas a cada pintura
Freqüência das Pinturas: Total a cada 7 anos
Número de Elevadores: Do solo ao segundo piso, 5. Do segundo piso para o topo, 2 baterias duolifts
Velocidade dos Elevadores: 2 m/segundo
Velocidade e Capacidade dos Elevadores: Norte: 920 pessoas/hora. Leste: 650 pessoas/hora. Oeste: 650 pessoas/hora. Duolifts: 1.140 pessoas/hora. Jules Verne: 10 pessoas/subida. Pilar Sul: 50 pessoas ou 4 toneladas/subida.
Número de Trabalhadores da Torre: Serviços de Assistência Turística: 280 pessoas. Restaurantes: 240 pessoas. Lembranças: 50 pessoas. Diversos: 50 pessoas aproximadamente
Número Canais de TV Analógicos: 6
Número Canais de TNT livres: 18
Número Canais de TNT pagos: 30
Número Estações de Radio: 31
Número Escritórios: 120
Tempo de Construção: 2 anos, 2 meses e 5 dias (1887-1889)
Data Conclusão Primeiro Piso: 1 de Abril de 1888
Data Conclusão Segundo Piso: 14 de Agosto de 1888
Data Conclusão Terceiro Piso: 31 de Março de 1889
Custo Total da Construção: 7.799.401,31 francos ouro (1889)


O HOMEM NA LUA

julho 21, 2009

No auge da Guerra Fria, União Soviética e Estados Unidos comparavam forças sobre o controle ideológico das nações do planeta. A produção em série de armas nucleares era uma prioridade, medindo-se o potencial de uma nação pela quantidade de ogivas nucleares que tinha em seu poder. No fim dos anos 1950, o espaço tornou-se alvo da demonstração desse poder. Iniciava-se, em 1957, a corrida espacial com o lançamento do satélite artificial soviético Sputnik. Desde então, o governo norte-americano tomou como objetivo levar o primeiro homem a pousar em solo lunar, antecipando-se aos soviéticos.
No dia 20 de julho de 1969, a Apollo 11 cumpria a sua missão. Neil Armstrong, astronauta norte-americano, era o primeiro homem a pisar no satélite da Terra. Numa eloqüente e solene frase, ele sintetizou os seus passos no solo da Lua: “Foi um pequeno passo para o homem, mas um salto gigantesco para a Humanidade”.
A viagem à Lua, um velho sonho dos homens desde a mais remota antiguidade, representou um ápice na aventura humana no século XX. Depois da conquista dos pólos e das grandes altitudes do planeta, o homem estendia a sua saga pelo mítico satélite da Terra. Politicamente, era uma grande vitória da ideologia do ocidente contra a do oriente, dos capitalistas contra os comunistas, dos americanos contra os soviéticos. No momento em que os meios utilizados para manter tal ideologia eram contestados, com grandes manifestações nos Estados Unidos e no mundo contra a Guerra do Vietnã, chegar à Lua serviu para que o governo americano distraísse a atenção da nação, proporcionando-lhe um grande espetáculo, e, ao mesmo tempo, mantendo a supremacia tecnológica do poder, amenizando as críticas e contestações. Cientificamente, a ida do homem quase nada acrescentou à humanidade, sendo uma desolação absoluta, fazendo com que o projeto fosse encerrado, sem jamais ser retomado.
Enquanto Neil Armstrong e Edwin “Buzz” Aldrin fincavam a bandeira norte-americana em solo lunar, os terráqueos assistiam extasiados à grande aventura, transmitida pela televisão para todo o planeta. A emoção de ver o homem pisar no solo da Lua concretizava todas as lendas mitológicas, atingindo tanto o ocidente, como os países da Cortina de Ferro. Quatro décadas depois da conquista, a façanha continua a criar polêmicas, com correntes a declarar que tudo não passou de uma farsa. Mesmo assim, a chegada da missão Apollo 11 à Lua continua a ser a maior aventura do homem sobre a conquista das fronteiras do universo, sendo o lugar mais distante que ele já alcançou no tempo e no espaço.

O Sputnik é Lançado no Espaço

A beleza da Lua pairando no horizonte, a complexidade e influência do satélite em diversos fenômenos da Terra, sempre despertou a imaginação do homem. Poetas, escritores, cientistas, todos sonharam um dia pisar em solo lunar, uma aventura alimentada bem antes das grandes civilizações escreverem a sua história.
Oficialmente, a aventura que culminaria com o primeiro homem a passear pelo satélite da Terra, em 1969, iniciou-se em 1957. Em 4 de outubro daquele ano, cientistas e engenheiros soviéticos lançaram do Cosmódromo de Baikonur, em Tyuratam, na União Soviética (atual Cazaquistão), o satélite artificial Sputnik, que consistia numa bola de 84 quilos. Pela primeira vez um satélite artificial foi posto na órbita da Terra. Estava iniciado o período que passou para a história como a era espacial, demarcando a corrida ao céu.
Nikita Khrustchov, então líder da União Soviética, sob a colaboração do cientista Serguei Korolev, pôs o seu país à frente dos Estados Unidos na questão espacial. Para comprovar o êxito do Sputnik, era preciso esperar noventa minutos, tempo que o satélite levava para completar uma órbita em torno da Terra. Findos os noventa minutos, eram captados pelos cientistas sons emitidos por um transmissor do Sputnik, confirmando a missão. Ainda em 1957, em 3 de novembro, o Sputnik 2 levava ao espaço o primeiro ser vivo, a cadela Laika, da raça Kudriavka. Os soviéticos tornaram-se os donos do espaço, enviando várias missões não tripuladas à Lua.

Yuri Gagarin, o Primeiro Astronauta no Espaço

O sucesso do satélite russo causou grande repercussão no mundo. Nos Estados Unidos, o governo do presidente Eisenhower foi criticado por deixar que os soviéticos saíssem à frente. Quatro meses depois do lançamento do Sputnik, em 31 de janeiro de 1958, os americanos responderam com o Explorer I, primeiro satélite artificial daquele país. Para minimizar a época dourada espacial soviética, os Estados Unidos, sempre a reboque dos seus opositores comunistas, decidiram criar uma agência espacial de índole civil, assim, em 29 de julho de 1958, surgia a National Aeronautics and Space Administration, a NASA. A instituição passou a centralizar todas as atividades espaciais que não fossem de caráter estritamente militar.
Ainda ofuscados pela União Soviética, os Estados Unidos criou o programa Mercury, que tinha como principais objetivos pôr em órbita um ser humano, estudar os seguimentos de controle de uma nave espacial e adquirir conhecimentos sobre a ausência de gravidade no corpo humano. Em abril de 1959, já se tinha selecionado os primeiros sete astronautas do programa Mercury.
A conquista espacial foi um dos temas que centralizou as eleições presidenciais norte-americanas, em 1960, que deram vitória a John F. Kennedy sobre Richard Nixon.
Em 12 de abril de 1961, mais uma vez os soviéticos saíram à frente dos seus rivais norte-americanos, pondo em órbita, pela primeira vez, um ser humano, o astronauta Yuri Gagarin, que se iria tornar um herói em todo o planeta, visitando vários países, levando consigo a propaganda do regime do seu país.
A resposta norte-americana veio em 5 de maio de 1961, com o vôo do projeto Mercury, que enviou o primeiro astronauta estadunidense, Alan B. Shepard, ao espaço. Shepard não conseguiu a projeção internacional obtida por Yuri Gagarin, muito menos ofuscar o seu carisma. Os soviéticos continuavam como os líderes absolutos da corrida ao espaço.
John Kennedy, já como presidente dos Estados Unidos, não se deixou ir à deriva do sucesso espacial soviético, em 25 de maio de 1961, fez o célebre discurso na Universidade Rice, que conclamava aos americanos o desafio de enviar homens à Lua, trazendo-os de volta a salvo. O feito, segundo o discurso, teria que ser alcançado antes que a década de 1960 terminasse. Para viabilizar o projeto, John F. Kennedy pediu ao Congresso as verbas necessárias àquele, que se tornara o maior desafio da Guerra Fria, vencer a corrida espacial. Assassinado em novembro de 1963, o presidente Kennedy não assistiria à chegada do homem à Lua.

Os Projetos Gemini e Apollo

O projeto Mercury consistia em uma nave espacial com capacidade de levar apenas um passageiro a bordo. Com a evolução tecnológica dos equipamentos e das naves, também os projetos deveriam ser mais sofisticados. Para suprir as deficiências antigas, foi criado o programa Gemini, que pretendia testar as técnicas desenvolvidas para a realização de uma viagem tripulada à Lua.
O programa Gemini, criado em março de 1965, realizou com êxito, dez missões tripuladas ao espaço. Suas naves comportavam dois astronautas por missão. O Gemini foi encerrado em 1966, conseguindo que os Estados Unidos alcançasse e ultrapasse a União Soviética na corrida ao espaço.
O sucessor do Gemini foi o programa Apollo, o mais complexo e desenvolvido de todos eles, que tinha como objetivo levar os primeiros seres humanos à Lua. Suas naves foram desenvolvidas para que pudessem transportar três passageiros. Três metas foram traçadas pela NASA para que se concretizasse o objetivo de chegar ao solo lunar: o número de passageiros, a forma da nave e o foguete que a iria propulsar ao espaço.
O projeto teve a genialidade do alemão Wernher von Braun, engenheiro famoso da época do regime nazista, que deserdou, fugindo do seu país, naturalizando-se norte-americano. Von Braun criou o foguete Saturno V, o maior até então, com potência suficiente para lançar uma nave ao espaço, levando três astronautas e, a partir daí, levá-la à Lua. Para a alunagem, Von Braun criou o módulo lunar.
A primeira nave do projeto, a Apollo 1, teve o espectro da tragédia a desenhar a sua história. Em 27 de janeiro de 1967, durante um treino em terra, um curto-circuito incendiou a cabine da Apollo 1, matando os astronautas Gus Grissom, Ed White e Roger Chaffee. A partir de então, os engenheiros da NASA modificaram por completo a cabine do módulo de comando.
A tragédia adiou o projeto, que só foi ter a sua primeira missão tripulada com a Apollo 7, lançando três tripulantes em órbita, Walter Schirra, Don Eisele e Walter Cunningham. Era o primeiro teste para que o homem pudesse chegar à Lua.
Em 21 de dezembro de 1968, foi lançada a Apollo 8, levando os astronautas Frank Borman, Jim Lovell e Bill Anders a bordo. A missão Apollo 8 foi a primeira a levar o homem à órbita da Lua. A nave apresentou graves defeitos, passou por uma tempestade solar e enfrentou um choque com um meteorito, o que impossibilitou que os tripulantes pousassem na Lua. Os astronautas da Apollo 8 foram os primeiros a contemplar a Terra a partira da Lua. Esta imagem, fotografada pelos tripulantes, correu o planeta.

