BAIRRO ALTO

Provavelmente um dos lugares mais emblemático, sedutor e idolatrado de Lisboa, o Bairro Alto é o local dos movimentos e da vanguarda portuguesa. Talvez por ser um dos sítios onde transitam todas as tribos, toda a essência da moda ou gritos da contracultura lisboeta mesclada com os visitantes de todas as partes do mundo. Por lá encontramos turistas europeus, africanos, latino-americanos, ibéricos, portugueses do norte ou do sul, todos a dividir o mesmo espaço com moradores tradicionais, finos restaurantes e tascas populares. Há uma atmosfera romântica, marginal e contraventora que faz das suas ruas estreitas, com roupas estendidas nas varandas a disputar espaços com as flores e plantas, um local único, um sítio genuinamente português.

Origens Históricas do Bairro Alto

Nascido nos primórdios do século XVI, é a última conquista de uma das sete colinas de Lisboa. É um bairro pós Idade Média, já além das muralhas que cercavam a Lisboa Medieval. A primeira construção que se teve notícia foi uma ermida onde é hoje a Igreja de São Roque e a Santa Casa da Misericórdia. O sítio em sua origem mais remota foi originalmente ocupado por esta ermida dedicada a São Roque, fundada em 1506. Bairro da expansão quinhentista, foi o primeiro loteamento da Vila Nova de Andrade, em 1513. Fazia parte da cidade dos descobrimentos, programada com base numa malha urbana ortogonal moderna, onde se instalaram, lado a lado, populares (habitação de mercadores ligados às rotas marítimas) e aristocratas.
Com a chegada dos Jesuítas a Portugal, é na parte nova e alta da cidade de Lisboa que a prestigiada Companhia de Jesus se vai instalar. No lugar da ermida dedicada a São Roque é construída pelos jesuítas a Igreja de São Roque, entre 1565 a 1573. No local conhecido por Bairro Alto de São Roque, houve um grande desenvolvimento do que é hoje o Bairro Alto. Fora justamente o prestígio da ordem da Companhia de Jesus que atraíra para a colina a nobreza, que iria construir os seus palácios na parte norte, fazendo do local um bairro elegante.
Além dos palácios, o Bairro Alto foi tomado por habitações tradicionais e mais simples na parte ocidental, de vizinhança rural e mais elaborada nas zonas de inserção urbana. Essas construções deram expressão a este bairro popular e aristocrata. Com cantarias simples, cunhais de pedra, grades de ferro forjado, azulejos de padrão geométrico e janelas são aspectos que dão uma certa ambigüidade que estabelecem o equilíbrio entre a unidade e a diversidade, que sempre foram as características do bairro.

Do Terremoto ao Fado

Após o terremoto de 1755, a zona das Chagas foi completamente reorganizada, com destruição do tecido antigo e implantação de quarteirões pombalinos onde se inseriram prédios e palácios. A Rua da Misericórdia (antiga Rua Larga de São Roque) e a Rua do Século (antiga Rua Formosa) foram modernizadas com a reconstrução dos edifícios de forma mais imponente. O interior do Bairro Alto não sofreu transformações para além da desagregação das grandes edificações, como os palácios quinhentistas e seiscentistas.
Com a perseguição do Marquês de Pombal aos jesuítas e aos nobres de então, o Bairro Alto deixou de ser um local de elite e deu passagem para outra roupagem. No século XIX chegam os jornais, que tomam conta do bairro com as suas tipografias, os estúdios de fotografias e os restaurantes (Tavares em 1874 e Alfaia em 1880). O bairro começa a ser conhecido como típico de grande animação. Com a chegada dos jornalistas, escritores e intelectuais, o bairro liga-se para sempre à tradição literária, à imprensa e à vida boêmia, criando espaços de convívio que proporcionaram uma vivência cultural, que permanece até os dias de hoje.
Mas é durante o Estado Novo que o Bairro Alto transforma-se em um bairro popular, de expressiva vida noturna. Com a noite surgem as casas de fado, a vida marginal das prostitutas e dos seus proxenetas, que invadem as suas ruas estreitas. Essas mulheres belas e trágicas compõem a mística da boêmia que atrai marinheiros, fadistas e tantos outros. Em meio aos amores densos e populares, o fado acha um campo fértil para florir. As casas de fados trazem ícones da história de Lisboa, como a Amália Rodrigues em todo o seu esplendor de artista. É a essência do Bairro Alto da saudade lusitana, da repressão da ditadura de Salazar, não se pode falar sobre a política, mas cantar a fatalidade, a saudade, os amores impossíveis e trágicos são permitidos pelo Estado vigilante.