A Apollo 11

Duas outras missões, a Apollo 9 e a Apollo 10, apesar de terem êxito, não chegaram ao solo lunar. A conquista só seria alcançada com a Apollo 11. Em 16 de julho de 1969, mais de um milhão de pessoas concentrou-se em torno do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, para poder ver o lançamento daquela que estava programada para, finalmente, pousar na Lua, a Apollo 11. Às 9h32 da costa leste dos Estados Unidos, a nave foi lançada ao espaço, levando a bordo os astronautas Neil Armstrong, Edwin E. Aldrin e Michael Collins. Após várias voltas em torno da Terra, a nave alcançou a órbita do planeta, sendo os motores acionados para iniciar a viagem de três dias. O mundo acompanhava o espetáculo em todas as televisões do mundo.
No dia 20 de julho, às 16h05, o módulo de comando Columbia, onde estavam os três astronautas, separou-se do módulo lunar Eagle, levando Neil Armstrong e Edwin Aldrin a bordo. Michael Collins permaneceria no Columbia. Às 16h17 daquele dia histórico, Armstrong após manobrar o módulo, concretizava a alunagem. No módulo, restava combustível para mais vinte segundos. Armstrong entrava em contacto com a Terra, avisando que pousara na Lua.

O Homem Pisa na Lua

Antes da descida para explorar o solo lunar, os astronautas deveriam comer e descansar algumas horas. Teriam que estar em forma para que pudessem enfrentar um meio hostil, sem água, atmosfera ou vento, que causavam drásticas oscilações de temperatura, além de uma gravidade inferior a um sexto da terráquea. Após o descanso, os astronautas vestiram os seus trajes espaciais, estavam prontos para enfrentar o exterior. Às 22h56 do dia 20 de Julho, Neil Armstrong põe o pé na superfície lunar. É o primeiro homem a fazê-lo. Sua frase ecoa pelo espaço:
Este é um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade.
A frase, segundo o astronauta, foi espontânea, mas a sua solenidade faz com que se desacredite numa suposta improvisação. Dezoito minutos depois, “Buzz” Aldrin juntou-se ao companheiro. Os dois caminharam com grande dificuldade pela superfície da Lua por duas horas e meia. No decorrer do tempo, promoveram o hasteamento da bandeira dos Estados Unidos, fincando-a em solo lunar, afirmando a supremacia norte-americana na Guerra Fria, fazendo com que as outras nações se prostrassem diante da sua ideologia. Além da bandeira, os astronautas descerraram uma placa comemorativa que trazia um mapa dos hemisférios da Terra, contendo gravada a legenda:
Aqui os homens do planeta Terra pisaram pela primeira vez na Lua. Julho de 1969 d.C. Viemos em paz em nome de toda a humanidade.
Paradoxalmente, aquela aventura dava-se no auge da Guerra Fria, que ao contrário do que afirmava a placa, promovia guerras sanguinárias na Terra em nome das ideologias vigentes. Armstrong e Aldrin recolheram amostras do solo lunar, instalaram um instrumento para medir as oscilações do solo, uma folha de alumínio em forma de bandeira vertical para que se captasse vento solar e um aparelho para que se pudesse medir com precisão a distância entre a Lua e a Terra. Cumprida a missão, os astronautas regressaram ao módulo Eagle, ali permanecendo por várias horas. Armstrong e Aldrin retornam à órbita lunar, onde Michael Collins os aguarda no módulo Columbia. Os dois módulos foram acoplados. No módulo de comando, os três astronautas juntaram-se novamente, iniciando a viagem de regresso à Terra. No dia 24 de julho, aterrisavam, às 12h50, em um ponto do oceano Pacífico. Estava cumprida a missão que levara o homem à Lua.
O projeto Apollo enviaria ao espaço mais seis missões, cinco delas alunaram, tendo a Apollo 13 falhado em sua missão. A Apollo 17, lançada em dezembro de 1972, foi a última missão em que o homem pisou no solo lunar. A partir de então, as viagens à Lua ficaram suspensas, e só voltarão a ser retomadas caso haja interesse econômico e científico. O objetivo principal tinha sido atingido, os Estados Unidos venceram a corrida espacial, mostrando-se a nação mais potente nos meandros da Guerra Fria. A ciência ficaria para depois!
Anos mais tarde, teorias da conspiração tentam desacreditar que a Apollo 11 tenha pousado no solo lunar, fazendo com que algumas milhares de pessoas duvidem que um dia o homem pisou na Lua. Teorias à parte, a chegada do homem à Lua foi um dos maiores espetáculos da Terra, ainda hoje suscitando paixões e arroubos. A Lua, apesar de desvendada, continua a exercer um misterioso fascínio sobre a humanidade.


CASABLANCA

julho 14, 2009

Casablanca”(Casablanca, Estados Unidos, 1942) é um daqueles filmes que foi gerado em cima de grandes coincidências felizes, tornando-se um dos melhores de todos os tempos. Desenhado em cima de um caos absoluto, o roteiro foi escrito em plena locação, na noite anterior em que as cenas seriam gravadas, confundindo os atores, que não sabiam o resultado final daquela confusão da história que se contava; ainda assim “Casablanca” teria um resultado surpreendente, que conquistaria as platéias do mundo inteiro, tornando-se obrigatório aos apaixonados ou não pelo cinema.
Ladeado de histórias e lendas, “Casablanca” foi gravado em plena Segunda Guerra Mundial, em um momento que os Estados Unidos acabara de entrar na guerra e os nazistas pareciam que iria vencê-la. A sua propaganda de guerra é discreta, mas sugere uma esperança tenaz diante daqueles tempos obscuros, onde o homem é sobrevivente graças às alianças que faz, mas em um mundo que tem o domínio repressivo sobre a liberdade e a vida como prêmios, há sempre um patriotismo velado, que emerge quando o caráter é confrontado.
O amor é o principal veículo para que se descubra o caráter. Ele vem com a sombra da guerra como pano de fundo. É resultado dela. Nunca um casal mostrou-se tão belo, apaixonante e carismático na grande tela, como em “Casablanca”. Ingrid Bergman, no esplendor da sua juventude e beleza, revelou-se com um olhar quente, que suga o espectador na emoção daquele amor movido pela guerra. Humphrey Bogart assume um cinismo inteligente, de uma falsa frieza, que vai dilatando-se diante da beleza e da paixão que sente pela personagem da atriz sueca. A química entre ambos é total, levando a platéia às lágrimas quando um Bogart apaixonado abre mão do seu amor para que ela siga ao lado do marido, dizendo “Nós sempre teremos Paris”. O homem frio torna-se o próprio vulcão da grandeza da alma, abrindo mão do seu único contacto com os sentimentos e com o amor, para que a amada alcance um bem maior, muito além da felicidade imaginada a dois.
Casablanca” tem um roteiro que prende o espectador, tem mistério, amor e guerra como ingredientes básicos. Mas tem, principalmente, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. São os dois que conduzem as emoções e as lágrimas da platéia. A beleza daquele casal, emotiva e física, jamais seria repetida no cinema. A cidade marroquina, o Rick’s Cafe, o pianista Sam, a música “As Time Goes By”, os nazistas, a resistência, a guerra, tudo flui para alçar o esplendor de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, que conquistarão para sempre aqueles que os viram juntos. “Casablanca” é o lugar onde Ingrid Bergman e Humphrey Bogart um dia se encontraram e se perderam. É o espetáculo vivo da verdadeira acepção do que é o cinema. “Casablanca” é cinema puro!

O Caos dos Bastidores

Em 2000 “Casablanca” foi eleito o segundo melhor filme da história do cinema pelo conceituado American Film Institut, perdendo apenas para “Cidadão Kane”. Ao contrário do primeiro lugar, feito por um dos mais geniais cineastas, Orson Welles, “Casablanca” foi concebido como mais um filme dentre os inúmeros que a Warner Bros lançava à época. Feito em estúdio, sem maiores ambições artísticas; e, dirigido por Michael Curtiz, um diretor de origem húngara, especialista em sucessos de aventuras, dono de uma filmografia mediana, sem grandes genialidades. Contrariando todas as expectativas, “Casablanca” tornou-se um clássico do cinema, transformando-se em um dos maiores triunfos de Hollywood.
As filmagens de “Casablanca” são cercadas de estranhas histórias de bastidores, muitas se confundem com a verdade e a mitificação do clássico, gerando uma sucessão de grandes coincidências favoráveis que o transformaram em um dos maiores (se não o maior) romances já levados às telas em toda a história do cinema. Lendas ou verdades, fazem dos bastidores das gravações do filme, uma grandiosidade à parte, que não consegue explicar como, em meio ao caos, surgiu uma história tão sublime.
O primeiro cineasta convidado para dirigir o drama, William Wyler, na época no auge do seu prestígio, declinou ao convite. A bela Hedy Lamarr foi escalada para o papel Ilsa Lund, mas recusou diante das condições oferecidas pelo estúdio, que não tinha um roteiro escrito. Também George Raft declinou ao convite de fazer Richard Blaine. Reza a lenda que o êxito do filme “King’s Row” (1941), de Sam Wood, protagonizado por Ronald Reagan e Ann Sheridan, levou aos empresários da Warner Bros a pensar no casal de atores como protagonistas, tendo Dennis Morgan no papel do herói da resistência tcheca, Victor Laszlo.
Elenco e direção só foram definidos quando a Warner Bros pensou em Michael Curtiz como diretor. Curtiz, um exilado do leste europeu, vinha de grandes sucessos realizados para aquele estúdio, como “Capitão Blood” (1935), “Anjos da Cara Suja” (1938), “Quatro Filhas” (1938), “As Aventuras de Robin Hood” (1938) e “O Lobo do Mar” (1941). Era um realizador mediano, especialista em grandes aventuras que deram o estrelato ao ator Errol Flynn.
Definida a direção, Humphrey Bogart e Ingrid Bergman foram escalados para protagonistas do filme, transformando-se no mais apaixonado e apaixonante casal do cinema. Paul Henreid relutou em aceitar o papel de Victor Laszlo, temendo comprometer a imagem por considerá-lo um papel pequeno, mas venceu os medos e assumiu um dos melhores papéis da sua carreira.
Os irmãos Julius e Philip Epstein foram chamados para adaptarem livremente, a peça “Everybody Goes to Rick”, de Murray Burnett e Joan Alison. Curiosamente, escreviam os diálogos nos bastidores das filmagens, entregando, durante a noite, as falas que seriam ditas pelos atores no dia seguinte. Segundo boatos de bastidores, a situação aflorava a irritação de Humphrey Bogart, que não sabia o caminho que a sua personagem seguiria no outro dia, o que lhe conferiu o azedume perene na interpretação de Rick Blaine. Mas o estilo mordaz usado pela dupla de roteiristas não agradava aos produtores, que chamaram Howard Koch para escrever o longo flash back que rasga o meio do filme, revivendo os dias felizes de Rick Blaine e Ilsa em Paris. O roteirista redigiu esta parte da trama sem nunca ter lido o que os irmãos Epstein estavam escrevendo, o mesmo acontecendo com os dois irmãos em relação a Koch. Esta intervenção aumentou ainda mais a confusão entre os atores, que se perderam da história, sem saber que rumo tomava o que estavam a filmar.
Mesmo diante do caos das gravações, o filme adquiriu um enredo intocável, de inexplicável coerência criativa. Somando os dois roteiros – dos irmãos Epstein e de Howard Koch – surgiu uma narrativa impressionantemente fluída, quase beirando à perfeição, dando origem ao maior de todos os romances do cinema.

O Reencontro de Rick e Ilsa

Durante a Segunda Guerra Mundial, a cidade de Casablanca, no norte da África, torna-se, diante de uma França ocupada pelos nazistas, um lugar de espionagem e de esperança para os refugiados da guerra, fugitivos do Terceiro Reich, que dali, sonhavam em conseguir documentos para que pudessem assim, chegar a Lisboa, último lugar da Europa longe dos tentáculos de Hitler. De Lisboa, um navio era a última esperança de fuga para a América, longe da guerra.
É nesta atmosfera que se inicia o filme. O americano Rick Blaine (Humphrey Bogart), um homem amargo e cínico, é proprietário do maior bar de Casablanca, o Rick’s Cafe. Rick é um sobrevivente do mundo. Não se envolve ou se deixa comover pelos conflitos gerados pela guerra. Tem uma relação difícil e polida com o chefe de polícia local, o capitão Louis Renault (Claude Rains). Rick deixa que o seu café seja usado para ajudar fugitivos a obterem salva-condutos para Lisboa, fazendo-o não por questões humanitárias, mas mediante lucros com os frequentadores do seu bar.
Rick é um homem que não acredita em amizade verdadeira, não fala no amor e na paixão, parecendo inatingível aos sentimentos, seu cinismo demarca a troça que faz de todos que lhe ladeiam. Homem frio, jamais bebe no trabalho. Mesmo diante do cinismo latente, a personagem traz os mais inteligentes diálogos já escritos para o cinema. Um exemplo é o diálogo travado entre Rick e Ugarte (Peter Lorre), um grande trapaceiro da região:
Você me despreza, não? – Pergunta-lhe Ugarte.
Desprezaria, se pensasse em você. – Responde Rick.
A frase define o caráter cínico, amargo e com um travo de melancolia de Rick Blaine. O motivo de toda a amargura do americano só surge cerca de trinta minutos após o início do filme. Nesses primeiros minutos, várias histórias são cruzadas, esmiuçando o clima que se ergue em Casablanca. Trinta minutos depois, Ilsa Lund (Ingrid Bergman), entra no bar, e o pianista negro Sam (Dooley Wilson) pára de tocar. Ela reconhece o pianista. Nunca o olhar de Ingrid Bergman foi tão penetrante, de uma cumplicidade quente e singela, desarmado ao mundo, tão úmido e brilhante, quando ela pede, pela primeira vez, para ele tocar “As Time Goes By”. Ao ouvir a música, Rick irrita-se, é uma canção por ele proibida. O seu asco sucumbe diante do sinal secreto de Sam, que lhe mostra Ilsa. A platéia vê tudo no olhar de Rick e de Ilsa, que iniciam um reencontro que emocionaria e levaria milhões de pessoas em todo mundo às lágrimas. Tudo se nos é revelado nos olhares de Rick e Ilsa, sem sabermos nada, sem cruzarmos uma única palavra. A cena e os atores revelam um amor penetrante e infinito.

A Canção Imortalizada, Que Foi Utilizada no Filme por Erro

O reencontro de Rick e Ilsa aparentemente casual, vem tecido de uma longa intriga política e de bastidores de guerra. Antes de rever Ilsa, Rick foi avisado pelo capitão Renault de que o major Heinrich Strasser (Conrad Veidt), membro da Gestapo, viria ao bar como um importante convidado, na tentativa de prender Ugarte, considerado responsável pela morte de dois alemães e por vender salva-condutos para fugitivos de guerra, além de fiscalizar a iminente chegada de um certo Victor Laszlo (Paul Henreid), líder da resistência tcheca que fugira de um campo de concentração. O oficial nazista apostava que Victor Laszlo viria ao café, acompanhado da esposa, na tentativa de comprar de Ugarte um visto de saída de Casablanca. Durante à tarde, Ugarte é preso pelos nazistas e executado logo a seguir. Antes da prisão, Ugarte deixa os salva-condutos aos cuidados de Rick.
É desta intriga política que Ilsa ressurge do passado de Rick. Ela tinha sido no passado, o grande amor da vida do dono do bar. Viveram um romance em Paris, tórrido e inesquecível, que marcara para sempre as suas vidas. Mas veio a guerra, os alemães marcharam sobre Paris, levando embora os encantos, a beleza e a liberdade da cidade. Diante da invasão nazista, Rick fora obrigado a deixar Paris, pensando em levar Ilsa consigo. Mas ela não o acompanhou, deixando-o seguir sozinho. Abandonado, sentindo-se rejeitado, Rick Blaine seguiu para Casablanca, tornando-se um homem frio e amargurado, vivendo das lembranças do amor de Ilsa, transbordado em um cinismo latente, defensivo e aparentemente definitivo.
Quando Ilsa foi ao bar de Rick, não imaginava que ele era o mesmo Richard de Paris. Ela era a esposa de Victor Laszlo. Vinha em busca da preciosa carta de permissão para que deixasse, ao lado do marido, Casablanca, rumo a Lisboa. Ao deparar-se com Sam, ela reconhece-o, não resiste e pede para que toque a velha canção de amor de outros tempos. Ao ouvir a música, antes de ver Ilsa, Humphrey Bogart empresta à personagem o olhar mais frio, cerrado e seco que se tem notícia, numa existência que transborda a mais tenaz das amarguras. É ao som de uma das mais banais e famosas canções de um certo Herman Hupfeld, “As Time Goes By”, que toda a glória do filme é revelada à platéia, estabelecendo-se todo o conflito que se sucedeu entre os dois anos do imenso amor de Paris e o reencontro em Casablanca. Um flash back fluente revive todo o amor e os fantasmas de Rick e Ilsa, perdidos para sempre nas ruas de Paris.
Curiosamente, “As Time Goes By”, que se tornou uma canção lendária com “Casablanca”, não foi composta para o filme. Diante do caos das gravações, quando Ingrid Bergman fez a cena, a trilha sonora de Max Steiner para o filme ainda não estava pronta. A atriz, que gostava da música, teve que improvisar. Steiner achava “As Time Goes By”, que tinha sido lançada sem sucesso anos antes, banal e sem impacto, de um valor musical menor. Só na montagem do filme é que Michael Curtiz e Max Steiner perceberam que a atriz tinha dito o nome da canção. Sob exigência de Steiner, Curtiz pediu que Ingrid Bergman voltasse às gravações para refazer os diálogos com Dooley Wilson. A atriz retornou aos estúdios, mas havia cortado os cabelos para fazer a personagem de um outro filme, e a cena não pôde ser refeita. Mais uma coincidência de um erro que deu certo e fez de “As Time Goes By” uma canção imortalizada, sem que se consiga imaginar “Casablanca” sem os seus versos e melodia, aqui a dar uma magia única ao romance temporariamente recuperado de Ilsa e Rick.