A Sétima Colina

É durante o Estado Novo que há uma degradação lenta dos prédios do Bairro Alto e de grande parte dos bairros históricos de Lisboa. O Bairro Alto é visto como zona de prostituição. Dos quartéis do Carmo emana a rendição da ditadura e os novos caminhos dos cravos surgem em 1974. Só nos anos oitenta é que vai sendo tomado por casas noturnas que se tornam parte da intelectualidade lisboeta. Casas como o emblemático Frágil de Manuel Reis, recebem gente dos espetáculos e da vida intelectual da cidade. Poetas, artistas e prostitutas ainda dividem a noite do Bairro Alto nessa década de transformações.
No fim da década de oitenta o Bairro Alto já é local preferido da vida noturna dos lisboetas. Começa a sua revitalização. Aos poucos a prostituição vai deixando definitivamente as suas ruas, empurrada para o Cais Sodré e para a Avenida da Liberdade. Nos anos noventa começa a ser um bairro procurado também para se viver, a população começa a ser renovada e os seus prédios restaurados. Em 1994 Lisboa torna-se a capital européia da cultura, o Bairro Alto é chamado de “Sétima Colina” e é um dos locais favoritos para os eventos culturais daquele ano. A Câmara Municipal promove a recuperação da maioria dos seus prédios, que voltam a ser coloridos imponentes. O Bairro Alto volta a ser um lugar da elite e das tribos e tendências diversas. Ateliers de moda de estilistas renomados invadem os prédios seculares. À noite as suas ruas ficam cheias, no verão é comum ver as pessoas nas portas dos bares a tomar as suas bebidas, em um convívio que se destaca pela diversidade. O costume de invadir as ruas começou no Portas Largas, na Rua da Atalaia, em 1994, e espalhou-se por todo o Bairro. O pão com chouriço de uma padaria da Rua da Rosa tornou-se o alimento principal nas madrugadas dos que muito beberam. Aqui é moda beber o absinto ou o vinho moscatel.
Mas o que mais seduz no Bairro Alto? Os bares? A noite? As pessoas? O fado? O gosto lacônico da tragédia das grandes paixões semeadas por cada esquina daquelas ruas? Ainda me lembro da primeira vez que um marinheiro falara-me do Bairro Alto, lá nos primeiros anos da década de oitenta. Citou as noites mundanas, as prostitutas, os amores fatais, o fado…
O Bairro Alto é de um ludismo cênico e de amores despidos, como nos fala o fado de Nuno de Aguiar/Calos Simões Neves e Oliveira Machado: “Bairro Alto, com seus amores tão delicados”, só quem os viveu sabe o que significam. E como um fado perdido e modernizado, quase Pop, em pleno século XXI, o coração ainda traça as armadilhas labirínticas nas suas ruas estreitas e iluminadas pelos candeeiros, seguidos pelos ventos noturnos que sussurram e sacodem as roupas nas janelas. Sem perder atmosfera tão particular, o Bairro Alto pulsa e desperta paixões de todos aqueles que freqüentam ou freqüentaram as suas ruas, sejam lisboetas, portugueses ou estrangeiros. Porque o Bairro Alto é tão português, tão lisboeta e tão universal.

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