O Amor Reascende em Casablanca

Antes do reencontro com Ilsa, Rick tinha recebido no seu bar o poderoso major Strasser. O chefe da gestapo confidenciara ao dono do estabelecimento que o seu principal objetivo em Casablanca era prender líderes e membros da resistência, principalmente o fugitivo Victor Laszlo. Rick mantém-se impassível, neutro, para ele pouco importava os nazistas ou os heróis da resistência. Era apenas um sobrevivente, um homem de negócios.
Ao saber que Ilsa Lund é a mulher de Victor Laszlo, Rick Blaine tem consciência dos perigos que o rival corre em Casablanca, sendo a sua prisão e possível fuzilamento uma questão de tempo. O Reencontro dos antigos amantes é marcado pelo ressentimento, pelo ódio da traição e cicatrizes da separação. Mas Ilsa sabe que com a prisão de Ugarte, só Rick Blaine pode ajudá-la. Pede a ajuda do antigo amante, não para si, mas para o marido, que não viverá muito tempo se continuar em território marroquino.
No meio da explosão entre jogos de culpas e cicatrizes, uma Ingrid Bergman sensível, com lágrimas nos olhos a evidenciar-lhe a culpa e o abandono do grande amor, deixa sem fôlego não só um frio e seco Humphrey Bogart, como toda a platéia. Aos prantos, ela reafirma o seu amor por Rick, que nunca o esquecera. Confessa porque o tinha abandonado em Paris. Quando vivera um romance com Rick, ela era casada com Laszlo, que estava preso em um campo de concentração nazista, one ela o julgara morto. Soube que o marido estava vivo no dia que iria deixar Paris ao lado de Rick, por isto não podia sair da Europa e seguir o amado pelo mundo. Se o fizesse, jamais teria paz com a sua consciência.
Tudo que Ilsa quer é salvar o marido. Fazendo-o, ela libertar-se-ia do peso da culpa, podendo seguir Rick para qualquer parte do mundo. Ambos reacendem a paixão. Beijam-se, mostrando-se apaixonados e decididos, vão ficar juntos, após a fuga de Victor Laszlo.

A Marselhesa Vence o Hino Nazista

Mas o mundo vai além da paixão entre Rick e Ilsa. Uma guerra sangrenta é travada nos campos de batalha e nos bastidores políticos. O destino de ambos está seriamente entrelaçado com a guerra e com os seus envolvidos. Victor Laszlo e a mulher são levados ao escritório do capitão Renault, onde são ameaçados pelo major Strasser, que os intimida, na tentativa de que entreguem os nomes de todos os líderes da resistência, só assim sairão com vida de Casablanca. Mas Victor Laszlo responde às ameaças com a sua natural devoção aos ideais de liberdade:
Se não delatei meus companheiros quando me encontrava preso em um campo de concentração, onde vocês usavam métodos mais persuasivos, não será aqui que vou fazê-lo.
O caráter ideológico e político do filme são desenhados pela luta tenaz de Victor Laszlo. Um dos momentos míticos e criativos de “Casablanca” acontece quando Laszlo interrompe um diálogo intrínseco com Rick, ao ouvir que o oficial nazista encarregado de prendê-lo cantava o introspectivo e sombrio “Die Wacht am Rheim”; e incita os freqüentadores do bar a cantar o hino da França. A beleza romântica e explosiva da “Marselhesa” interrompe o ritmo marcial do hino nazista, trazendo uma emocionante seqüência que culmina com o triunfo do patriotismo sobre a traição, do desafio sobre o silêncio, e da coragem exaltada sobre o medo disseminado. A partir de então não se pode mais ter personagens neutros, há uma guerra sendo travada, não se pode ignorá-la, e as imagens da cena devoram os diálogos, não há palavras, mas a redenção para todas as opressões políticas e sentimentais. O silêncio dos diálogos evidencia a força do hino, que naquele ano de 1942, era um grito quase que arrancado das entranhas. Se nos campos de guerra o terror nazista parecia vencer a resistência, neste momento apoteótico do filme, há uma breve vitória dos oprimidos, refletida no esplendor do hino da França.

Despedida em Casablanca

Nas seqüências finais do filme, Rick Blane decide fugir com Ilsa para Lisboa. Irá usar os salva-condutos de Ugarte, que os possibilitarão deixar Casablanca. Negocia a venda do Rick’s Cafe, e envolve o capitão Renault em uma tramóia de fuga que, aparentemente, prepara uma armadilha para Victor Laszlo.
Ilsa, Rick e Laszlo estão prontos para seguirem para o aeroporto de Casablanca. Ela pensa que só o marido seguirá viagem, e que ao vê-lo a caminho da liberdade, poderá finalmente viver o seu amor com Rick. O que ela não sabe é que Rick só possui duas cartas de trânsito. Um suspense final leva o filme a um novo ápice. O que acontecerá a Laszlo? Quem partirá de Casablanca?
Quando Rick dá as cartas de trânsito para Laszlo preencher, o capitão Renault surge com a ordem de prisão. Ilsa põe-se ao lado do marido, disposta a morrer por ele. Rick percebe que o destino da amada estava ligado para sempre ao de Laszlo, e que os dois devem partir juntos. Inesperadamente, Rick aponta uma arma disfarçada para Renault, impedindo que o líder da resistência fosse preso, forçando o capitão a telefonar para o aeroporto e avisar que dois passageiros irão embarcar para Lisboa. Mas o esperto capitão Renault telefona para o chefe da Gestapo, major Strasser, avisando-o da fuga.
A tensão aumenta. No hangar do aeroporto, um avião está preparado para partir em dez minutos. Rick, Ilsa, Laszlo e Renault chegam ao local de embarque em um carro do governo. Rick ordena que Renault preencha as duas cartas de trânsito em nome do Senhor e da Senhora Victor Laszlo. Só então Ilsa apercebe-se da armadilha do destino. Atônita, ela insiste para que os dois continuem juntos, que não se separem outra vez. Mas um Rick magnânimo sabe que a luta de Victor Laszlo é maior do que a sua paixão por Ilsa. Que o mundo em guerra, precisava muito mais da ideologia dos heróis salvadores do que do amor incondicional dos amantes. A razão dentro daquele mundo de guerra exigia e explicava o sublime sacrifício do amor dos amantes de Paris.
Para Rick, haveria as lembranças de uma felicidade efêmera. “Sempre teremos Paris”, justifica-o à amada. Abre-se a imensidão do adeus que fará chorar o mais frio do espectador. Ambos sabem que terão Paris apenas na memória, jamais uma outra vez. Terão Casablanca apenas na persistência das lembranças do amor perdido. O adeus seria definitivo. Jamais se voltariam a tocar, nunca mais se iriam beijar. Paris e Casablanca permaneceriam por todo o tempo, quando tinham a certeza de que “as time goes by”. Ao lado do marido, Ilsa aceita o sacrifício do amado, partindo, lançando-lhe um último olhar de adeus. Quanto mais se distanciava do amado, aproximando-se do avião, uma lágrima inundava-lhe a beleza instransponível e solitária do rosto. Casablanca fica deserta. Jamais iríamos ver Ilsa-Bergman e Rick-Bogart juntos outra vez.
Rick fica sozinho, com a ameaça do capitão Renault, que lhe garante, irá prendê-lo tão logo o avião parta. Rick Blaine não se importa. Fizera o maior sacrifício da sua vida. Era um novo homem. Ou talvez o antigo, o revolucionário da juventude. A frieza cortante dava passagem para um homem idealista e de ambições humanas mais perenes.
Em um último fôlego, surge o major Strasser, ameaçando telefonar ao hangar para que o avião seja interceptado. Mas Rick saca da arma, ordena-lhe que desista. O chefe nazista consegue sacar de uma arma, ao tentar atirar em Rick, é atingido mortalmente por ele. Há um breve momento de silêncio e tensão. No horizonte, o avião que leva Ilsa e Laszlo distancia-se, rumo a Lisboa.
Imprevisivelmente, o capitão Renault desiste de prender Rick, diz que não há testemunhas, sugere que Rick desaparecera de Casablanca por alguns tempos. O capitão deixa o patriotismo vencer à traição, tão comum na sua França ocupada. Rick e Renault caminham debaixo de um intenso nevoeiro, enquanto o avião desaparece no horizonte.
Encerra-se um dos filmes que, omitindo o caos dos bastidores, tornou-se quase que perfeito. Nos desacertos, foram gerados momentos antológicos do cinema. Nos acertos, reuniu um elenco esplendoroso, com as indicações de Humphrey Bogart e Claude Rains para o Oscar de melhores atores, principal e coadjuvante respectivamente. Triunfante, receberia três Oscars, o de melhor filme, melhor diretor e melhor roteiro. Foi um dos filmes que mais atingiu o coração da platéia que o veio assistir, tornando-se um gigante definitivo cinema mundial.

Ficha Técnica:

Casablanca

Direção: Michael Curtiz
Ano: 1942
País: Estados Unidos
Gênero: Drama
Duração: 103 minutos / preto e branco
Título Original: Casablanca
Roteiro: Julius J. Epstein, Philip G. Epstein e Howard Koch, baseado na peça “Everybody Comes to Rick’s” de Murray Burnett e Joan Alison
Direção de Diálogos: Hugh MacHullan
Produção: Hal B. Wallis
Produção Executiva: Jack L. Warner
Música: Max Steiner, M. K. Jerome, Jack Scholl e Herman Hupfeld (As Time Goes By)
Arranjos de Orquestra: Hugo Friedhofer
Direção Musical: Leo F. Forbstein
Direção de Fotografia: Arthur Edeson
Direção de Arte: Carl Jules Weyl
Decoração de Set: George James Hopkins
Figurino: Orry-Kelly
Maquiagem: Perc Westmore
Edição: Owen Marks
Efeitos Especiais: Lawrence Butller e Willard Van Enger
Montagem: Don Siegel e James Leicester
Som: Francis J. Scheid
Consultor Técnico: Robert Aisner
Estúdio: Warner Bros.
Distribuição: Warner Bros. / Metro-Goldwyn-Mayer
Elenco: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Rains, Conrad Veidt, Sydney Greenstreet, Peter Lorre, S. Z. Sakall, Madeleine LeBeau, Dooley Wilson, Joy Page, John Qualen, Leonid Kinskey, Curt Bois
Sinopse: Durante a Segunda Guerra Mundial, Casablanca, cidade do Marrocos, então protetorado francês, torna-se rota obrigatória de quem estava a fugir das atrocidades dos nazistas. Será em Casablanca que Rick Blane (Humphrey Bogart), dono do maior bar local, irá reencontrar Ilsa Lund (Ingrid Bergman), anos depois de terem se apaixonado e se perdido em Paris. Nos meandros da guerra, uma história comovente de paixão e sacrifício desenha uma trama empolgante e definitiva. Inesquecível.

Michael Curtiz

Mihály Kertész ficou conhecido no mundo pelo seu nome americanizado, Michael Curtiz. Nasceu em Budapeste, no Império Austro-Húngaro (hoje Hungria), em 24 de dezembro de 1886. Oriundo de uma família judaica, tinha o nome de Manó Kertész Kaminer, substituído pelo pseudônimo de Mihály Kertész quando iniciou a carreira de ator e diretor no Teatro Nacional Húngaro, em 1912.
Segundo o próprio Michael Curtiz, teria fugido da casa dos pais para que se pudesse juntar ao circo. Também costumava gabar-se de ter feito parte da seleção de esgrima nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. De concreto, sabe-se que estudou na Universidade de Markoszy e na Academia Real de Teatro e Arte.
Em 1913, Michael Curtiz seguiu para a Dinamarca, onde passou seis meses no estúdio Nordisk, a aperfeiçoar-se como diretor de cinema. A carreira foi interrompida por algum tempo quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, obrigando-o a fazer parte da artilharia do exército Austro-Húngaro. Retornaria à direção dos filmes em 1915. Por esta época casou-se com a atriz Lucy Doraine, com quem viveu até 1923.
Por conta da nacionalização da indústria cinematográfica do seu país, Curtiz deixou a Hungria em 1919, fixando-se em Viena, onde fez cerca de 21 filmes para o estúdio Sascha-Film. Em 1924 teve o filme “Die Sklavenkönigin”, lançado nos Estados Unidos com o título de “Moon of Israel” (Lua de Israel), atraindo a atenção de Jack Warner, que o contratou para o seu estúdio, a Warner Bros. Assim, em 1928, Curtiz realizou para aquele estúdio “Noah’s Ark” (Arca de Noé).
Nos Estados Unidos, adotou o nome de Michael Curtiz, iniciando uma carreira de grandes sucessos em Hollywood. Por cerca de trinta anos, teve o nome nos créditos de mais de cem filmes. Durante a Segunda Guerra Mundial, Curtiz teve parte da família enviada para o campo de concentração de Auschwitz. Nesta época realizou grandes sucessos como “O Lobo do Mar” (1941), o mítico “Casablanca” (1942) e “Alma em Suplício” (1945).
Michael Curtiz recebeu quatro indicações da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para Oscar de melhor diretor: “Anjos da Cara Suja” (1938), “Quatro Filhas” (1939), “A Canção da Vitória” (1943) e “Casablanca”, que lhe deu a estatueta em 1944.
A relação de Curtiz com os estúdios de Hollywood deteriorou-se com o passar dos anos, terminando em uma grande batalha nos tribunais. A partir de 1953, continuou a dirigir como independente. Seu último filme foi “Os Comancheros” (1961), com John Wayne, lançado menos de um ano antes da sua morte. Michael Curtiz morreu vítima de um câncer em 10 de abril de 1962, em Hollywood.

Filmografia de Michael Curtiz:

1912 – Ma És Holnap
1912 – Az Utolsó Bohém
1913 – Rablélek
1913 – Házasodik Az Uram
1914 – Bánk Bán
1914 – Az Éjszaka Rabjai
1914 – Az Aranyásó
1914 – A Tolonc
1914 – A Kölcsönkért Csecsemök
1914 – A Hercegnö Pongyolaban
1915 – Akit Ketten Szeretnek
1916 – Makkhetes
1916 – Farkas
1916 – Doktor Úr
1916 – Az Ezüst Kecske
1916 – A Magyar Föld Ereje
1916 – A Karthausi
1916 – A Fekete Szivárvány
1917 – Zoárd Mester
1917 – Tavasz a Télben
1917 – Tatárjárás
1917 – Halálcsengö
1917 – Egy Krajcár Története
1917 – Az Utolsó Hajnal
1917 – Az Ezredes
1917 – A Vörös Sámson
1917 – A Szentjóbi Erdö Titka
1917 – A Senki Fia
1917 – Árendás Zsidó
1917 – A Kuruzsló
1917 – A Föld Embere
1917 – A Béke Útja
1918 – Varázskeringö
1918 – Lulu
1918 – Lu, A Kokott
1918 – Júdas
1918 – Az Ördög
1918 – A Vig Özvegy
1918 – A Skorpió I
1918 – Alraune
1918 – A Csúnya Fiú
1918 – 99
1918 – A Napraforgós Hölgy
1919 – Liliom
1919 – Jön Az Öcsém
1919 – Die Dame Mit Dem Schwarzen Handschuh
1920 – Boccaccio
1920 – Der Stern von Damaskus
1920 – Die Gottesgeisel
1921 – Miss Tutti Frutti
1921 – Herzogin Satanella
1921 – Frau Dorothys Bekenntnis
1921 – Labyrinth des Grauens
1922 – Sodom und Gomorrha
1923 – Der Junge Medardus
1923 – Die Lawine
1923 – Namenlos
1924 – General Babka
1924 – Ein Spiel Ums Leben
1924 – Harun al Raschid
1924 – Die Sklavenkönigin
1925 – Das Spielzeug von Paris
1926 – Fiaker Nr. 13
1926 – Der Goldene Schmetterling
1926 – The Third Degree
1927 – A Million Bid
1927 – The Desired Woman
1927 – Good Time Charley
1928 – Tenderloin
1928 – Noah’s Ark (A Arca de Noé)
1929 – Glad Rag Doll
1929 – Madonna of Avenue A
1929 – The Gamblers
1929 – Hearts in Exile
1930 – Mammy (Minha Mãe)
1930 – Under a Texas Moon
1930 – The Matrimonial Bed
1930 – Bright Lights
1930 – River’s End
1930 – A Soldier’s Plaything
1931 – Dämon des Meeres
1931 – God’s Gift to Women
1931 – The Mad Genius (O Gênio do Mal)
1932 – The Woman From Monte Carlo
1932 – Alias The Doctor
1932 – The Strange Love of Molly Louvain
1932 – Doctor X (Doctor X)
1932 – The Cabin in the Cotton
1932 – 20.000 Years in Sing Sing (20.000 Anos em Sing Sing)
1933 – Mystery of the Wax Museum (Os Crimes do Museu)
1933 – The Keyhole
1933 – Private Detective 62
1933 – The Mayor of Hell (não creditado)
1933 – Goodbye Again (Mais Uma Vez Adeus)
1933 – The Kennel Murder Case (O Caso de Hilda Lake)
1933 – Female
1933 – From Headquarters (não creditado)
1934 – Mandalay (Capricho Branco)
1934 – Jimmy the Gent (Bancando o Cavalheiro)
1934 – The Key
1934 – British Agent
1935 – Black Fury (Inferno Negro)
1935 – The Case of the Curious Bride
1935 – Go Into You Dance (não creditado)
1935 – Front Page Woman (Miss Repórter)
1935 – Little Big Shot
1935 – Captain Blood (Capitão Blood)
1936 – The Walking Dead (O Morto Ambulante)
1936 – Anthony Adverse (não creditado)
1936 – The Charge of the Light Brigade (A Carga da Brigada Ligeira)
1937 – Black Legion (não creditado)
1937 – Stolen Holiday
1937 – Marked Woman (Mulher Marcada) (não creditado)
1937 – Moutain Justice (Justiça Humana)
1937 – Kid Galahad (Talhado Para Campeão)
1937 – The Perfect Specimen
1938 – Gold is Where You Find It
1938 – The Adventures of Robin Hood (As Aventuras de Robin Hood)
1938 – Four’s a Crowd (Amando Sem Saber)
1938 – Four Daughters (Quatro Filhas)
1938 – Angels With Dirty Face (Anjos de Cara Suja)
1939 – Blackwell’s Island (não creditado)
1939 – Dodge City (Uma Cidade Que Surge)
1939 – Sons of Liberty
1939 – Daughters Courageous
1939 – The Private Lives of Elizabeth and Essex (Meu Reino Por um Amor)
1939 – Four Wives
1940 – Virginia City (Caravana de Ouro)
1940 – The Sea Hawk (O Gavião do Mar)
1940 – Santa Fe Trail (A Estrada de Santa Fé)
1941 – The Sea Wolf (O Lobo do Mar)
1941 – Dive Bomber (Demônios do Céu)
1942 – Captains of the Clouds (Corsários das Nuvens)
1942 – Yankee Doodle Dandy (A Canção da Vitória)
1942 – Casablanca (Casablanca)
1943 – Mission to Moscow (Missão em Moscou)
1943 – This is the Army (Forja de Heróis)
1944 – Passage to Marseille (Passagem para Marselha)
1944 – Janie
1945 – Roughly Speaking
1945 – Mildred Pierce (Alma em Suplício)
1946 – Night and Day (A Canção Inesquecível)
1947 – Life With Father (Nossa Vida com Papai)
1947 – The Unsuspected (Sem Sombra de Suspeita)
1948 – Romance on the High Seas (Romance em Alto Mar)
1949 – My Dream is Yours (Meus Sonhos Te Pertencem)
1949 – Flamingo Road (Caminha da Redenção)
1949 – The Lady Takes a Sailor (Até Parece Mentira)
1950 – Young Man With a Horn (Êxito Fugaz)
1950 – Bright Leaf (Cinzas ao Vento)
1950 – The Breaking Point (Redenção Sangrenta)
1951 – Force of Arms (Quando Passar a Tormenta)
1951 – Jim Thorpe – All-American (O Homem de Bronze)
1951 – I’ll See You in My Dreams (Sonharei Com Você)
1952 – The Story of Will Rogers (A História de Will Rogers)
1952 – The Jazz Singer (O Cantor de Jazz)
1953 – Trouble Along the Way (Atalhos do Destino)
1954 – The Boy From Oklahoma (Aço de Boa Têmpera)
1954 – The Egyptian (O Egípcio)
1954 – White Christmas (Natal Branco)
1955 – We’re No Angels (Veneno de Cobra)
1956 – The Scarlet Hour
1956 – The Vagabond King (O Rei Vagabundo)
1956 – The Best Things in Life are Free (O Encanto de Viver)
1957 – The Helen Morgan Story (Com Lágrimas na Voz)
1958 – The Proud Rebel (O Rebelde Orgulhoso)
1958 – King Creole (Balada Sangrenta)
1959 – The Hangman
1959 – The Man in the Net (A Mulher que Comprou a Morte)
1960 – A Breath of Scandal (O Escândalo da Princesa)
1960 – The Adventures of Huckleberry Finn (As Aventuras de Huckleberry Finn)
1961 – Francis of Assisi (São Francisco de Assis
1961 – The Comancheros (Os Comancheros)


LISBOA: ALEXANDRE E EU – AL BERTO

julho 9, 2009

Há exatos quinze anos, Lisboa era aclamada a Capital Européia da Cultura 1994, trazendo uma série de eventos culturais que eclodiram por toda a cidade. Os velhos prédios da cidade foram restaurados, ganhando cores vivas e diversas. O Bairro Alto foi chamado de “A Sétima Colina”, sendo o principal símbolo dos eventos culturais. Seus bares tornaram-se efervescentes, renovando a juventude que o freqüentava. Foi neste clima festivo que mais convivi com o poeta Al Berto e com o seu grande amigo, Alexandre Matos (ambos juntos na fotografia colorida).
O convívio foi fugaz, mas para sempre. Das noites no Frágil aos jantares no Targus, dos encontros constantes n’A Brasileira do Chiado, ao desfile de formatura em estilista do Alexandre, no Coliseu dos Recreios, serviu para que eu pudesse perceber o texto que me seria entregue mais tarde.
Em junho de 1997, um câncer fulminante decepou a vida do Al Berto. Em agosto reencontrei Alexandre Matos no bar do Miradouro de Santa Luzia. Estava de férias em Lisboa, pois há pouco mais de um ano fora morar em Turim, na Itália. Estava deprimido, abatido e inconsolável pela recente morte do Al Berto. A partir deste encontro, Alexandre trouxe-me várias cartas e textos do poeta, feitas a ele, perguntando-me se poderia ajudá-lo a publicá-las. As cartas, de teor intimamente pessoais, foram devolvidas. Um texto chamou-me a atenção, “Lisboa: Alexandre e Eu”, escrito em 1994, em laudas ainda datilografadas. O texto foi um presente do Al Berto ao Alexandre, que lhe tinha dito, fizesse o que bem entendesse com ele. A idéia era aproveitar o texto, verdadeira poesia em prosa, em um pequeno livro com fotografias feitas por Alexandre Matos. Mas quis a vida que eu seguisse um caminho diferente e retornasse ao Brasil, e os planos de publicar o texto do Al Berto, que continuou inédito, malograram.
Um texto de rara beleza, “Lisboa: Alexandre e Eu”, de Al Berto, traz a atmosfera das noites lisboetas, nas ruas do Bairro Alto. Cita lugares, os coletivos dos bairros, a noite, a bebida, a paixão e o amor. Traz uma melancolia madura, de alguém que já pressentia que a morte estava por perto e fazia, da sua poesia, o legado, o testamento para aqueles que amava. O texto é um jogo de metáforas e palavras diluídas numa beleza etérea, contínua, de paisagens urbanas, tendo o Tejo como centro e Lisboa como protagonista das vidas e das paixões. O sangue e o desejo transbordam as palavras, servidas pelos quartos dos amantes em cálices de bebidas quentes e dilacerantes.
Al Berto e Alexandre Matos, dois amigos situados na memória do meu coração. O texto que segue, provavelmente ainda inédito, é a minha homenagem aos dois, com as fotografias feitas por Alexandre Matos, do jeito que ele sonhara um dia. A autorização para que fizesse o que bem entendesse com o texto veio do próprio Alexandre. Aqui, fotografia e poesia unidas em uma beleza singular, a mostrar que o amor vence o tempo e a morte, imagens e palavras eternizam o que o vento soprou em um passado para sempre gravado nas ruas de Lisboa.

Lisboa: Alexandre e Eu, por Al Berto

Enquanto dormes constrói-me um rosto de luz, no limbo do teu sonho. Toca-o e acorda-me.
Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.

Há séculos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível, pelas estradas de giestas em direcção ao mar.
Dorme, e consente que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de pontes atravessadas, kms nocturnos e segundos de asfalto.

Para trás ficou a cidade.
E tu sabes que a cidade só existe no apanhar um táxi. E perdermo-nos até amanhã – sem sequer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.

Amanhã, ou enquanto dormes – agora mesmo – vou pensar em ti. Intensamente: até que as horas me doam sobre a pele, e o movimento dos dias passe como aves que perdem o sentido do voo – até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo.
E em mim circules – quando estendo a mão por dentro da noite e te acordo, no fogo dos meus olhos.

No fim do sono existe um vulcão.
De repente, a manhã. A bruma. Um pássaro. As coisas que me rodeiam com seus segredos – mas as coisas, sabe-se lá, só existem porque as palavras dizem que existem. E os segredos das coisas, estão em mim – e não nas coisas.

Quando subo pela haste da manhã, encontro uma cidade de cristal. Trouxeste-ma tu, na dádiva do corpo.
E se conseguisse tocar-te com a respiração, ouvia-te dizer:
É na desolação dos dias que o meu olhar segrega o mel com que te alimentas.

Penso no que te vou deixar: nomes de flores e de estrelas para refazeres os jardins e as constelações, e o peso etéreo da minha morte – para continuares a celebrar a vida.

Insónia. Noite fria, repleta de medos. Noite sem fim. Nada.
Levanto-me e abro a janela. Respiro fundo. Um fio de sol embate na garrafa de gin abandonada ao lado da cama.
Ponho os óculos, e o dia torna-se nítido, focado, limpo, e cheira a violetas…

Às vezes, tenho a impressão de ter perdido a exactidão dos gestos e das palavras.
Estive tempo a mais sozinho – reaprendo, com dificuldade, a ser cúmplice, amigo, amante.

Não me desagrada a ideia de viver num farol abandonado. Não me desagrada que a luz se apague. Não me desagrada pensar que posso perder a lucidez.
Por isso bebo.
Beber, ajuda a cicatrizar o olhar ferido da noite. Isola-nos do mundo, acende-nos os gestos, antes de no perdermos de bar em bar.

Amantes e embriagados. Destinados à chuva das ruas, às cidades que ardem junto ao mar, ao silêncio azul das manhãs.
Aí vem o 28 dos Prazeres… e um táxi.
Não me abandones, fica…
E o vinte e oito passa, e passa o táxi, enquanto olhamos “A Dança” de Matisse na capa dum livro.

Vamos pela manhã que se ergue, suja, enevoada – onde as palavras que digo se confundem com o teu sorriso. E os semáforos mudam de cor, inutilmente.
Rua da Rosa, Travessa da Espera, Calçada do Combro. Silêncio sobre silêncio. A vida suspensa no estremecer de um abraço.
Até logo. Se te lembrares de mim, telefona.

Fecho, por fim, as pálpebras. O teu rosto sobrepõe-se à imagem do meu rosto. A tua mão esconde-se na imagem da minha mão. E no espelho já não há imagens, nem corpos, nem mar…

Logo à noite, outra vez o olhar, os corpos, a chuva, o sono, a fuga, a alma, o dia, os dias… o regresso. O telefone, e Lisboa a sussurrar no vento a tua ausência.

A vida é sacana. Sobretudo não é aquilo que nos disseram que era.
Por vezes, quando nos sentimos morrer vemos como é disparatado saber que tudo vai acabar. Precisamente quando tínhamos descoberto alguém com quem podíamos falar.
Passamos a vida numa espécie de silêncio, numa nudez terrível que se quebra, ainda que raramente, diante de certas coisas que nos contaram e nos deslumbraram.
Mas é tarde. As coisas que nos deslumbraram eram efémeras, breves. E não se pode voltar atrás.

Tenho um amigo que disse:
Sabes, a verdade nunca acaba.
Mas o que será a verdade quando estivermos mortos?

Penso no lugar secreto do Caos e da Ordem que se erguem, subitamente, diante daquele que ama, e escreve.

Um dia disseste:
A paixão serve para te mostrar os fogos da noite.
Acreditei no que me dizias, mas já não consigo dormir, só morrer. O teu sorriso colou-se-me à boca.
Passo os dias a espiar as paisagens diluídas na memória que tenho de ti. Atravesso continentes que se transformam em minúsculas dores, pequenos territórios que cabem no fundo duma algibeira, ou em meia-dúzia de palavras.

Lembro-me que numa viagem de comboio podemos encontrar gente cúmplice do silêncio – mas dificilmente um amigo de olhos cor-de-amêndoa que te diga:
O teu olhar é belo.
Espantado, respondes:
O meu olhar só é belo porque se deixou aprisionar pelo teu. Nesse lugar profundo onde nos cruzamos e o mundo faz sentido. E quando a distância nos separar, e Lisboa for apenas uma impressão vaga de mal-estar, uma parte de mim pertencer-te-á.

Mentir é necessário. É a melhor maneira de esconder o que há de doloroso na verdade.
Repara, através dos meus olhos descobrirás como é grande a tristeza do mundo. Apenas isso. E quando aqui não estiveres, espetarei todas as facas que encontrar nas paredes febris da noite.
Talvez sangre dos pulsos. Talvez te escreva. Talvez…

Olho atentamente as fissuras do tecto. Desloco-me através delas, alcanço a noite.
O teu rosto, de quando em quando, pousa na minha solidão.
Há vinte anos que a vida se apagou nas linhas da mão, e os jardins da cidade permaneceram, todo esse tempo, envoltos na bruma. O Tejo não deixou o tempo correr.
Mas um dia, talvez agora, abrirei as mãos nos escuro do quarto, e o teu rosto incendiar-se-á.
As mãos queimadas, memória da tua passagem.

Por isso te escrevo, com esta luz encostada à boca. E espalho a cinza destas palavras pelo escuro da noite.
Perder-te, levar-me-ia ao zumbido ensangüentado duma bala. A paixão, a nossa, foi construída com a lentidão das obras-primas. E nela não há equívocos, nem erros.
O teu rosto é perfeito e intenso – brilha, assim que o nomeio ou toco: sinal de vida, estremecer do mundo na melancolia das mãos.

Assim te raptei uma noite – com ansiedade e susto. E assim te mantenho vivo, e amo, dentro e fora do poema.
Hoje, tudo me parece novo e antigo, em simultâneo, como se já soubesse que havias de chegar e mudar-me a vida, o rumo dela, e depois partir.

Lá fora chove. Chove sem parar. E Lisboa parece encolher-se dentro do teu sono.

Al Berto, Lisboa, 1994

Fotos: Alexandre Matos

Veja também:

 AL BERTO

https://jeocaz.wordpress.com/2008/04/25/al-berto/


LUÍS DE CAMÕES – POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS

julho 6, 2009
No final do século XV Portugal tornou-se uma nação voltada para as grandes navegações que expandiriam o mapa do mundo, descobrindo novas terras e continentes. Dividiu o mundo novo com a Espanha, através do Tratado de Tordesilhas, em 1494, tornando-se uma das mais poderosas nações. O apogeu viria com o rei Dom Manuel I, que viu em seu reinado a saga de Vasco da Gama, que chegou a Calicute, na Índia, em 1498; e, Pedro Álvares Cabral, que descobriu o Brasil em 1500. A saga portuguesa pela conquista dos mares findaria em 1578, quando o rei Dom Sebastião morreu em Alcácer-Quibir, norte da África, sem deixar descendentes. Em 1580 Portugal passaria a ser governado pelos reis da Espanha, também eles descendentes de reis portugueses. A saga chegara ao fim.
Luís de Camões, maior poeta da língua portuguesa, viveu neste período glorioso da história do seu país e morreu com ele. Sua vida é obscura, com poucos registros históricos, sendo o pouco que se conta ou que se sabe, muitas vezes de veracidade duvidosa, às vezes beirando à lenda. Entretanto a sua obra é conhecida no mundo inteiro. O épico “Os Lusíadas” faz parte da galeria de obras universais, tendo a sua tradução para diversas línguas, sendo admirada pelos maiores escritores do mundo e pelos amantes da literatura.
Camões, dono de uma erudição grandiosa, descreveu a saga do seu povo, mesclando figuras mitológicas com personagens seculares, transformando mitos gregos em personagens lusitanos, como o Adamastor, versão do Poseidon (Netuno), senhor dos mares; ou as Tágides, ninfas do Tejo, rio símbolo de Portugal, que deságua em Lisboa, foi porto de partida para as grandes navegações.
Luís de Camões é o símbolo do orgulho lusitano, da sua força e da coragem desbravadora. Viveu intensamente, em diversos lugares, como Macau, Goa e Moçambique, na sua intensidade poética, teve uma vida de grandes dificuldades econômicas, que lhe fez chegar à beira da miséria. Após percorrer as terras da expansão lusitana, voltou a Portugal, para lançar, em 1572, a maior obra da literatura portuguesa, “Os Lusíadas”. Morreu poucos anos depois, em 1580, esquecido e sem que se lhe desse a devida importância, vítima da peste que assolava Lisboa. Com a sua morte, também o apogeu português morreu, só sendo revivido e contado nas páginas do seu poema épico. O dia 10 de junho, data da sua morte, tornou-se o dia de Portugal.

Um Poema

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais
E, se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conforme as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Erudição em Coimbra

O ano de nascimento de Luís Vaz de Camões é incerto, sendo considerado entre 1524 e 1525, provavelmente em Lisboa. Também a sua filiação é tida como duvidosa, tendo como versão mais aceita a de que era descendente de uma família de pequena nobreza de Chaves, norte de Portugal, tendo como pai o fidalgo Simão Vaz de Camões e Ana de Sá Macedo, como mãe.
Provavelmente Camões passou a infância em Coimbra, o maior centro cultural de Portugal da época, com as suas Escolas Gerais (universidade), tendo ali, a orientação do seu tio, dom Bento de Camões, prior do convento de Santa Cruz e docente da universidade. É aceito por historiadores, que o poeta teria freqüentado o Estudo Geral da Universidade de Coimbra, o que explicaria a sua imensa erudição e conhecimentos de humanísticas, das obras de Petrarca, de Dante, dos filósofos gregos e dos poetas latinos. Mas nenhum registro dessa passagem consta nos arquivos da universidade.
Ainda em Coimbra, reza a tradição que muito jovem, era um ardoroso conquistador, tomando para si os corações de diversas mulheres, das plebéias às damas mais belas da nobreza, tornando-se alvo da inveja dos ricos fidalgos. Sua juventude foi presenteada aos livros, aos prazeres do espírito e do corpo.
A necessidade visceral que Camões tinha de desbravar os lugares mais eruditos, provavelmente levou-o a abandonar Coimbra antes de concluir os estudos, assim, o jovem poeta partiu para Lisboa, sendo aceito na corte de dom João III, devido à influência da sua ascendência fidalga. Camões exalaria a sua fama de poeta por toda Lisboa, perpetuando-se como a principal personagem da história da cidade.

Perda do Olho Direito

Na corte lisboeta, o jovem poeta faz versos ardentes e apaixonados para uma dama loura e de olhos claros, cujo nome jamais será revelado. Alguns historiadores apontam o jovem Camões como preceptor do filho do conde de Linhares, linhagem da nobreza portuguesa que seriam protetores do poeta por toda a sua vida aventureira.
Seu vigor juvenil, sua fama de conquistador de damas e os seus conhecimentos infindáveis das letras, geraram inveja e intrigas, que ele próprio participou, corroborando para que crescessem. Aos 24 anos, as teias das intrigas levaram-no à vida aventureira e errante que o lançaria para a história do seu povo. Assim, vitimado pelas efervescências de Lisboa, resultante de um amor mal sucedido, Camões foi desterrado para Belver, interior de Portugal, no Alto Alentejo.
Algum tempo depois de deixar a vida no Paço, Camões recebeu um despacho real, que o enviou transferido de Belver para Ceuta, no norte da África, lugar que servia como base para deter o avanço dos mouros nas investidas contra a península Ibérica. Teria sido em Ceuta que ocorrera um fato que marcou para sempre a vida do poeta, num combate que tomou parte, perdeu o olho direito. Desde então, a imagem de Camões seria para sempre representada com esta deformidade, sendo os seus retratos marcados pela evidência do logro físico.

A Caminho da Índia

Ao retornar a Lisboa, o poeta já não encontrou a deferência das pessoas, ou mesmo a presença dos velhos amigos. Seu rosto, marcado pela perda do olho direito, já não atraía às belas damas da corte. Estava irremediavelmente sozinho.
Em 16 de junho de 1552, Luís de Camões envolveu-se em um incidente que lhe iria mudar a vida. Ao participar da procissão de Corpus Christi, o poeta desentendeu-se com um certo Gonçalo Borges, funcionário da Casa Real. Este é um dos poucos fatos da vida de Camões que está devidamente relatado por um documento histórico, a Carta do Perdão, de 1553. Não se sabe o motivo da desavença, a conseqüência foi o poeta a desferir um grave golpe de espada no pescoço do desafeto. Camões foi levado à prisão, onde ficou preso durante nove meses, enquanto Gonçalo Borges restabelecia-se do ferimento.
Em 1553, Camões foi indultado, mediante o pagamento de quatro mil réis exigidos pelo rei. Poucos dias após ter deixado a prisão, o poeta embarcou como simples soldado, na armada de Fernão Álvares Cabral, filho de Pedro Álvares Cabral, rumo a Goa, na Índia.
Ao embarcar para a Índia, Camões iniciava o processo de conhecimentos que seriam fundamentais para a criação do seu poema épico, “Os Lusíadas”. Os seis meses que passaria no mar, a caminho de Goa, levar-lhe-iam por terras ignotas, jamais imaginadas ou concebidas na imaginação de um poeta. Da calmaria das costas africanas, às tempestades marítimas do oceano Índico, Camões conheceu terras selvagens, civilizações exóticas ao seu mundo cristão, tudo a se mesclar com os clássicos gregos, formando na sua mente um imenso mosaico que quando foi transportado para o papel, tornar-se-ia a maior obra do povo português.

Lendas e Verdades na Composição de “Os Lusíadas

Ao contrário dos seus compatriotas contemporâneos, que construíram grandes fortunas nas possessões asiáticas portuguesas, Luís de Camões passou três anos em Goa a viver na mais completa miséria.
Em 1556, foi nomeado para o cargo de provedor-mor dos bens de defuntos e ausentes da China, partindo para Macau. É deste tempo a sua participação em refregas militares, com ataques aos nativos que combatiam os portugueses; batalhas contra os beduínos na Arábia e expedições a Malaca e ao Vietnã.
Seria durante o tempo que viveu em Macau que, conta a lenda, teria escrito o épico “Os Lusíadas”. A idéia do poema teria surgido em Lisboa, mas a composição dos seus dez cantos, é fruto incontestável das suas andanças pelo continente asiático.
A composição de “Os Lusíadas” perde-se da veracidade histórica e assimila a narrativa romântica da lenda. Teria sido escrita em Macau, numa gruta à beira mar, para onde o poeta dirigia-se todos os dias. Enquanto compunha verso a verso, era acompanhado da sua amada chinesa, Dinamente. A gruta atribuída à composição de “Os Lusíadas” é pequena, quase uma fenda na rocha, freqüentemente inundada pelas águas da maré alta, sendo impossível que se permaneça tanto tempo dentro dela.
A lenda e a história confundem-se em uma só. Ao retornar para Goa, em 1560, Camões naufragou no caminho, na foz do rio Meckong, salvando-se a nadar apenas com um braço, tendo o outro estendido acima das ondas, erguendo heroicamente “Os Lusíadas”, salvando o seu poema épico.

Publicação de “Os Lusíadas

À volta a Goa foi feita com o poeta mantido sob custódia, para ser julgado, acusado de não ter exercido plenamente a função de provedor-mor sobre os bens dos defuntos e ausentes em Macau, sendo destituído do cargo. Livra-se do julgamento pela intervenção de um amigo influente, conseguindo uma nomeação como feitor em Chaul.
Camões não chega a exercer a nova nomeação, pois é preso por dívidas, através de um requerimento de um certo Manuel Roriz. O poeta escreve um poema humorístico ao vice-rei, Francisco de Sousa Coutinho, o conde do Redondo, a pedir o seu auxílio, sendo por ele libertado.
Camões só deixaria a Índia em 1567, embarcando numa nau rumo a Moçambique, com a passagem sendo oferecida pelo capitão. Na África, o poeta pensava em recorrer à ajuda de um amigo, mas teve as esperanças frustradas, passando a viver ainda com maiores dificuldades.
Foi encontrado pelo historiador Diogo do Couto, em Moçambique, a viver na mais completa miséria, a comer do que lhe dava alguns amigos. O poeta retornaria para Lisboa com Diogo do Couto, que juntamente com outros companheiros embarcados, vestiu-lhe roupas para que pudesse viajar e chegar à corte com mais dignidade ante a miséria que se lhe abatera.
Ao regressar a Lisboa, em 1570, fica a saber da grande peste que assolou a cidade de 1568 a 1569. Já não possui qualquer acesso a corte. Empenha-se em publicar “Os Lusíadas”. Aperfeiçoa a obra, faz uma cópia especial para dedicar ao rei dom Sebastião. Sob a influência do amigo de juventude, dom Manuel de Portugal, o frade dominicano Bartolomeu Ferreira, responsável pela censura do Santo Ofício, não criou obstáculos para a publicação do épico, mesmo ela contendo a presença de divindades pagãs, o que era proibido pela Inquisição. Sobre as figuras pagãs, Bartolomeu Ferreira justificou no seu despacho inquisitorial: “Como isto é poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na obra. E por isto me parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele muito engenho e muita erudição nas ciências humanas”.
Assim, um alvará régio de setembro de 1571, concedeu a licença de publicação da obra, e garantiu os direitos de autor de Camões por dez anos. Em 1572 foi publicado, pela primeira vez, “Os Lusíadas”.

Morte do Poeta e Fim da Autonomia de Portugal

Após a publicação de “Os Lusíadas”, dom Sebastião concedeu uma tença de quinze mil réis por ano a Luís de Camões, quantia pequena quando comparada a outras pensões concedidas na época. A pensão era paga com atraso, causando grandes transtornos ao poeta, que passou os últimos anos de vida preso às limitações financeiras.
Em 1578, o rei dom Sebastião desapareceu nas areias do deserto de Alcácer-Quibir, em meio a uma sangrenta batalha contra os mouros no norte da África, sem deixar descendentes, deflagrando uma grande crise sucessória no trono português.
De 1579 a 1581, Lisboa foi assolada por uma nova epidemia de peste, ceifando várias vidas. Camões contraiu a peste em 1580, sucumbindo em cinco dias, morrendo em 10 de junho.
No meio da epidemia, gerou-se um caos diante de tantos cadáveres acumulados para que fossem inumados. O corpo de Luís de Camões foi envolvido em uma mortalha e atirado, ao lado de outros mortos pela peste, na cripta da igreja de Santa Ana, em Lisboa. Permaneceu ali, até que o grande terremoto de 1755, que destruiu a cidade de Lisboa quase que por completo, derrubou o templo, misturando as ossadas que se encontravam ali. Em 1880, todas as ossadas que jaziam na igreja, foram levadas para o Panteão Nacional e para o Mosteiro dos Jerónimos, onde foram estabelecidos, nos dois locais, os túmulos oficias de Luís de Camões, embora não se saiba se aquelas ossadas pertençam realmente ao poeta.
Em 1580 Portugal perdia a sua autonomia, passando a ser governado pelo rei espanhol Filipe II (I de Portugal), descendente de dom Manuel I. Portugal perdia o esplendor alcançado, desaparecido com o seu maior poeta. Mas o reconhecimento do valor de Luís de Camões só viria muito tempo depois. “Os Lusíadas” passou a fazer parte da literatura universal, sendo admirado por pessoas do mundo inteiro. A data da morte do poeta, 10 de junho, passou a figurar como feriado e tido como dia da nação lusitana. A glória desta nação está para sempre registrada no poema épico de um escritor genial, com estilo cravado no classicismo e maneirismo, mas com pinceladas do barroco que despontava, nos paradoxos do famoso poema conhecido por “Amor é fogo que arde sem se ver”.

Outro Poema

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

OBRAS:

Épico

1572 – Os Lusíadas

Lírica 1595 – Amor é Fogo que Arde Sem se Ver
1595 – Eu Cantarei o Amor Tão Docemente
1595 – Verdes São os Campos
1595 – Alma Minha Gentil, Que te Partiste
1595 – Que me Quereis, Perpétuas Saudades?
1595 – Sete Anos de Pastor Jacob Servia
1595 – Sobolos Rios que Vão
1595 – Quem Diz que Amor é Falso ou Enganoso
1595 – Transforma-se o Amador na Cousa Amada
1595 – Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

Teatro

1587 – Auto de Filodemo
1587 – El-Rei Seleuco
1587 – Anfitriões

Cronologia

1524 ou 1525 – Datas prováveis do nascimento de Luís Vaz de Camões, possivelmente em Lisboa.
1549 – É desterrado para Belver, no Alentejo.
Embarca para Ceuta, no norte da África, para combater os mouros. Em uma refrega, perde o olho direito.
1551 – Regressa de Ceuta, aportando em Lisboa.
1552 – Fere com a espada, um funcionário da Casa Real, sendo preso.
1553 – Consegue ser indultado, mediante pagamento de quatro mil réis, sendo posto em liberdade.
Embarca para Goa, na Índia.
1556 – É nomeado provedor-mor dos bens de defuntos e ausentes de Macau.
Participa de várias investidas militares pela Ásia.
1560 – Naufraga na foz do rio Meckong, ao retornar à Índia.
1561 – É destituído das funções de provedor.
Enviado para Goa para ser julgado por má gestão dos bens dos defuntos e ausentes em Macau, ficando livre do julgamento graças à intervenção de um amigo.
Nomeado para a função de feitor de Chaul, mas não chega a exercer o cargo.
1562 – Preso por dívidas não pagas, em Goa, sendo libertado pelo vice-rei dom Francisco de Sousa Coutinho.
1567 – Embarca para Moçambique.
1570 – Regressa a Lisboa.
1572 – Publicada a primeira edição de “Os Lusíadas”.
1580 – Morre, em 10 de junho, em Lisboa, vítima de uma epidemia de peste.